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Música

Ariana Grande, Mac Miller e por que culpamos mulheres pelo abuso de drogas dos homens

Culpar uma mulher pelo comportamento destrutivo do parceiro não é só cruel, é um sintoma de problemas maiores em nossa cultura.
Mac Miller e Ariana Grande em 2017. Foto por Kevin Mazur / One Love Manchester / Getty Images para One Love Manchester.

Antes de morrer de uma aparente overdose em 7 de setembro, Mac Miller sempre foi direto sobre sua história longa e complicada de abuso de substâncias. As mixtapes que o catapultaram para o estrelato eram imagens sem filtro dos altos emocionantes e baixos devastadores do vício. Faces, de 2014, por exemplo, abre com Miller dizendo “Você devia morrer de uma vez”, e tem frases como “Brinquei com drogas e agora sou um viciado”.

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No documentário FADER de 2016, ele fala abertamente sobre seu narcótico preferido, lean (uma mistura de codeína e prometazina), dizendo: “Maconha não me relaxa totalmente, ela me deixa paranoico com toda a merda que está acontecendo. Então eu precisava de uma droga que fosse um pouco mais entorpecente, se você quiser colocar assim. E menos, tipo, na sua cabeça. Então sim, foi isso que desencadeou meu uso de drogas porque odeio ficar sóbrio. Eu queria uma droga para usar”.

Apesar dessa transparência, horas depois que o TMZ deu a notícia da morte de Miller, o discurso na internet não estava focado na realidade sombria do abuso de drogas. Em vez disso, os fãs enlutados foram atrás da ex-namorada de Miller, Ariana Grande, a culpando pela morte súbita do rapper.

TUÍTE 1

@PinkSlipzz: “Namora Mac por dois anos, termina, Namora Pete por 2-3 semanas, anuncia noivado e fala como se estivesse apaixonada pelo Pete há anos. Talvez culpa não seja a palavra certa, mas ela com certeza não ajudou.”

TUÍTE 2

@ryepastrami: “Não entendo mesmo a raça humana. Faz 30 minutos.

Aviso: Misoginia, gírias racistas, pessoas sendo horríveis no geral”

“Não é surpresa ver um linchamento virtual. É como uma bola de neve, com uma ou duas pessoas, e do nada todo mundo acha que tem permissão para fazer isso porque outras pessoas estão fazendo”, disse Danielle Citron, professora de Direito da Universidade de Maryland e autora de Hate Crimes in Cyberspace, para a VICE. “Parece normal, e essa turba chega a extremos. A coisa passa de 'Espero que você se sinta mal' para 'Você merecia morrer'. As pessoas veem outras fazendo isso e acham que não é ruim dizer essas coisas, e acaba virando um jogo. Mas claro que para a pessoa que é o alvo isso não é um jogo.”

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O assédio se tornou tão venenoso que Grande – que normalmente posta bastante nas redes sociais – desabilitou os comentários em seu Instagram e ficou em silêncio no Twitter. Enquanto as mensagens de ódio se amontoavam online, a mídia foi rápida em apontar o machismo da situação. Shane Powers, amigo de Miller, defendeu Grande em seu podcast, dizendo: “Não tinha ninguém mais pronta para ir para o paredão por ele quando se tratava dele ficar sóbrio, ela era uma força incrivelmente estabilizadora na vida dele”.

“O próprio fato de que Grande sentiu que precisava recuar, que ela teve que sair da esfera pública, é profundo”, diz Citron. Ela acrescenta que parte de ser uma cantora pop é se envolver com os fãs, então ser obrigada a recuar a prejudica profissionalmente. “É muito significativo quando alguém é silenciado. Odeio dizer que isso é incrivelmente comum, o que é deprimente.”

Grande quebrou seu silêncio para homenagear Miller, postando uma foto em preto e branco dele em 9 de setembro e um vídeo no dia 14, com a legenda:

te adorei do dia em que te conheci quando tinha dezenove e sempre vou adorar. não acredito que você não está mais aqui. não consigo me conformar. falamos sobre isso. muitas vezes. estou com raiva, estou tão triste que não sei o que fazer. você era meu amigo mais querido. por tanto tempo. acima de tudo. perdão por não poder consertar ou tirar sua dor. eu queria muito. a alma mais gentil e doce com demônios que nunca mereceu. espero que você esteja bem agora. descanse.”

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As palavras dela eram de partir o coração, especialmente porque Grande aguentou muito mais que sua parcela justa de dor nos últimos dois anos. Depois de um ataque terrorista fora do show dela em 2017 em Manchester, que deixou 22 mortos, muitos deles fãs jovens dela, a cantora teria começado a apresentar transtorno de estresse pós-traumático.

As palavras de Grande também são devastadoras porque implicam alguma responsabilidade pelo uso de drogas de Miller, como se superar o vício fosse a batalha dela, não dele. Os assediadores de Grande ecoam esse sentimento, criticando a estrela pop por não continuar com Miller enquanto ele lutava para ficar sóbrio. Eles se focam na linha do tempo do romance dela com o astro do SNL Pete Davidson. (Grande terminou com Miller em 9 de maio, supostamente começou a namorar Davidson em 21 de maio, e eles ficaram noivos em 11 de junho.) Eles argumentam que ela partiu o coração de Miller, o fazendo agir irresponsavelmente.

Depois que Miller foi preso por dirigir sob efeitos de drogas e colisão e fuga em 17 de maio, o usuário do Twitter @FlintElijah escreveu: “Mac Miller batendo seu carro e sendo preso por dirigir sob efeitos de drogas depois que a Ariana Grande o trocou por outro cara depois dele abrir o coração num álbum de dez músicas a chamando de divino feminino é a coisa mais triste acontecendo em Hollywood”.

Grande respondeu com uma declaração se defendendo. “Quão absurdo é você minimizar o autorrespeito e valor de uma mulher dizendo que alguém deve continuar num relacionamento tóxico porque ele escreveu um álbum sobre ela”, ela começava. “Não sou babá, nem mãe e nenhuma mulher deveria sentir que precisa ser. Eu me importava com ele e tentei apoiá-lo na sobriedade e rezei pelo equilíbrio dele por anos (e sempre vou, claro), mas culpar mulheres pela incapacidade de um homem de cuidar da própria vida é um problema muito grande.”

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“Primeira coisa, as pessoas são responsáveis por si mesmas”, a presidente da National Organization for Women (NOW), Toni Van Pelt, disse a VICE. “E os homens em particular são ensinados a pensar neles primeiro. As mulheres são sempre exortadas a cuidar dos outros primeiro, a se colocarem em segundo lugar. Se elas pensam em si primeiro, elas são consideradas egoístas.”

Van Pelt explica que essa mentalidade é penetrante e insidiosa. “Desde o começo dos tempos, sempre foi esperado das mulheres aceitar a culpa”, ela diz. “Quer dizer, você pode igualar isso com o que estamos vendo com assédio sexual e estupro, e mulheres não dão queixa quando são atacadas porque levam a culpa quando um homem as ataca, como se sua própria existência, seu papel, as tornassem dignas de culpa.”

Esse é um sentimento compartilhado por Patrick Wanis, especialista em comportamento humano e terapeuta que conta com muitas celebridades entre seus pacientes. Ele acrescenta que tradições religiosas patriarcais reforçam os valores machistas. “Quem as religiões mais temem? Você vai dizer Satanás, o mal. Na verdade são as mulheres”, ele disse a VICE. Ele e Van Pelt mencionaram a história de Adão e Eva, e o ponto que a narrativa do pecado original mudou com os séculos para culpar as mulheres pela queda do homem.

Quando uma celebridade morre, o circo da mídia resultante se torna uma forma macabra de entretenimento. Jacque Lynn Foltyn, professora de sociologia da National University em La Jolla, Califórnia, estuda a fascinação do público por mortes de celebridades há anos. “Tem um tipo de histeria da Morte acabando com celebridades, uma depois da outra”, ela disse a VICE. “Vejo essas mortes como parte de uma obsessão maior não só com drogas e celebridades na cultura contemporânea, mas com a morte em si.”

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Uma morte prematura como a de Miller é sem dúvida uma tragédia, mas é amplificada pelos tabloides e fãs de luto que sentem que sofreram uma perda pessoal. Wanis chama essa conexão unilateral de “relacionamento parassocial”. “Poucos fãs podem dizer 'Eu realmente conhecia Mac Miller'”, ele diz. “As pessoas dizem 'Eu o conhecia porque ouvi sua música, assisti o show dele, vi uma entrevista e li suas citações'. Mas não, você não o conhecia. Você só conhecia as partes dele que ele escolheu revelar.”

Quando legiões de fãs reivindicam um artista famoso, pode ser fácil descontar sua tristeza nos amigos e na família real deles. O público é particularmente cruel com mulheres que perderam um ente querido celebridade. Yoko Ono foi acusada de lucrar com o assassinato de John Lennon em 1980, e teorias da conspiração ainda alegam que Courtney Love matou Kurt Cobain em 1994.

Quando Heath Ledger teve uma overdose em 2008, os paparazzi assombraram Michelle Williams tão impiedosamente que ela fugiu para uma cidadezinha no norte da Nova York com a filha de dois anos do casal. A amiga dela Daphne Javitch disse a Vanity Fair: “Ter esse tipo de atenção, de maneira tão agressiva, em torno de você e da sua filha, quando tanto disso é uma verdadeira tragédia familiar… é um tipo de violência”.

De maneira similar, quando Cory Monteith teve uma overdose em 2013, sua namorada e colega de elenco de Glee Lea Michele se escondeu na casa de Kate Hudson para fugir da imprensa. “É uma loucura”, ela disse a Ellen DeGeneres. “Se você sorri, eles dizem 'Ela está tão feliz!' E se você parece triste, eles dizem 'Ela está péssima'. É muito difícil – há muitas emoções diferentes – as pessoas ficam assistindo cada passo do caminho.”

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Como Grande, Asia Argento foi culpada pelo suicídio de Anthony Bourdain, porque foi fotografada de mãos dadas com outro homem em Roma. Van Pelt disse a VICE que a tendência de culpar mulheres pela autodestruição de um homem é problemática. “O que isso diz sobre a nossa cultura?”, ela questiona. “Isso diz que as pessoas acreditam que as mulheres são mais fortes, mais autossuficientes, mais responsáveis como indivíduos que os homens? Os homens são o sexo frágil? Eles não são responsáveis por si mesmos? Eles não sabem cuidar de si mesmos?”

As vidas dos ricos e famosos fornece uma lente pela qual observar tendências maiores da sociedade, e a onda de mortes de celebridades por overdose nas notícias ultimamente espelha uma epidemia maior de opiáceos que atinge todo os EUA. Segundo o National Center on Health Statistics, overdose se tornou a principal causa de morte para americanos abaixo de 50 anos, e as celebridades não são imunes a isso. “O vício vai te matar não importa o que você faz para viver”, diz Howard Samuels, terapeuta especializado em vício que trabalha com celebridades.

Ele acrescenta que superar o vício raramente é um processo linear. “Tenho muitas pessoas no meu consultório, sejam muito famosas ou não, que estão em recuperação mas aí têm uma recaída”, diz Samuels. “O problema com recaídas é que há uma boa chance de você morrer, e foi isso que aconteceu no caso de Miller. Nos últimos anos, nunca vi tantas pessoas morrerem por vício, em meus 25 anos de carreira. Nunca.”

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Samuel culpa heroína cortada com fentanil, um opiáceo extremamente poderoso, pela epidemia mortal. Ele tem certeza que fama não causa vício, dizendo que a maioria dos seus pacientes são predispostos geneticamente a abusar de drogas e álcool. “Todo mundo trata celebridades como se eles fossem uma raça alienígena, que eles caem numa categoria especial com drogas e álcool, o que não é verdade”, ele explica. Mas ele admite que ser uma celebridade pode exacerbar a luta para ficar sóbrio.

Ele cita questões de confidencialidade, especialmente se um paciente famoso compartilha detalhes pessoais numa sessão de terapia em grupo. Mas mais insidioso é o risco de viciados em recuperação se sentirem tentados a usar drogas de novo por pessoas de seu círculo interno. “Se você sabe que uma pessoa famosa está usando, um jeito de entrar nesse círculo é com uma carreira de cocaína, ou seja lá que droga uma celebridade escolhe usar”, ele diz.

Os problemas destacados pela saga Ariana Grande-Mac Miller são numerosos e complexos. Mas Wanis argumenta que uma mudança na cultura começa com os fãs, que não podem adivinhar como Miller estava se sentindo antes de morrer. “A linha aqui é que temos que parar de culpar outras pessoas pelas escolhas de um indivíduo. Se Mac Miller se voltou para drogas e álcool, não é porque Ariana Grande partiu o coração dele. As pessoas não criam seus problemas. Elas desencadeiam seus problemas. E essa é uma grande diferença”, diz Wanis. Ele aponta que depois da separação deles, Miller desejou felicidade a Grande e assumiu responsabilidade pelas consequências de seu uso de drogas.

“Esse é um momento para os fãs de Mac Miller deixarem algo claro em suas vidas: Pelo que sou responsável?”, diz Wanis. “Sempre culpo coisas fora de mim, ou aceito a responsabilidade por tudo que acontece na minha vida? Você não determina o que vai necessariamente acontecer com você, mas determina, 100%, sua reação e sua resposta. Tudo que Ariana Grande pode dizer é 'OK, não sou responsável. Fiz o melhor que pude' e seguir em frente. É uma questão de compaixão consigo mesmo.”

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