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Como o trap brasileiro encontrou sua identidade sonora

Produtores discutem os caminhos que o som tomou no Brasil antes de se firmar como cena em ascensão no rap nacional.

Meu 2019 começou com um pézinho ainda em 2018. O primeiro lançamento "deste" ano que eu peguei pra ouvir foi o do mineiro Sidoka, que soltou seu álbum de estreia Elevate no dia 28 de dezembro do ano passado. Sidoka, na minha opinião, não é o trapper médio brasileiro: apesar dos assuntos recorrentes de, é claro, grana e drogas, a voz estridente, o flow frenético e a linguagem um pouco mais simbólica do rapper são o bastante para o destacar de seus contemporâneos.

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Mas não foi só o próprio Sidoka que me chamou a atenção no disco. Apesar de os chamados typebeats, instrumentais já prontos que rappers pegam de produtores gringos na internet pra rimar por cima, comporem mais da metade do Elevate, os instrumentais que de fato foram feitos pro disco mostram muita variedade e, ao mesmo tempo, muita coerência com o estilo do Sidoka. "Pergaminho", por exemplo, foi produzida por DJ Vitin MPC, conhecido por suas produções no funk mineiro, cujos timbres também são levados para o disco do colega rapper; "Noite Fria, Pt. II" (produzida por Prxttx) conta com um pianinho com cara de Raffa Moreira typebeat, e a batida psicodélica de "07" ganha uma assinatura do grande Coyote Beatz.

Coyote também é responsável por alguns outros beats em discos que fizeram barulho no ano passado, como S.C.A do FBC, e O Menino que Queria Ser Deus, do Djonga. Ainda durante 2018, também vimos estourar vários sons do Raffa, a Recayd Mob alcançar as dezenas de milhões de visualizações com "Plaqtudum", e o WC no Beat encurtar a já pequena distância entre o trap e o funk com o álbum 18K.

Toda essa safra abundante de novos sons no trap brasileiro me levou a pensar sobre quando eu comecei acompanhá-lo. Meu ouvido de trappeira foi muito treinado pelos rappers gringos e, quando eu tentava ouvir alguma coisa do Brasil há alguns anos, acabava me sentindo um pouco entediada pelos descompassos entre batidas e flows (e não do jeito que gostamos), timbres genéricos e beats que eu já tinha ouvido exaustivamente nas primeiras mixtapes do Young Thug.

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De alguns anos pra cá, porém, isso vem mudando substantivamente. Além dos artistas que citei acima, poderia falar de mais algumas dezenas (Diomédes Chinaski, Denov, Delatorvi, Baco Exu do Blues, Yung Buda, DaLua, Luiz Lins, KK Ousado, só pra citar alguns) que, de maneiras diferentes e em proporções diferentes, definiram o que ouvimos e identificamos por trap no Brasil. E há também os nomes que estiveram por trás desses artistas e não menos – talvez até mais – tiveram responsabilidade por esse som: os produtores e beatmakers.

O surgimento do trap brasileiro foi recentemente alvo de brigas e arrastadas online do rapper vitoriense Naio, que fez um post no Instagram dizendo que a capital do Espírito Santo era a cidade natal da primeira cena trappeira nacional e foi prontamente refutado por Rare Kidd e Raffa Moreira, que estão nesse corre pelo menos desde 2014. É inegável que Guarulhos foi onde o ritmo ganhou uma casa e uma forma no Brasil, mas foi preciso um marco inicial para que ele se espalhasse nacionalmente.

Em agosto de 2016, o assunto mais falado do rap brasileiro há dois anos era colocado no mundo: "Sulicídio" explicitou toda a desatenção dada ao rap nordestino e abriu as portas para que, hoje em dia, Baco tenha se tornado um dos rappers mais hypados do país. Tudo isso por cima de um beat trap agressivo, com uns sintetizadores atmosféricos e uma mistura de pagodão baiano na ponte e no final.

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"Nessa época, a gente conseguiu fazer as pessoas verem que era possível misturar ritmos. Muita gente quer uma fórmula, e a gente criou uma", fala o pernambucano Mazili, que produziu a faixa junto com Sly. A fúria da dupla (ou quarteto, se contarmos com Diomédes e Baco) inspirou uma horda de produtores e rappers a seguir a onda trap-nervoso apresentada por "Sulicídio" em lançamentos cada vez mais inspirados por ritmos brasileiros – JNR e Nansy Silvz, que acabou sendo responsável pela produção de Esú, primeiro disco do rapper baiano, foram alguns dos nomes que entraram nesse jogo.

Se o trap brasileiro já esquentava, este foi o momento em que ele começou a borbulhar. Mesmo o underground que já investia no som há alguns anos emergiu com novas sonoridades e ideias, mas ainda embebido pela estética do trap de Atlanta que, nessa época, já era gigantesca nos Estados Unidos. "Na verdade, tudo o que você denomina trap aqui é uma emulação do que acontece na gringa porque o gênero surgiu lá. [Por isso], as pessoas demoraram pra assimilar e consumir trap aqui", fala Rare Kidd, que produziu na época sons como "Eles Me Devem" do Raffa e sua própria "Na Cena". Na época, uma galera como a Recayd Mob (que lançou no começo de 2017 a tape Calzone Tapes) e DaLua (com o trampo Nirvana I, de 2016) também fazia um som que trabalhava dentro dessa estética.

Aos poucos, porém, as associações com Atlanta deram lugar a uma sonoridade que puxava mais para referências locais e diversas. Em fevereiro de 2018, MC Igu lançou seu álbum de estreia Subliminar e escolheu como principal single o som "Buenos Aires", produzido por Rare Kidd a partir de um sample da faixa "Tango to Evora", da cantora canadense Lorenna McKennitt; a própria Recayd, no ano passado, alcançou números impressionantes com "Plaqtudum", que inegavelmente, no beat, no flow, e no conteúdo lírico, carrega uma influência forte do funk putaria. Lucas Spike, produtor do som, acha que o movimento foi natural pro grupo. "Tanto em 'Flack Jack' quanto em 'Plaqtudum' nós geramos uma identificação com o público através dessas referências de funk que ouvíamos quando éramos menores. O trap é global, e em qualquer país você vai encontrar uma galera que faz a cena de trap local. É uma questão de contexto", diz.

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A história de amor entre o trap e o funk vai cada vez mais longe e foi aprofundada no ano passado pelo produtor capixaba WC no Beat, que celebrou a junção dos gêneros com o álbum 18K, uma dosagem perfeita dos dois e uma casa para a colaboração de nomes tão diferentes quanto BK', MC Lan, Rincon Sapiência, MC Pocahontas, Xamã, Don Juan e tantos outros. "Não temos mais separação entre o rap e o funk, e sinto que abri portas para estilos que hoje estão em ascensão", fala o produtor. Essa aproximação fica ainda mais clara na cena de Belo Horizonte (e eu já falei sobre isso nesta matéria), de onde Djonga e MC Rick lançaram "Me Orienta" em 2017, produzida por Velho Beats, e onde Vitin MPC produziu o som do Sidoka.

"Rapper ama funk e funkeiro ama rap. Como os dois estão em ascensão, você acaba fazendo várias amizades de estilos diferentes e faz parcerias pra misturar os estilos musicais", comenta Vitin, que diz conhecer Sidoka desde a segunda série mas nunca ter, até então, pensado em trabalhar com o amigo. "Como [o trap] engatinha em relação aos outros países, as pessoas precisam de um facilitador para poder assimilar. Você sempre tem que estar trabalhando com a margem de entendimento que o público vai ter com o seu som, e o funk foi realmente necessário pra isso", fala Nagalli, um dos produtores ascendentes desta nova fase do trap.

A aproximação com o funk abriu o caminho para que o gênero chegasse mais longe – o que, por consequência, possibilitou que novos produtores emergissem. Nagalli é um exemplo: o produtor é responsável por, entre outros grandes sons, a parceria "Preto Rico" entre Dfideliz e Kiaz e "Para Sempre 21", do Delatorvi. Outro nome que despontou com força, principalmente no ano passado, foi o paulista Celo. Além de produzir alguns dos maiores singles do Raffa Moreira até agora, como "Devia Ter Feito Isso Antes" e "10K", Celo também é responsável pelo hit "Nicole Bahls", do MC Igu, Derek e Klyn, um grande lançamento do trap brasileiro já em 2019.

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"Às vezes nem cai a ficha que [esses beats] eu fiz daqui do meu quarto", fala Celo. "Os ouvintes ainda estão passando por uma espécie de 'adaptação' e eliminando a velha mentalidade de que o hip-hop precisa ser lírico ou passar alguma mensagem. Às vezes, o próprio beat já é uma mensagem."

O trap se firmou como estética sonora no Brasil só muito recentemente, mas é impossível negar que ele não demorou a dominar o nosso rap mainstream (se é que podemos chamar deste jeito). Emicida, Haikaiss, Costa Gold, Rashid, Rincon Sapiência, até mesmo os Racionais no grande Cores & Valores rimaram por cima do som puxado do underground, mas que começa a fazer ainda mais barulho com a graça de artistas maiores.

Grandes exemplos são BK' e Djonga (acompanhados por produtores como Coyote Beatz, El Lif, JXNVS) que já se dão ao luxo de atingir o teto do underground e aproveitam a oportunidade para levar com eles artistas menores – a primeira vez que ouvi falar no Sidoka, por exemplo, foi graças à faixa "UFA", d' O Menino Que Queria ser Deus – e novos sons. Baco Exu do Blues, autor do possível maior álbum de rap brasileiro do ano passado, Bluesman, também trouxe atenção ao beatmaking brasileiro com o disco, produzido pelo brasiliense JLZ e a dupla paulista DKVPZ.

Lá em 2014 e 2015, Karol Conká já estava trabalhando com Tropkillaz e rimando por cima de trap-EDM, gênero que Paulo e Matheus, do DKVPZ, disseram ter sido o fundador do grupo. Já nessa época, o grupo integrou uma compilação da BRUK // Broken Beats que, juntamente com selos e coletivos como a Beatwise Recordings e Trap, Funk e Alívio, ajudavam a mapear os produtores do Brasil. Dessa galera, mais gente também acabou trabalhando com trap e rap: Sants produziu "Deixa Brilhar", faixa do disco Eletrocardiograma que a Flora Matos lançou em 2017; Cesrv foi responsável pela mixagem e masterização de Bluesman.

"Lá em 2014, havia bem menos variedade de lançamentos devido à falta de produtores fazendo esse tipo de som. Atualmente isso não é mais um problema; muito artistas vivem [de beatmaking]", fala Paulo. "Ainda rola uma emulação do trap gringo, mas estamos no caminho de encontrar uma identidade mais brasileira nesse cenário", completa Matheus.

É difícil afirmar se há futuro para a cena de trap brasileira para além da estética já abraçada pelo mainstream, mas os últimos anos parecem de fato apontar caminhos cada vez melhores para os artistas que vivem nesse meio – inclusive os produtores, que se beneficiam de um reconhecimento cada vez maior. "No trap, o instrumental é um elemento essencial. Os produtores de Atlanta como Zaytoven, Mike Will Made-It, Metro Boomim e Lex Luger mudaram completamente a imagem do produtor de alguém que ficava apenas nos bastidores para um ícone do movimento", fala Lucas Spike. E completa: "O mercado do trap no brasil cresceu bastante no ano passado, e ainda há muito espaço a ser explorado. Isso possibilita e ajuda a intensificar o surgimento de novos artistas voltados pro estilo, e consequentemente novos beatmakers na cena."

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