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Drogas

Como é ser um dos mais requisitados médicos de maconha terapêutica do mundo

"Se nossas gavetas tivessem maconha em vez de remédios de tarja preta, todos estariam melhor", me disse o sorridente ‘Dr. Erva’.

Esse texto foi retirado do livro The Lonely Hedonist

Em um prédio renovado localizado na região mais hipster do bairro de Skid Row, em Los Angeles, nos Estados Unidos, o Dr. Erva abre suas portas.

Às dez da manhã começa o pi pi pi: o som vem de um dos computadores conectados em um dos dois cubículos à prova de som construídos no centro do loft de 92m². O apartamento também conta com uma cozinha, uma sala de estar e o quarto onde o doutor dorme, separado do resto da casa por cortinas. A fila virtual de pacientes já se formou, dobrando a porta e se estendendo até o corredor de mármore branco — nela encontram-se uma mãe de 43 anos com síndrome do pânico; um homem de 59 anos com dor nas costas; uma recepcionista com dor crônica no joelho e um universitário que sofre de insônia.

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A maioria desses pacientes foi encaminhada até lá por intermédio do Eaze, um serviço de entrega de maconha que atende mais de 90 localidades em toda a Califórnia. É só entrar no site e fazer seu pedido. Sua maconha, óleo de haxixe ou bolo de cannabis são entregues na sua porta, geralmente em apenas meia hora.

Mas antes — ou pelo menos até que o uso recreativo da maconha seja legalizado pelo estado da Califórnia — você precisa de um cartão de Identificação de Usuário de Maconha Medicinal (ou MMID, na sigla original).

É aí que entra o Dr. Erva.

P i pi pi

Don Davidson aperta uma tecla e o rosto do seu primeiro paciente invade a tela do computador.
"Muito prazer!", diz ele, recitando seu discurso padrão em alta velocidade para o microfone embutido, soando ao mesmo tempo animado, profissional e talvez um pouco agitado.

Davidson, 31 anos, é formado pela Faculdade de Medicina da Universidade Virginia Commonwealth (VCU, na sigla original), nos EUA. Ele gostaria de ser conhecido por uma alcunha mais digna do que Dr. Erva; algo como Doutor Cannabis ou Médico da Maconha, quem sabe. Mas quando pensam nele, é isso que falam: Preciso marcar uma consulta com o Dr. Erva. Ele espera algum dia atender usuários de maconha medicinal em todos os estados do país — além de, é claro, ter sua própria linha de maconha e derivados.

No momento, Davidson é o médico-chefe da EazeMD, um serviço de telemedicina da Califórnia que conecta profissionais da área da saúde a pacientes em busca de um cartão de usuário de maconha medicinal. O Eaze não lucra com essas indicações, mas os pacientes aprovados ganham acesso imediato ao serviço de entrega. Ao fim de cada jornada de trabalho de doze horas, o Dr. Erva e sua equipe rotativa de clínicos de meio período — todos eles atendem em suas respectivas clínicas espalhadas pelo estado — receitam maconha para dezenas de pacientes, que pagam US$40 para ter um certificado reconhecido em todos os dispensários da Califórnia (US$30 pela consulta, US$10 pelo certificado, que é enviado para a casa do paciente).

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Há apenas três anos, para conseguir um desses certificados era necessário ir até um consultório físico. A decoração desses consultórios costumava ser decadente, e os médicos, idem. Alguns desses consultórios sequer tinham médicos. Nesses, você sentava na frente de um computador em uma sala vazia e esperava até algum médico aparecer. Um certificado costumava custar US$150 ou mais. Além disso, você era obrigado a ir buscar seu cartão pessoalmente.

O EazeMD já existe há dois anos; no momento, ele é o maior serviço de telemedicina especializado em maconha medicinal em funcionamento na Califórnia. A fila de espera deles fica lotada sete dias por semana, das 10 da manhã às 10 da noite. Davidson conta que costuma atender 60 pacientes antes das 15h. Depois das 16h as pessoas começam a sair do trabalho e o número de pacientes se multiplica; esse ritmo se mantém até o fim do expediente.

Com 1,88 de altura e 90 quilos, o jovem médico ocupa cada centímetro de seu cubículo, que parece um pouco maior graças à parede de janelas encardidas que dão para o pátio central do prédio, onde é possível ver as janelas dos outros apartamentos.

Davidson, um ex-tenista semi-profissional, veste uma gravata Hugo Boss e uma camisa social da mesma marca que valoriza seus músculos, cultivados no CrossFit. Na mesa de vidro, metade do seu café da manhã low-carb — ovo cozido e abacate — permanece intocada. Às vezes, quando ele está atrasado, ele abre mão da calça social e de suas botas Varvatos e decide trabalhar de samba-canção e chinelo. Para seus pacientes, ele é apenas um rosto sorridente em uma tela de celular ou computador — uma foto de perfil simpática com olhos azuis e um topete alourado.

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"Sou o Dr. Davidson", diz ele, "e essa é uma consulta tranquila, não precisa de preocupar. Vamos começar com uma lista de perguntas".

O Dr. Don Davidson faz parte de uma geração de médicos que reconhece o valor terapêutico da maconha. Além disso, ele é um empreendedor que entende o poder que sua licença médica confere a uma das indústrias mais expoentes do país — avaliada em 2016, segundo uma matéria da Forbes, em US$7.1 bilhões, com um crescimento de 26% relativo ao ano anterior. Davidson, que se negou a revelar sua renda atual, fechou recentemente um contrato com um grupo de investidores que deixou um de seus sonhos — uma marca própria de produtos de maconha — um pouquinho mais real.

Filho de um ortopedista e uma modelo fotográfica chamada Kathy Loghry, Davidson cresceu na cidade de Richmond, no estado da Virgínia. Em seus anos de graduação na Universidade James Madison em Harrisonburg, Virgínia, Davidson, um estudante de medicina com modesto histórico de vitórias como tenista do time da universidade, investiu em seu primeiro negócio de sucesso: uma empresa de cookies caseiros criada por ele e seu irmão mais velho. Desde então, a empresa se tornou uma franquia.
Como muitos dos estudantes laricados que compravam seus cookies, Davidson também fumava maconha — hábito que permaneceu mesmo depois da formatura. "Eu não era muito de sair", diz ele. "Minha média era 3.9. Eu estudava, trabalhava, jogava tênis. E nas horas vagas eu fumava maconha. Um pouco de cannabis nunca me fez mal, nem me transformou num chapado. Era mais saudável que beber."

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No fim do seu primeiro ano de universidade, Davidson fundou uma empresa que oferecia passeios de caiaque pela Baía de Chesapeake. Mais tarde, quando ele trabalhava como pesquisador na Universidade do Arizona, ele criou um serviço de consultoria amorosa, o Dr. D Lifestyle.

"Era parecido com o filme Hitch", conta ele, citando o filme sobre um conselheiro amoroso interpretado por Will Smith. "A gente dava conselhos sobre tudo, desde como aumentar a auto-estima, como se vestir e como malhar — resumindo, tudo sobre estilo de vida masculino. Dicas de cozinha, de moda, do que dizer, de onde ir. Um dos clientes chegou a pagar para que eu fosse até a Malásia. Os negócios iam muito bem."

Nesse meio tempo, conta Davidson, enquanto ele desenvolvia uma pesquisa sobre a prevenção de pneumonia associada à ventilação mecânica, ele começou a ler sobre as mudanças radicais que estavam revolucionando a indústria da maconha medicinal e recreativa.

"Eu entendi na hora que aquilo era o futuro", diz Davidson com uma risadinha.

"Os artigos científicos sobre o assunto são fascinantes. A cannabis tem diferentes usos: muitas pessoas fumam maconha em vez de tomar ibuprofeno todo dia ou em vez de tomar remédios para dormir. Algumas pessoas consomem doses diárias altíssimas de óleos ricos em CBD (também conhecido como canabidiol, a substância analgésica presente na maconha) como tratamento auxiliar do câncer. Outras pessoas usam o canabidiol para tratar convulsões, ou para controlar os efeitos da doença de Crohn. É muito simples: é melhor permitir que essas pessoas tomem três ou quatro gotas de óleo de cannabis a cada oito horas para aliviar a dor, conseguir comer ou pegar no sono, ou seria melhor tratar essas pessoas com Celebrex, Wellbutrin ou Xanax?"

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Às dez da noite Davidson fecha seu laptop; o pi pi pi chega ao fim. Embora sua gravata ainda esteja alinhada, o calor amarrotou sua camisa social e murchou seu topete. Na sua mesa há um pote vazio de iogurte, um energético e alguns nuggets de frango que ele assou entre uma consulta e outra— ele não sai do apartamento desde a noite anterior.

Todas suas consultas são protegidas pelo sigilo médico — Davidson só pode me contar fatos muitos genéricos sobre seus pacientes. Cada consulta dura entre cinco e dez minutos. Durante esse tempo, ele e seu paciente conversam sobre questões de saúde, sintomas específicos e as vantagens de determinado tipo de terapia em relação a outros. Em alguns casos, Davidson encerra a consulta enviando links e PDFs educativos. Outras vezes, ele incentiva o paciente a marcar um retorno para esclarecer possíveis dúvidas e compartilhar seus resultados.

Ao longo do dia, alguns pacientes ligam de alojamentos universitários, cozinhas ou escritórios. Outros usam seus smartphones — Davidson conta a história de um paciente que ligou para ele enquanto dirigia (a consulta só continuou quando ele parou o carro). A maioria desses pacientes, cujas idades variam entre 19 e 78, se queixava de enxaquecas, ansiedade, dor e insônia. Umas das pacientes, uma mulher com câncer, usava a maconha para aumentar seu apetite. Outras queixas incluem dismorfia corporal, dores na lombar e estresse pós-traumático.

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Davidson conta que a característica comum entre seus pacientes é uma "desconfiança em relação à medicina ocidental e às grandes empresas farmacêuticas". "Eles testam tudo o que podem antes de tomar um remédio controlado. Eu não atendo só hippies que acreditam no poder medicinal dos cristais. Muitos dos meus pacientes conhecem os efeitos dos remédios tradicionais. Eles têm amigos que ficaram viciados em analgésicos depois de uma cirurgia. Eles conhecem pessoas como Prince e Rush Limbaugh — afinal, os Estados Unidos está passando por uma epidemia de opiáceos. Se nossas gavetas de remédios tivessem maconha em vez de remédios de tarja preta, todos estariam melhor."

No início de seu interesse pelo assunto, Davidson não esperava comandar um serviço de telemedicina, muito menos trabalhar doze horas por dia. No último ano, desde que ele abriu seu consultório, ele tem trabalhado sete dias por semana. As lâmpadas fosforescentes penduradas no teto fazem com que seus olhos pareçam fundos. Faz tempo que ele não se exercita. Ele não sai tanto quanto deveria.

Mas ele sabe quando um negócio valhe seu tempo e investimento. "Na minha residência em cirurgia me acostumei a dormir no chão, comer merda e levar broncas", ri ele. "Pelo menos agora eu trabalho para mim mesmo".

Davidson sai do cubículo e segue em direção à sala de estar do loft, ocupada por dois sofás e uma TV. Sua equipe administrativa — uma enfermeira formada na Universidade do Sul da Califórnia com experiência em venda de maconha medicinal e um técnico de informática que às vezes dorme no sofá depois de um longo dia de trabalho — foram para casa.

O apartamento está em silêncio. Sons da vida doméstica sobem do pátio e atravessam as janelas abertas — música e risadas, o tinir dos pratos, o latido de um pequeno cão. Uma das prateleiras é ocupada por uma série de bugigangas usadas em vídeos educativos — um vaporizador grande, um bong, uma série de vape pens usadas para fumar óleo de haxixe. Em outra, encontra-se uma coleção de suplementos — vitaminas, proteínas em pó e energéticos.

O chão está coberto de caixas semiabertas. Os negócios vão bem. O contrato de aluguel do apartamento está prestes a vencer. Ele pretende transferir a sede de sua empresa para uma casa com vista para o mar em Malibu. Em suas palavras: se ele vai passar todos os dias enfiado em um cubículo atendendo pacientes pela Internet, "que pelo menos seja na praia, na frente de uma janela bem grande".

Davidson se joga no sofá e relaxa, afrouxando a gravata. Ele olha para o relógio e suspira. Em 12 horas, ele vai ter que fazer tudo de novo.

Pi. Pi. Pi.

Ele estica o braço e pega o bong.