Jovem, negro e pobre: as vítimas de homicídio em Fortaleza
Todas as ilustrações por por Clementina León

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capital criminal

Jovem, negro e pobre: as vítimas de homicídio em Fortaleza

O Brasil possui o maior índice de homicídio do mundo. Mais da metade das vítimas têm entre 14 e 24 anos, 70% negras. Esta é uma história oral de como se mata e morre em Fortaleza, a cidade onde mais jovens são assassinados no país.

Matéria originalmente publicada na VICE México.

Capital Criminal faz uma viagem por sete cidades dos sete países mais violentos da América Latina. Brasil, Venezuela, Colômbia, Honduras, El Salvador, Guatemala e México concentram 34% dos assassinatos de todo mundo. Esta série, porém, não é mais um ranking com índices de homicídios. É uma investigação do projeto latino-americano En Malos Pasos de Dromómanos e Instinto de Vida numa parceria com a VICE News na tentativa de entender por que e como se mata em nossas ruas.

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Primeira parada: Fortaleza (Brasil).

Falam em sobrevivência. Sobre suas infâncias. Dos mortos que viram. Estão em uma sala de aula. Nas paredes há vários desenhos: uma árvore da vida, um jovem negro. Falam Vítor Pereira (19 anos), Jacqueline Márques (22 anos), Carolina Ximénes (15 anos) e Suyanne Olivera (24 anos). Todos vivem em Bom Jardim, uma das zonas mais perigosas de Fortaleza, a capital mais violenta do Brasil – o país com maior número de homicídios do mundo. Entre 2007 e 2014, 1.200 pessoas morreram assassinadas nessa região. A morte reside em uma periferia cheia de buracos e grafites que os traficantes usam para marcar território e transmitir suas ameaças. Eles cresceram aqui.

- Há algumas semanas, eu estava andando na rua e alguém deixou as pernas de um corpo na esquina. Fui espiar. Fiquei curioso. Depois voltei para casa.

- Quando era criança, tinha tanto tiroteio que a minha família colocava o colchão no chão e a gente se deitava pra não tomar bala perdida.

- Já perdi um amigo que morreu assim. Me assustei muito. Passei um ano com trauma, até que vi outro e outro e outro e outro.

- Se for contar todos, morreram uns oito amigos.

- Quantos amigos meus morreram? Uns cinco que eu gostava muito, que eram próximos. Todos da periferia.

- Começaram vendendo droga, se metendo com gente que não dava futuro. Se envolveram com o traficante ou com a mulher… ou não pagaram a quantidade de droga que levaram e foram mortos.

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- Às vezes, o único jeito de sustentar a família é através da droga.

- Um vizinho que morava na minha rua morreu porque devia R$ 5 pra um traficante.

- Já vi três pessoas morrerem. Meu primo, meu vizinho e um colega da escola, que também estava metido com drogas. Usava, não pagava…

- A realidade não é brincadeira. Alguém que escolhe isso só tem dois destinos: cadeia ou cemitério.

- Quando vi que as pessoas morrem por uma miséria de dinheiro, soube que não queria isso pra mim.

- Você se acostuma com a morte dos amigos. Já sabe que, morando na periferia, vai acontecer de novo.

- Quando meu primeiro amigo morreu, tínhamos 16 anos. Quando éramos crianças, brincávamos na rua. Ele era muito ativo, sempre fazia piadas. Quando foquei nos estudos e parei de viver na comunidade, ele mudou completamente. Já tinha tatuagem, falava com gírias que não dava pra entender, eu nem reconhecia ele. Ele dizia: “não tenho trabalho, não tenho estudo, tenho que ajudar minha família”. Era aviãozinho, ou seja, levava uma quantidade pequena [de droga] e ia distribuindo de pouquinho. Nunca pagava pelo que usava. Não dava lucro pro tráfico. Disseram que se ele não pagasse tudo, ia morrer. Ele rezava pra não acontecer, mas não tinha o que fazer.

- O tráfico só avisa uma vez. Chega, ameaça e diz que se você não pagar tal dia, já sabe…

- A primeira vez que vi um morto eu estava em um orelhão. Chegaram em um carro, apontaram pra ele, assim bem de perto, como se fosse aqui do lado, e deram um tiro nele: PÁÁÁÁ. Fiquei paralisado. Eu tinha 11 anos.

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- Atiraram na minha mãe do outro lado da rua. Um cara, primo de um colega, estava brigando com outro por causa de um pastel. Eu era criança. Fui buscar um hamster na casa de um amigo e estava esperando do lado de fora com minha mãe. Estávamos na esquina, na parede. E passaram esses caras brigando, até que escutei um tiroteio. E de repente minha mãe caiu no chão. Levou um tiro nas costas. Fui chamar a minha tia. Um cara levou minha mãe pro hospital. Todo mundo me culpou porque eu tinha saído na rua. Não saí mais de casa até fazer 15 anos. Só ia pra escola.

- Também atiraram na minha mãe. Ela estava voltando da igreja com minha tia. Se meteu num fogo cruzado. Os aviõezinhos disseram pra ela sair, mas ela não entende o jeito de falar dos traficantes. Continuaram caminhando. Minha mãe só sentia as balas passando. Levou uma no tendão. Tá ali até hoje.

- Outro dia eu estava indo pra um show de reggae aqui na praça. Vi que mataram uma pessoa, mas nem parei. Fui pro evento.

- Morre muito jovem no nosso bairro. Muito, muito, muito.

- Nós da periferia gostamos de estar sempre na rua.

- O crime marca território. Tipo, daqui até aquela esquina você não pode ir. Não somos livres.

- Dá raiva. Se tenho que fazer um trabalho pra escola e preciso comprar um material, mas a loja fica em um lugar onde não posso ir, é perigoso. Eu vou mesmo assim porque não devo nada a ninguém, mas penso: podia morrer aqui sozinho porque estou comprando um material.

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- Se você está em um lugar onde não pode andar e veem sua tatuagem, ou vão chegar e perguntar o que você tá fazendo ali, ou não vão nem perguntar antes de te bater e te matar.

- Acabo de ir para uma entrevista de emprego em um supermercado. Precisei cortar o cabelo, era grande, preto, comprido, eu estava contente. Tenho saudades do meu cabelo. Me disseram pra cortar porque iam ter preconceito. É sempre assim.

- Nos criminalizam.

- Eles veem que sou negro e da periferia e tanto faz se falo de um jeito formal, se me comporto bem, se tenho mais qualificação que os outros entrevistados, não vão me contratar.

- Eu queria ser professor de informática.

- Em pleno século XXI, as pessoas têm esse preconceito contra o jovem negro da periferia.
- Sempre tivemos essa coisa de preconceito por religião, por droga, por ser mulher…

- Em uma aula de cidadania eu disse que sou umbandista e um menino me disse: “Você é filha do diabo, você adora Satanás”. Quando saímos da escola, ele me atirou no chão e começou a me bater. Eu nem entendia por quê.

- Se não temos dinheiro, roupas caras, as pessoas já nos olham diferente.

- Vejo que as pessoas ricas são muito fresquinhas. Sinto que a periferia é mais acolhedora.

- Meu pai batia na minha mãe. São muitas lembranças ruins. Teve um dia que minha mãe não aguentou mais e quis tacar fogo em tudo. Meu pai trabalhava com pintura, tinha galões dentro de casa. Ela derramou no quarto e foi pra lá com a gente. Choramos muito. Mas ela não conseguiu. Não colocou fogo. Minha mãe fugiu comigo e com minhas irmãs. Eu tinha sete anos.

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- Minha mãe cuida de mim como se eu tivesse nove anos. Faz tudo por mim. Não dorme até eu chegar em casa. Eu chego e vou direto para o computador, mas ela levanta da cama pra me fazer comida, não importa se é uma da manhã. Prepara tapioca pra mim. Tem medo que aconteça alguma coisa.

- Aqui o homicídio anda muito perto. Vivemos muito perto de onde se morre.

***

Na última década, a violência no Brasil se deslocou para as cidades do Nordeste. Em Fortaleza, entre 2003 e 2013, a taxa de homicídios entre crianças e adolescentes cresceu 755%.

Há 20 anos, ocorriam no Brasil 13 mil homicídios anuais e a população carcerária era de cerca de 190 mil pessoas. Hoje, são 60 mil assassinatos e 622 mil presidiários. Um grupo de especialistas elaborou o estudo Cada Vida Importa para saber por que morriam tantos jovens no país. O mapa de homicídios de Fortaleza descreve um U quase perfeito, longe da praia e dos hotéis. Falam o deputado Renato Roseno (Psol) o pesquisador Thiago Holanda, do Instituto Oca, autores do relatório. Também falam o capitão Wagner Sousa (PR), antes policial militar e hoje deputado, e o secretário de Segurança do Ceará, André Costa.

- Veja o mapa, apenas 4% da cidade [de Fortaleza] concentra 33% dos homicídios. E quem morre? O jovem negro e pobre da periferia.

- A morte não é um acontecimento, é um processo.

- A grande mídia simplifica: disputa, tráfico de drogas. Mas há dinâmicas muito mais complexas e profundas.

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- Mais da metade dos mortos eram filhos de mães adolescentes. 70% tinha abandonado a escola ao menos seis meses antes de morrer.

- O lugar onde você mora é importante. Onde tem as maiores taxas de violência também tem dengue, desemprego, alto risco social e sanitário.

- Essas mortes são abandonadas. Dos 1.573 processos de homicídios de adolescentes, só 2,8% foram solucionados.

- Mais de 12% dos homicídios ocorreram diretamente por disputas do tráfico. A dinâmica é outra: eu estou armado e você também. Temos um problema entre nós. Como resolvemos? Com bala.

- A partir de 2015, as principais facções criminosas do país fizeram pactos para dividir o território: “esse bairro é seu, esse é meu, você trabalha aí, eu aqui”. O objetivo era evitar que a polícia entrasse, porque isso interferia com o tráfico.

- No final de 2016, começamos a ter problemas nos presídios do país. O pacto foi rompido. Mais uma vez, o crime está tentando ocupar os espaços.

- Se houvesse um pacto, não haveria homicídios. Um dia você não tem nenhum homicídio, no outro tem 10. Que tipo de pacto é esse?

- Aqui tem o Primeiro Comando Capital, o Comando Vermelho, os Guardiões do Estado, e também se fala na Família do Norte. Mas são grupos sem organização, sem líderes. Não têm capacidade para fazer um pacto.

- Com nossa lei, às vezes um jovem mata alguém e é solto dentro de 24 horas.

- Muitos homicídios têm a ver com brigas entre facções criminosas, mas não é só isso. Também é uma questão cultural da região. As pessoas abusam do álcool, das drogas, e brigam. Isso acontece muito no interior. Todo mundo anda armado com uma faca, um revólver.

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- Também tem muito linchamento. Alguém assalta e as pessoas pegam o ladrão e matam na rua.

- A morte começa com o abandono. Vi um vídeo de uma mãe que dizia: “Meu filho começou a morrer aos 13, e eu perdi ele de fato aos 19. Eu já sabia que ele ia morrer”.

***

Chove dentro e fora do Centro Educacional São Miguel, uma unidade de internação onde 69 menores infratores cumprem suas penas. Há celas vazias porque, mais que goteiras, pequenas cachoeiras caem do teto. A água chega até os tornozelos. Em outro setor, garotos estão apinhados de seis em seis dentro das celas. Alguns se atiram contra as grades com entusiasmo adolescente para contar suas histórias de crime. Outros estão comendo. Um garoto grita que está preso porque matou um policial. Um grupo joga futebol no pátio encharcado.

Os garotos costumam passar a maior parte do tempo sem sair para o pátio porque o centro não pode garantir que não irão fugir: nos últimos três anos, 850 adolescentes fugiram dos centros educativos de Fortaleza. Em São Miguel há garotos do Primeiro Comando Capital (PCC), do Comando Vermelho (CV) e do Guardiões do Estado (GDE), as três facções que disputam território e o controle do tráfico de drogas na cidade. Falam três menores: um está aqui por tráfico de drogas, outros dois por homicídio. Também fala Francisco de Assis, que tem 19 anos e está no centro há dois anos por estupro e homicídio.

- Se eu tive infância? Tive infância entre os cinco e os dez.

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- Entrei pro crime por necessidade, aventura e prazer. Tinha roupa nova, carros, tinha coisas minhas.
- Eu estava muito bêbado e tenho certeza que o demônio me possuiu, porque se estivesse consciente nunca faria uma barbaridade dessas. Eu cometi um crime, matei uma criança.

- Eu não pensei. Estava com uma arma.

- Eu não estava no tráfico. Era mais pela curtição. Larguei a escola em 2015 e comecei a beber. Droga eu não usava. Nesse dia eu estava bebendo com uns amigos.

- A primeira vez que usei eu tinha 12 anos e meu irmão mais velho, que tinha 18, chegou e me ofereceu. Eu não sabia o que era, achei que era maizena. Cheirei e disse pra ele: “o que é isso?”. Ele me disse que era uma coisa muito boa. Na primeira vez, achei que ia morrer. A partir da segunda eu só pensava em fazer maldade. Naquele mesmo dia também comecei a usar maconha.

- Comprei minha arma na cidade da minha namorada. Custou R$ 2 mil.

- Quando você cheira fica muito nervoso, se alguém te diz alguma coisa você já quer matar. Mas a sensação era boa. A maconha me relaxava. Eu só fumava, dormia e comia… e vendia.

- No meu bairro, todo dia more um. Já vi muitos amigos morrerem. Eu andava com arma porque tinha facções ameaçando o nosso bairro. Estava com muito medo.

- A primeira arma que eu tive foi com 13 anos. Um amigo me deu pra assaltar.

- Só morei com a minha mãe. Com o meu pai, nunca. Tenho uma irmã mais velha e dois irmãos mais novos.

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- Eu já tinha uma filha com ela. Tá com quatro meses. Morávamos juntos no interior do estado. Eu estava feliz de ser pai, não pensava que era muito novo. É a vida.

- Meu pai trabalhava na marinha e minha mãe é dona de casa e cuida dos meus irmãos. Um tem 18, outro 17, outro 21, outro 12 e outro 14. Minha mãe tá muito triste porque tô aqui. Aqui, tudo é sofrimento.

- Por enquanto eu não tive nenhum problema aqui. Porque não me meto com ninguém, mas se alguém se meter comigo eu também não vou ficar parado.

- Até hoje eu peço a Deus que me devolva a memória pra saber o que aconteceu. Não consigo lembrar de nada.

- Estávamos discutindo e ela estava de um lado. Eu peguei a arma. Achei que estava sem bala. O tambor girou e acabou disparando.

- Estávamos todos usando droga e chegaram uns moleques que eu conhecia com uma garota. Me disseram pra levar ela pra casa de um deles. Lá, estupraram e mataram ela. O juiz disse que tinha sido eu, e ele é juiz e eu não posso ser mais que ele. Não posso desmentir a palavra dele.

- Disseram que eu invadi a casa pedindo uma arma. Que precisava dela porque estavam me perseguindo e queriam me matar. Disseram que eu estava com uma faca, que bati a porta, e foi então que aconteceu. O garoto tinha sete anos.

- Estou aqui porque matei minha namorada. Minha filha está, com todo o respeito, com a mãe dela.

- Eu não achava perigoso estar no tráfico. Só pensava que tinha mais dinheiro e podia usar mais droga. Antes eu só pensava em maldade. Agora estou arrependido. Quando sair daqui eu vou trabalhar em São Paulo. Tenho três irmãos lá. Não quero voltar pra minha casa porque, se voltar pra lá, vou fazer as mesmas coisas.

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***

São quatro jovens, nenhum chega aos 30 anos, todos nasceram e moram na periferia. Reúnem-se em um pequeno cômodo do Centro de Vida Herbert Souza, uma ONG situada no Bom Jardim. Em algum momento de sua vida, Cairo Feitosa, Edivania Marques, Víctor Oliveira e Henrique Lim pensaram que essa violência desenfreada não era normal. Por isso, se envolveram com o trabalho social em sua comunidade.

- Nos anos 2000, começamos a nos preocupar com os assassinatos de jovens. A surpresa foi que ninguém queria falar sobre o assunto.

- Está se tornando muito banal um jovem matar outro. E a própria comunidade incentiva isso: “Se fulano fizer isso, pode matar que ninguém vai sentir falta dele”.

- Muitas famílias não têm direito à memória, porque pensam que são famílias de bandidos, traficantes. A vida não importa.

- Quando um traficante morre, o pensamento das pessoas é que a mãe não vai mais ter preocupações, vai conseguir dormir.

- As pessoas não acreditam nessa história de lugar errado na hora errada. Sempre dizem: “ele fez algo de ruim, mexeu com drogas”.

- Queremos saber por que a polícia e o Estado não se interessam por nossos mortos.

- Quem morre e quem mata têm as mesmas condições precárias. É o mesmo perfil. Às vezes, é uma questão de defesa: “vou matar pra não morrer”.

- As facções têm uma visão muito mais brutal da morte. É exterminar o outro. Esquartejá-lo. Acho que há uma desumanização total. Não podemos mais crescer no meio da maldade.

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- Uma pessoa matou um jovem e espalhou seus membros pela rua: a cabeça em um canto, os braços em outro. Passamos uma semana vendo os membros.

- Tivemos um caso em que encontraram um corpo, mas não sabiam onde estava a cabeça. A mãe dizia que queria enterrar pelo menos o que tinha do filho.

- Você vê os grafites nas paredes dizendo “se você roubar um trabalhador na favela, vai morrer”. Parece que eles têm até uma consciência de classe [ri com sarcasmo]. Não tem nada que roubar o trabalhador, tem que roubar o burguês.

- É muito difícil sair de casa e se sentir seguro. Eu vivo na fronteira com a favela. Tenho medo de ir a outros bairros. Mesmo que seja pra trabalhar.

- Aqui as pessoas morrem entre os 14 e os 29 anos. Chegar aos 29 é ter sorte. É muito delicado. Eu mesma não tenho uma condição psicológica muito boa.

- Eu conheço traficantes, conheço pessoas que mataram outras pessoas, mas não preciso fazer o que elas fazem. Meu contato com eles é de dizer boa tarde, boa noite. Venho aqui porque acho que podemos melhorar.

- O crime tem uma dimensão muito importante, mas também há outra questão, que é a resolução de conflitos. Houve um caso pouco tempo atrás em que um garoto não gostou que sua ex-namorada saísse com outro cara e matou ele.

- Quando era pequena, se eu via uma arma, ficava apavorada e passava o dia inteiro tremendo. E hoje a gente acha normal alguém andar armado. Não é normal, mas é muito comum. É uma sociedade doente.

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- A população acha que a solução é mais polícia. Sempre que tem espaço para uma obra, as pessoas pedem um posto de saúde, uma escola e uma delegacia de polícia.

- Quem sofre com abuso policial já não pensa assim. Mas a opinião geral é essa, de separar os cidadãos de bem dos outros. Se a polícia faz alguma coisa é porque aquela pessoa havia feito algo. Mas tem muitos casos que não são assim. Vivemos em uma espécie de território de exceção, porque vivemos em um contexto de barbárie. E a atuação do estado… entra sem ordem de prisão, tortura…

- Às vezes, na frente da mãe.

- Parece que é um lugar onde tudo é permitido.

- A opinião pública não quer saber de nossos mortos, nem como vivemos aqui.

- As pessoas têm uma vida difícil. Gastam uma hora e meia para ir trabalhar e uma hora e meia para voltar. Então, não têm tempo pra problematizar. Os pensamentos mais simples são os que encontram adeptos.

- Para nós, não há uma cultura de paz sem justiça. E para que haja justiça, precisamos melhorar as condições que temos aqui. Hoje, elas não são dignas.

***

Entre 11 e 12 de novembro de 2015, um grupo de policiais militares matou onze pessoas na periferia de Fortaleza. A Chacina da Messejana foi um dos piores massacres em Fortaleza, e ficou marcada como a maior chacina do Ceará. Nove dos mortos tinham entre 16 e 19 anos. Todos eram homens. Os únicos antecedentes criminais encontrados pela investigação até agora foram delitos menores. No total, 45 policiais foram investigados. Até agora, nenhum foi condenado e 17 deles foram liberados. Segundo diversas versões, a matança foi uma resposta ao assassinato, uma noite antes, do policial Valterberg Chaves Serpa.

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Edna Carla Souza, mãe de Álef Souza, uma das vítimas do massacre, está no centro comunitário Cuca Jangurussu, um espaço cultural de periferia onde os jovens se reúnem para jogar futebol, patinar ou jogar capoeira. O lugar está cheio de grafites. Nas grades do anfiteatro onde normalmente são realizados concertos, vários jovens pintaram em letras gigantes a palavra “união” em referência à trégua entre os grupos criminosos na cidade. Ela vem acompanhada de Rómulo Silva, ativista que defende os direitos humanos na grande Messejana. Ele mostra os buracos de bala de um assassinato recente. Nesta conversa, também foi incluída a versão do capitão Wagner Sousa sobre o massacre.

- Imagine policiais encapuzados. Agarraram alguns jovens, mataram eles, torturaram. Não tiveram dó.

- Meu filho era um garoto tranquilo. Era bom, carinhoso, dedicado. Andava de skate, gostava de futebol. Ele dizia que era parecido com o Justin Bieber.

- Foi com seu amigo pra Curió. Jardel chamou ele para ir pra casa de sua tia. Mataram eles ali perto.

- Tem uma rua com wi-fi e todos os garotos vão pra lá. Eles estavam na rua, sentados. Era onze da noite.

- Mataram qualquer um que encontraram pela frente.

- Era para vingar um policial que mataram uns dias antes, acharam que deviam matar eles.

- Essa é a realidade do Ceará. Se você é pobre, negro e da periferia, merece morrer.

- Os 11 mortos tinham ficha limpa.

- Houve uma reunião de policiais para tentar identificar e prender os indivíduos que mataram seu colega. E alguém aproveitou a ocasião para se vingar dos traficantes da área.

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- Mesmo que houvesse pena de morte no Brasil, não pode fazer isso.

- Se você investigar, os 11 mortos tinham relação com um indivíduo, o capitão da área. O primo, o vizinho, o amigo, todos tinham relação com esse traficante.

- Não é que fossem criminosos, mas todos tinham uma relação de parentesco ou amizade com ele. Se chamava Brem. Depois a polícia capturou ele, que resistiu à prisão e foi assassinado.

- Tem 45 pessoas envolvidas. Viram que estavam envolvidas pelo sinal do GPS, por fotos, conversas e áudios. Terão que enfrentar júri popular.

- Eles estão presos, mas eu quero justiça. Que saiam da corporação. E eles não podem sair matando. Não têm esse direito. Polícia é pra trazer paz, não pra fazer guerra.

- Entre os detidos, há policiais inocentes que só estavam passando por lá.

- Eu sei que o meu filho não estava no mau caminho. Tinha 17 anos. Ele dizia que, quando completasse 18 anos, queria servir no Exército. Porque era bonito, porque era alto, e a polícia veio e arrancou os seus sonhos.

- Fiquei sabendo no dia seguinte. Fui pro quarto do meu filho e não vi ele. E perguntei pro pai dele: onde o Aléf tá? E ele disse: “acho que tá na casa do Jardel”.

- Só na rua Curió mataram quatro. Aléf, Jardel, Pedro e Adison.

- Quando seu filho tá envolvido, você já espera. Mas quando não tá… Como você acha que eu fiquei?

- Eles estão tentando incriminar as pessoas até agora, dizendo que faziam parte do tráfico.

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- A polícia do Ceará foi tão covarde que foi lá encapuzada. Adulteraram as placas dos carros, fizeram tudo isso pra matar.

- Eu achava que nunca poderia acontecer nada com o meu filho. Se ele não devia nada a ninguém, por que iria morrer? Eu tinha medo que ele morresse de acidente, morresse por uma queda, morresse de velho, de doença. Mas por causa da polícia?

- Fiquei três meses sem falar. Com vontade de morrer. Só chorava. Ainda choro. Mas agora o luto é na luta.

- Começamos a batalhar para mudar o nome das ruas aqui em São Cristóvão. Colocaram os nomes de Jardel e Aléf.

- Eu vi meu filho pela última vez no túmulo, dentro do caixão. A polícia me tirou o meu filho. Sem um último adeus. Sem um último te amo. Sem um último abraço. Me tirou meu filho e todos os seus sonhos. Toda a vitalidade que meu filho tinha. Toda a alegria que meu filho tinha. A polícia enterrou a juventude do meu filho.

***

O juiz Manoel Clístenes julga há seis anos casos de infância e juventude em uma modesta sala com o ar condicionado no máximo. Antes que as portas se abram e entrem os jovens, em sua maioria homens, muitas vezes sem pais presentes, acusados de tráfico, assalto, homicídio e porte de armas, o juiz diz que seu trabalho às vezes é deprimente. A experiência lhe diz que a maioria dos rapazes acabará na cadeia quando se tornar maior de idade. Ou mortos.

Os delitos entre os adolescentes se agravaram. Anos atrás, a lista de crimes era encabeçada pelo furto, mas hoje o mais comum é assalto a mão armada. O perfil, contudo, segue o mesmo: jovens da periferia com famílias cuja renda não ultrapassa os dois salários mínimos. O pior, segundo o juiz, é que a imensa maioria não demonstra qualquer arrependimento. Só lamenta por ter sido pega. Muitos são reincidentes. Clístenes apresenta dados de impunidade de 92,8%. Lembra que o caso que mais mexeu com ele foi o de um garoto de 12 anos que já havia cometido três assassinatos. As audiências começam. Estes são seus depoimentos.

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- Acho que ele devia ter motivo pra morrer. Vendia droga. O cara tinha 17 anos e já era chefinho. Eu não sei de nada. Só sei que está morrendo muita gente por causa da droga. Estávamos há oito ou nove meses sem mortos. Agora as pessoas dizem que vamos morrer. Mês passado morreram três. Quando morre um, vai um atrás do outro.

- Não fui no serviço social porque não podia ir de chinelo e minha mãe não tinha dinheiro pra comprar sapatos. Então eu assaltei porque tinha um grupo de WhatsApp e eu me ofereci, mas não conhecia os outros [Está com o braço engessado porque, durante o assalto, a polícia lhe acertou dois tiros].

- Estava levando a arma para outra pessoa. Um conhecido me pediu esse favor e eu fiz.

- Me prenderam ontem. Estou em São Miguel. Quando chove, eu durmo sentado. Fugi no ano passado. Do jeito de sempre, pulando o muro. Fui pro interior com uma tia. Me prenderam por causa de um assalto. Vou mudar quando fizer 17 anos. [Sai sorrindo.]

- Há 15 dias teve uma matança e mataram o meu primo, que tinha 22 anos. Quando me prenderam eu estava sentado na rua, na padaria. Estava armado porque lá anda muito perigoso. Tem muito inocente morrendo. Meu primo era trabalhador. Deixou dois filhos, um de 5 anos e outro de 2. Naquele mesmo dia, também atiraram no nosso vizinho. Uma mulher saiu correndo e estava com o filho de quatro meses, que caiu no chão. Bateu a cabeça e foi pro hospital.

- Eu ando armado porque senão me matam. Hoje minha mãe não veio porque não tem muito dinheiro. Minha irmã é deficiente. Sou eu quem cuida dela.

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- Estou há três meses sem visita porque a minha família é de muito longe, uns 400 quilômetros. Lá tem disputa entre o Comando Vermelho e o GDE. Se você entra pro crime, não sai, é por isso que não entrei.

- Não sei ler nem escrever. Não uso drogas. Roubo.

- Eu nunca conheci meu pai. Minha mãe não está aqui porque lá onde ela trabalha não pode atender o celular.

- Seu comportamento não melhorou. Não tem hora de saída nem de chegada. Passa o dia inteiro com os amigos. Quero mandar ele pro Batalhão de Infantaria. Passei 19 anos nas Forças Armadas.

- Pra cada R$ 20 mil de cocaína eu ganhava R$ 10 mil. Eu não misturo. Com R$ 900 de maconha eu tiro o dobro. Conheço muita gente que morreu. Vou me mudar pro campo por causa da situação de lá.

- Pra minha mãe, é melhor eu ficar num semiaberto [o juiz poderia lhe dar a liberdade, bastaria mandar que assinasse.]

[Mãe] Ele não quer tanta liberdade. Está ameaçado. Lá ele pode estudar. Eu tenho dor na cabeça, nos joelhos.

[Filho] Parei de estudar há cinco anos e me envolvi com o crime. Minha mãe parou de confiar em mim. Fui preso cinco vezes. Na última ela nem foi me visitar. Não tenho ninguém além dela. No crime eu perdi amigos, a liberdade e principalmente a minha família. Ganhei dinheiro, mulheres e motos. Tinha inimigos, mas não tenho mais. Eram quatro. Dois morreram e dois estão presos. Sei que poderia estar livre, mas é melhor o regime de semiliberdade. Vou fazer isso pela minha mãe.

[Chamam o último acusado, mas, ao invés dele, aparece sua mãe. Está nervosa.]

- Não sei onde ele está. Foram na minha casa e perguntaram por ele. Sei que está sendo ameaçado.

Não sei nem se tá vivo. Faz 20 dias que não sei de nada. Saiu de casa em fevereiro. Antes falava comigo, agora não. Eu não vou buscar ele porque tenho medo. Estou com o coração na mão. Se não prenderem ele, podem me prender.

Uma semana após coletarmos esses depoimentos, 14 ônibus foram queimados em Fortaleza em um único dia — nos ataques que duraram dois dias, 21 ônibus foram incendiados no total. Segundo a Secretaria de Segurança do Ceará, os incêndios foram feitos por ordem de vários presos, supostamente da facção Guardiões do Estado, porque foram tiradas suas horas de pátio na prisão. Um mês depois, os agentes penitenciários entraram em greve e houve várias rebeliões nas penitenciárias. Ao menos cinco pessoas morreram. Cerca de 50 presos fugiram.

*Os depoimentos das pessoas entrevistadas para este texto foram editados com a intenção de oferecer aos nossos leitores uma melhor compreensão da leitura.

**Os dados deste texto provêm do Relatório Cada Vida Importa, elaborado pelo Comitê Cearense para a Prevenção de Homicídios na Adolescência e do Ministério da Justiça e Segurança Pública do Governo Federal do Brasil.

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