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Identidade

Depois de Pittsburgh, uma nova guerra civil nos EUA parece cada vez mais próxima

Depois do pior ataque a judeus da história dos EUA no final de semana, é hora de ter medo do futuro.
MS
Traduzido por Marina Schnoor
Um policial atravessa a rua na frente da sinagoga Tree of Life, depois de um atentado que deixou 11 mortos em Squirrel Hill, Pittsburgh, em 27 de outubro de 2018.
Um policial atravessa a rua na frente da sinagoga Tree of Life, depois de um atentado que deixou 11 mortos em Squirrel Hill, Pittsburgh, em 27 de outubro de 2018. Foto: Brendad Smialowski/AFP/Getty Images

Aqui vai o que você não vai ler na cobertura que estamos vendo do último surto de violência em massa nos EUA: O atirador de Pittsburgh que matou 11 pessoas num templo no último sábado (27), assim como o terrorista das cartas-bomba simpatizante de Trump, podem ter agido no período que antecederá a próxima guerra civil norte-americana. Essa não é uma guerra com dois lados formais, declarações, bombardeios, um perdedor e um vitorioso — pelo menos não ainda. Mas essa disputa — sobre o que significa ser americano, uma ruptura que ainda não se abriu totalmente — vem fermentando há algum tempo. E por muitas razões (uma delas, claro, o medo intergeracional que meus bisavós e avós trouxeram quando fugiram dos pogroms na Europa no final do século 19), esse atentado a uma sinagoga me enche com um desejo desesperado de fugir. Isso me causa flashbacks do antissemitismo casual dos colegas de escola e das escoteiras na infância, até a praga de pesadelos na adolescência de que eu era perseguida e capturada por nazistas. Isso me fez ligar para amigos canadenses para perguntar se eles têm um quarto sobrando.

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Ainda assim, é algo irracional. Ninguém está vindo me pegar hoje, nem amanhã — eu acho. Mas o atirador de Pittsburgh era racional?

Já estamos familiarizados com o roteiro que se segue quando lemos uma manchete sobre outro atentado com arma de fogo — dessa vez numa sinagoga, por um lobo solitário cheio de ódio e ressentimento, infectado pelo antissemitismo inflamado por ataques da direita a George Soros e a temida figura de Shylock, o financista globalista. Como essa era uma casa de adoração, como o atentado a um templo sikh no Wisconsin em 2012, o massacre racista na igreja Emanuel em Charleston em 2015, e o atentado na Primeira Igreja Batista no Texas em 2017, outras congregações de fé vão fazer doações generosas, para mostrar que seu Deus ama todos os seres humanos. Bandeiras vão ficar a meio mastro e as autoridades prometeram, claro, investigar e processar severamente esse crime de ódio.

Oficiais vão continuar condenando atos assim como um ultraje antiamericano (ou seria uber-americano?), oferecendo suas condolências e preces como incenso no altar da hipocrisia. As pessoas vão continuar fazendo vigílias à luz de velas pelo país, enquanto outras, sem dúvida, vão achar um jeito — como vêm fazendo desde Sandy Hook — de argumentar que o atentado foi forjado para mudar sentimentos políticos (nesse caso, para o lado dos democratas).

Afinal de contas, se você consegue acreditar que pais receberam dinheiro de Geoge Soros para fingir a morte dos próprios filhos para fins políticos, por que pensaria diferente no caso dos judeus?

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Enquanto isso, as velhas discussões políticas já começaram a povoar as páginas editoriais. Artigos de opinião regurgitarm argumentos sobre direitos de armas e regulamentação de porte, já que lunáticos não poderiam causar massacres tão facilmente com uma faca como podem com uma AR-15 — e, do outro lado, que só um homem bom armado pode impedir o que o NRA chama de anarquia e carnificina. A mídia vai propor análises sérias sobre o pico em crimes de ódio e incidentes antissemitas — tipo as “tochas tiki” — nos próximos anos, enquanto outros vão chamar isso de “fake news” pensadas para minar um presidente eleito democraticamente.

E com atenção renovada sobre o Gab, outra plataforma de “liberdade de expressão” (um novo código para discurso de ódio), vamos descobrir de novo como o ódio se espalha como uma infecção mortal dentro do corpo político, e ouvir mais sobre como algoritmos estão encapsulando os norte-americanos em loops de feedback de versões mais extremas de seus pontos de vista. E claro, vamos ouvir nosso presidente, Donald Trump, dizendo que não “não há espaço para violência de ódio”, só para logo depois promover seu slogan divisivo Make America White Again, que convidou nacionalistas brancos que antes se escondiam a marchar em plena luz do dia.

Não é o suficiente.

Tudo isso são sintomas — sintomas, que com certeza se tornaram muito, muito mais visíveis depois de novembro de 2016. Mas o problema subjacente é que somos uma nação profundamente dividida sobre o que significa ser norte-americano. Adam Serwer, do The Atlantic, sugeriu no documentário de Anna Holmes The Loving Generation que os EUA há tempos se aliou a duas visões muito diferentes do que significa ser um norete-americano. Para um lado, ser “americano” é assinar embaixo de uma fé cívica na Constituição, na lei, na privacidade da cabine de votação, e de liberdade e justiça para todos. Esse é o norte-americano de Hamilton de Lin-Manuel Miranda, dos centros urbanos costeiros, uma visão que é aberta para os cansados, os pobres e os refugiados do mundo que querem ser livres e estão prontos para trabalhar pesado. Do outro lado estão aqueles que acreditam que “americano” significa pessoas cujos pais nasceram aqui, que são brancas e cristãs, que querem barrar a porta contra as hordas mais escuras. E sim, alguns desses últimos — como o atirador desse final de semana — acreditam no mais sinistro slogan da história, o arbeicht macht frei.

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O governo dos EUA vem se equilibrando entre essas duas visões há gerações. E não importa que lado esteja ocupando a Casa Branca, o outro vai querer seu país de volta. Um lado estava feliz com a presidência de carne vermelha, estado vermelho, de George W. Bush, invadindo nações que odiavam a liberdade, torturando suspeitos para mostrar força, e mantendo o país seguro com um aparato cada vez maior de “segurança”. O outro lado — os globalistas, amantes da diversidade, os cosmopolitas das grandes cidades — achavam que elegendo Barack Obama eles tinham reconquistado seu país. Agora, se não sabiam antes, essas pessoas sabem que fervendo sob a superfície da presidência de Obama havia uma resistência furiosa: o Tea Party, os racistas, os nacionalistas branco que então elegeram seu chefe.

Mesmo se 6 de novembro, quando acontecem as eleições legislativas dos EUA, trouxer uma onda democrática que coloque mais mulheres, pessoas não-brancas e progressistas na Câmara dos Representantes, a maré vermelha contrária que comanda muitos dos estados menos populosos com certeza vai manter o perfil republicano do Senado. Quer Trump ou um democrata vença a eleição de 2020, o lado perdedor vai ficar ultrajado que sua América moral e “real” novamente está em exílio, enquanto os EUA são liderados por um demagogo perigoso da outra visão — a falsa — do seu país.

Judeus, negros, sikhs, queers, imigrantes e democratas geralmente estão de um lado dessa guerra ideológica. O outro lado — o lado da política de identidade branca cristã — está pesadamente armado. Com isso não quero dizer apenas com armas pessoais; quero dizer que eles tendem a ser aqueles servindo o exército americano ou associados a milícias. E temo que estamos rumando para uma guerra civil.

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Claro, os EUA já enfrentou rupturas sociais terríveis no passado sem cair numa violência aberta que dividiu a nação. As primeiras décadas do século 20 rolaram com desigualdade extrema, fome, protestos, greves, violência policial, atentados anarquistas e medo de uma guerra civil — até que o New Deal de Franklin Roosevelt e o sacrifício nacional compartilhado da Segunda Guerra Mundial uniu os norte-americanos por um tempo. Aí os anos 1950 do conformismo macartista deram nos anos 1960 e 1970 em outra era sangrenta de inquietação social, assassinatos, atentados com bombas, rebeliões e violência policial contra civis que eram negro, brancos, mulheres, gays e hippies.

Talvez a turbulência e ódio de hoje entre essas visões irreconciliáveis dos EUA tenha demorado para acontecer. Talvez esse seja apenas um interlúdio de insanidade que vai se acalmar de algum jeito, de um modo como não conseguimos imaginar agora.

Ou talvez a erupção dos últimos anos de racismo, antissemitismo e xenofobia abertos — agora apoiados pelo governo, reforçados pelo exército, com imigrantes sendo levados para campos ilegais — seja um sinal de que somos uma nação marchando para a batalha aberta e prolongada. Talvez quando pessoas perturbadas cometem (ou tentam cometer) violência baseada na convicção de que o “outro” lado é mau, esses são os primeiros surtos de uma guerra que vai estourar quando as mudanças climáticas começarem a tomar nossas costas e queimar nosso interior.

Espero estar errada. Mas quando as pessoas de uma sinagoga progressista e defensora da justiça social — como a minha — são massacradas por supostamente poluir a América branca, claro que vou pensar em quem fugiu e quem não fugiu da Europa a tempo de escapar do Holocausto. E mesmo não gostando de política de vítima — acredito na política de mudanças — sou uma mulher judia, queer, jornalista e mãe de um jovem não-branco, fatos que atiçam os trolls. E estou com medo.

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Matéria originalmente publicada na VICE US.

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