O movimento #KillTheKing é o #MeToo das mulheres do metal

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O movimento #KillTheKing é o #MeToo das mulheres do metal

Conversamos com as mulheres por trás de um crescente movimento contra a misoginia e a cultura do estupro na música pesada e perguntamos: o metal tem como mudar?

Matéria originalmente publicada no Noisey US.

Durante um festival realizado na casa de shows Södra Teatern, em Estocolmo, no mês passado, os controversos black thrashers do Destroyer 666 criticaram o #MeToo, o movimento global contra violência sexual e misoginia que se tornou um poderoso agente para mudanças sociais. Para ser mais exato, a banda dirigiu toda sua ira contra a campanha #KilltheKing, inspirada no #MeToo e levada adiante por três organizações suecas lideradas por mulheres, com o objetivo de combater assédio, abuso e misoginia em sua cena metálica local. O Destroyer 666 foi citado no manifesto inicial da campanha #KilltheKing como um exemplo de masculinidade tóxica que permeia a cena metal como um todo, o que enfureceu seu frontman Keith “K.K. Warslut” assim que subiram ao palco na cidade natal do movimento. O jornal sueco Stockholm Direkt foi o primeiro a relatar o que aconteceu depois, oferecendo ao Noisey uma tradução de seu artigo.

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De acordo com o Stockholm Direkt, o corpulento líder da banda atacou não só o movimento como as mulheres em si, gritando ao microfone que “algumas mulheres neste país tem um problema conosco. Eu sei do que elas precisam. De um pau duro! Pau no cu dessas sapatonas e sua politicagem. Esta música é dedicada às vagabundas do Kill the King."

Após publicação da material, a casa de shows Södra Teatern se retratou publicamente, denunciando as falas da banda; de acordo com o responsável pelos shows, a apresentação não havia sido agendada pela casa em si, mas por um promoter da região com ligações com o Destroyer 666 — que de acordo com Johanna Carlberg, chefe de comunicação do Södra Teatern, não será mais chamado para se apresentar no local. Entramos em contato com a Season of Mist, gravadora da banda, mas não obtivemos resposta até a publicação deste texto.

Desde o incidente, o Destroyer 666 foi expulso de um evento em 16 de março no DNA Lounge de San Francisco, onde abririam pros suecos do Watain em sua turnê norte-americana. Como relatado pelo site Brooklyn Vegan, o show foi cancelado após seus organizadores tomarem conhecimento do ocorrido em Estocolmo; em seguida, o local do show foi alterado a pedido do Watain para que as duas bandas pudessem tocar juntas como planejado. O Destroyer 666, por sua vez, postou uma mensagem beligerante no Facebook, encerrado com um sucinto “Fodam-se todos! Não nos renderemos!”.

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Ao passo que toda a novela segue à milhão (o que provavelmente não mudará, tendo em vista que a turnê só será encerrada no dia 31 março, no Gramercy Theatre de Nova York), as mulheres que se veem no olho do furacão seguem resolutas e resilientes.

“Não é de surpreender que o Destroyer 666 tenha decidido passar vergonha desse jeito”, disse Emelie Draper, porta-voz do movimento sueco anti-racista Heavy Metal Against Racism e uma das organizadoras do #KilltheKing, em declaração ao Stockholm Direkt após a falta de noção da banda. “É uma pena que eles toquem música tão medíocre e precisem preencher seus shows com choradeira sobre nossa existência. De qualquer forma, isto pode ser encarado como um porquê de o movimento #KilltheKing existir e continuar existindo, e de que nossa mensagem foi recebida”.

Conversei ainda com outra das organizadoras do movimento, Emmy Sjöström do festival Heavy Metal Action Night, uma semana depois, quando ela me explicou a citação ao Destroyer 666, mencionando que a banda é uma espécie de símbolo de tudo que a campanha está combatendo.

“Mencionamos o Destroyer 666 no texto inicial por serem um exemplo bastante claro”, disse em entrevista via Skype. “Com KK falando merda pra tudo que é lado, atacando em especial as mulheres, ainda por cima tocando em Estocolmo e se incomodando com nossa presença,bem, ele sabe que existimos e isso o afetou a ponto de tirar tempo de seu show pra falar mal de nós. Ele só está reproduzindo os comportamentos que criticamos e cavando sua própria cova”.

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Sjöström não está sozinha na luta. Ao seu lado, tantas outras headbangers suecas do Dear Darkness, comunidade metálica feminista do Instagram, bem como os colegas de Draper do Heavy Metal Against Racism, grupo que combate racismo, misoginia, homofobia e transfobia por meio de atos em redes sociais e no mundo real. De acordo com Sjöström, tais mulheres se inspiraram com a ascensão do movimento #MeToo na Suécia, observando paralelos entre estes debates e suas experiências dentro do metal como fãs de longa data e integrantes da comunidade metal sueca. Outras se juntaram à causa: a jornalista especializada em metal Sofia Bergström compartilhou sua vivência em meio à misoginia metálica em um editorial para o periódico sueco Aftonbladet, citando o #KilltheKing como inspiração para falar sobre tema. Além disso, 1.381 outras pessoas assinaram a petição #KilltheKing que deu início à campanha.

“A revolução do #MeToo cresceu muito e muito rápido na Suécia, com diversos abaixo-assinados em vários setores”, explicou a porta-voz do Dear Darkness, Frida Calderon. “Mulheres dentro da indústria musical criaram seu próprio abaixo-assinado, nos aproveitamos disso e criamos a nossa versão voltada ao cenário do metal e hard rock – sempre marginalizado em geral, especialmente no caso de mulheres e pessoas não-binárias. Há uma forte cultura de silenciamento e precisamos acabar com isso, permitindo que as mulheres finalmente possam abrir a boca”.

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“Sentimos que o mesmo acontecia conosco na comunidade metal”, comentou Sjöström. “Deveríamos começar nosso próprio movimento, porque a coisa está feia. Estamos de saco cheio disso, então é hora de matar o rei. Assim lançamos a campanha, deixando claro para todos que é hora de acabar com a dominação masculina; é hora de tratar mulheres e indivíduos não-binários como iguais. Basta. Que matem o rei”.

Em janeiro de 2018, elas agiram.

O manifesto #KilltheKing foi postado nas redes sociais em 11 de janeiro, citando bandas como Destroyer 666, Pentagram e Venom Inc, chamando atenção imediatamente, com uma reação bastante positiva por parte da de mulheres e pessoas não-binárias, que entraram em contato para agradecer a iniciativa e por tocar em assuntos considerados endêmicos, disse Sjöström. Por mais que tenham rolado reações não tão bacanas nas redes (“No Facebook nem mostram o nome ou cara, nos xingando de vadias burras que deveriam ficar em casa, essas merdas, que a gente só apaga e ignora”, diz Sjöström aos risos) e respostas francamente agressivas de fãs misóginos do estilo que não levaram numa boa o ato feminino ou ficaram com raivinha de ver os nomes de suas bandas favoritas em meio aos testemunhos de sobreviventes de abuso. Mesmo assim, a reação positiva levou as mulheres por trás da campanha a irem além de sua cidade natal, expandindo a #KilltheKing para o mundo.

E elas estão fazendo isso rápido: ao passo em que a Heavy Metal Action Night e o grupo Heavy Metal Against Racism continuarão fazendo seu trabalho sob o estandarte de #KilltheKing e os três grupos estejam trabalhando juntos, o Dear Darkness acabou por gerar um novo projeto. Uma postagem recente em sua página anunciava a criação de uma nova hashtag, um novo nome e uma nova campanha: #MetalToo.

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“Os movimentos #metoo e #killtheking devem seguir em frente para incluir todas as pessoas – independente de gênero, país e nacionalidade”, consta na postagem. “Precisamos nos unir ao longo de fronteiras, mulheres, não-binários e homens, para lutar por uma cena hard rock e metal igualitária. Uma cena em que todos possamos compartilhar nosso amor por música de forma justa e segura, como um time. É a música que nos une e ela que deve nos manter unidos”.

O próximo passo deste processo de conscientização, através da hashtag #MetalToo, vem coletando histórias de mulheres pelo mundo sobre como a violência sexual, abuso, criação de barreiras e misoginia tem afetado suas vidas enquanto fãs de metal. Tais testemunhos anônimos ganham destaque no Instagram do Dear Darkness, incluindo uma série de relatos nojentos de abuso sexual cometidos por músicos e fãs do gênero. O Aftonbladet também publicou mais de 20 destes relatos do #MetalToo, bem como uma chamada do próprio grupo.

“Uma das coisas que fizemos foi criar um grupo secreto no Facebook para mulheres e pessoas não-binárias, um espaço seguro me que se pode compartilhar sua história – nos conte o que acontece e outras pessoas, mulheres ou não-binárias, estão ali pra te ouvir e apoiar”, disse Sjöström. “Os relatos que surgiram ali são horríveis: casos de violência, estupro, violência sexual. Acontece em todos os festivais na Suécia, em todos os shows, sempre acontece algo que não deveria rolar com ninguém nunca. Ler estes relatos – e no meu caso, ter vivido isso – é algo que te destroi por completo, já que ninguém te leva a sério. ‘Ah, você está na Suécia, meu deus, nada nunca acontece’. Bem, acontece sim”.

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De acordo com Sjöström, a reputação do gélido país escandinavo de igualdade entre sexos, bem-estar social, alto padrão de vida e felicidade em geral pode muito bem servir de ilusão, escondendo os problemas reais enfrentados no país, por trás de todas as postagens bacanas, ecológicas e zoeiras do Twitter.

“A Suécia é vista como uma nação igualitária, e pode até ser na teoria, mas na prática não”, afirma. “Dentro do metal, sempre temos que provar nosso valor, mais do que qualquer outra cara em qualquer situação. Estamos de saco cheio disso. Queremos apenas fazer parte da cena como todo mundo. Queremos ir a shows, encher a cara, saca? Curtimos o som como qualquer outro homem. Queremos apenas participar disso de forma igualitária”.

“Sempre soubemos que tais atitudes permeiam nossa sociedade global e o metal não foge à regra, ainda mais sendo uma comunidade dominada por homens”, comenta Calderon. “Os suecos tem um histórico de lutar contra injustiças e foi isso que nos trouxe até aqui. As mulheres de gerações anteriores à nossa exigiram auxílio familiar, controle de natalidade, puericultura e abortos sem custo algum, o que tem sido fundamental para a sociedade que temos hoje. Sabíamos que precisávamos fazer isso”.

O nome da campanha original, #KilltheKing, foi cunhado pelo Heavy Metal Against Racism. Quando converso com outra das porta-vozes do movimento, Banesa Martinez, há muito tempo DJ de metal, ela enfatiza a natureza interseccional do movimento e como o racismo estrutural se infiltra no metal por meio da sociedade sueca mainstream.

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“[Estes problemas] incluem desemprego, segregação, racismo institucionalizado e assistência médica, questões que serão mais debatidas ao longo dos próximos meses, já temos um partido racista que vem ganhando cada vez mais destaque”, explica, falando do partido nacionalista anti-imigração conhecido como Democratas Suecos, que participará nas próximas eleições do país em 9 de setembro de 2018. O partido foi fundado em 1988 por um veterano da SS, um neonazista e um skinhead racista.

Martinez comenta ainda que a imagem pró-feminista do país geralmente faz com que problemas como os apontados pelo movimento #KilltheKing passem despercebidos. “Os prinicipais alvos são os muçulmanos, mas o número de crimes motivados por ódio aumentaram na Suécia, incluindo ataques a abrigos de refugiados e sinagogas”, disse. “Organizações que trabalham com problemas ligado à violência doméstica não recebem financiamento adequado do governo e ainda temos que lidar com o tratamento injusto recebido por vítimas de estupro em nossos tribunais. Vítimas de feminicídio praticado por um homem próximo, dentro de casa, ainda tem números altos em relação aos padrões suecos. Uma cirurgia de redesignação sexual demora anos para ser aprovada, quando isso acontece”.

Ela lembra ainda de ver nazistas circulando abertamente em shows de black metal, isso na juventude; já adulta, ela os confrontou e acabou “levando uma surra em um festival por parte de racistas da região, todos com botas de bico de ferro”. Para Martinez (e todas as mulheres envolvidas) trata-se de uma batalha pessoal.

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Calderon afirma que os três grupos se juntaram espontaneamente, logo forjando uma relação em torno de sua missão compartilhada e experiências semelhantes enquanto garotas e então mulheres na cena metal sueca. Todas as três mulheres com quem conversamos lembram de se interessar por metal na pré-adolescência, mas nunca se sentindo aceitas apesar de sua paixão pelo som, muitas vezes punidas por não se adaptarem ao que se espera do comportamento feminino, tidas como “groupies” ou ainda desafiadas de forma a provarem seu conhecimento metálico.

“Sendo uma garota em uma pequena ilha do Báltico, em uma comunidade de classe média típica, tive que esconder meus gostos musicais para ser aceita”, relembra Calderon. “Me viam como um moleque, e eu temia que meu gosto musical contribuísse para isso, levando em conta que ser uma garota significa que minha missão mais importante seria agradar às estruturas patriarcais, ou seja, tinha que se fofa, agradável, atraente e adaptável. Não era coisa de menina usar camisetas de bandas, coturnos Doc Martens e zero maquiagem - nada disso era popular com os garotos, pra dizer o mínimo. Hoje em dia, diria que a cena metal nem é mais considerada um subcultura, mas sim uma enorme comunidade musical global; esperava que isso fosse facilitar com que mulheres e pessoas não-binárias sentissem-se à vontade com seu gosto musical, mas em vez disso, o sexismo e a fixação com aparência estão ainda mais na cara”.

Qual o próximo passo do #MetalToo? De preferência, a dominação mundial, o maior objetivo desta coalizão, e passos já foram dados para a criação de células da campanha #KilltheKing em diversos países. Calderon encoraja que pessoas interessadas se envolvam por meio da hashtag #KilltheKing, ao assinar abaixo-assinados e compartilhar suas histórias (com anonimato garantido), bem como pela criação de seus próprios grupos de forma a combater sexismo, misoginia, racismo e violência sexual no metal.

“O espírito da revolta estava claro — compartilhar histórias, apoiar uns aos outros e descobrir de uma vez por todas que não são nossas escolhas ou erros os culpados, mas sim todo um problema estrutural advindo do papel destrutivo do homem e como isso afeta o entorno das mais diferentes formas em nossas vidas”, disse Martinez. “Que é isso que tenta nos atrasar, oprimir e diminuir por meio de estruturas sociais, regras e normas rígidas que controlam a forma como nos vemos e aqueles ao nosso redor. Quando os primeiros relatos chegaram com a hashtag #KilltheKing, não nos surpreendemos com os terríveis casos compartilhados — mas sim com a magnitude de tanta gente compartilhando histórias parecidas, com algumas até mesmo divulgando o nome dos predadores, suas bandas e casas de show, que ressoavam em tantas outras vítimas. Tudo isso nos fez dar mais duro e nos deixou ainda mais focada no caminho que escolhemos”.

“Muitas mulheres de fora da Suécia entraram em contato conosco comentando ‘Porra, precisamos disso também’”, comentou Sjöström. Pelo jeito, diversas mulheres e pessoas não-binárias do meio metal chegaram ao seu limite, o mesmo que precedeu o ativismo de Sjöström e suas irmãs metálicas.

“Quando você faz parte da cena há mais de 10 anos, tudo que aconteceu só vai se acumulando e você para pra pensar se deveria ser tratada daquele jeito, se quer viver assim, isso só me deu mais raiva”, explica. “Vi todo o sexismo e misoginia do cenário e as pessoas aceitando aquilo porque é daquele jeito e ninguém se importa. Bem, eu preciso me importar porque essa é a minha vida. Fiquei fula da vida mesmo e encontrei outras no mesmo estado, agora estamos fulas juntas!”.

“O metal sempre foi contra as instituições”, conclui Sjöström. “Se você observar o que acontece no mundo, a toxicidade masculina vem tomando conta de tudo, com racismo e misoginia por toda parte. O metal tem o dever de ir contra isso. Se você quer ser um headbanger contra isso, não pode entrar nessa de ser um ‘macho alfa’. Você tem que caminhar com a gente, pois isso tudo é provocativo para as pessoas e é esse o ponto do metal. Nesse sentido, estamos fazendo tudo certo”.

Kim Kelly é editora do Noisey e você pode seguí-la no Twitter.

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