Os Gêmeos Evangélicos que Querem Criar Um Game Bíblico que Não Seja Horrível
​Todas as imagens cedidas pelos irmãos Meulenbergs

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Os Gêmeos Evangélicos que Querem Criar Um Game Bíblico que Não Seja Horrível

Se bandas de rock cristãs como o P.O.D. e o Creed conseguem lançar discos multiplatinados por que Ruben e Efraim Meulenberg não conseguiriam criar um game bem-sucedido baseado na Bíblia?

Em termos de negócios, não é uma ideia ruim. Se bandas de rock cristãs como o P.O.D. e o Creed conseguem lançar discos multiplatinados e Mel Gibson consegue faturar mais que US$600 milhões com A Paixão de Cristo, por que Ruben e Efraim Meulenberg não conseguiriam criar um game bem-sucedido baseado na Bíblia?

"Conhecemos um monte de pastores, um monte mesmo, que também são gamers", disse Ruben. "Acho que o estigma negativo quase todo se foi, e a agora as pessoas querem algo de qualidade. Acho que o que aconteceu é que os games cristãos eram ruins e as pessoas diziam 'Por favor, não me venha com outro desses'. Mesmo os cristãos. Não é que eles não queiram um game cristão, eles só não querem outro game cristão ruim. Acho que o desafio de fazer um game cristão bom é maior do que em relação a games no geral."

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Desenvolvedores cristãos tentam fazer jogos sobre a Bíblia há décadas. Em 1991, uma empresa chamada Wisdom Tree trabalhou em cima do chip de "travamento" do Nintendinho para criar um jogo não-licenciado chamado Bible Adventures. Nele, os jogadores coletavam animais para a arca no papel de Noé, levavam o bebê Moisés até sua mãe em segurança, e até mesmo pastoreavam ovelhas como Davi.

Os dois games de temática cristã que quase chegaram a fazer sucesso no mainstream foram The Bible Game, um game de conhecimentos gerais lançado para o Playstation 2 e o Xbox em 2005; e Left Behind: Eternal Forces, um jogo de estratégia em tempo real lançado em 2006 com base nos textos evangélicos pós-arrebatamento, que está sendo transformado em um filme estrelando Nicolas Cages. Ambos massacrados pela crítica.

Os irmãos Meulenberg tem trabalhado em The Bible Game: David nos últimos cinco anos, contratando freelancers que trabalharam em projetos como Assassin's Creed de acordo com a demanda, contando com até 24 profissionais em épocas mais intensas. Eles tem pensado em criar este jogo desde que tinham doze anos de idade.

ACHO QUE O QUE ACONTECEU É QUE OS GAMES CRISTÃOS ERAM RUINS E AS PESSOAS DIZIAM 'POR FAVOR, NÃO ME VENHA COM OUTRO DESSES'. MESMO OS CRISTÃOS

Inicialmente a dupla queria criar uma experiência totalmente imersiva a la Skyrim que permitiria aos jogadores explorarem a antiga Israel, mas os gêmeos sabem o suficiente de desenvolvimento de games para saber que um game deste escopo estava fora de seu alcance.

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Ao invés disso, The Bible Game: David será mais parecido com sucessos indies recentes como Limbo ou Braid. Eles lembram o Super Mario Bros. original (e Bible Adventures) no formato, mas estabelecem uma história e clima muito mais envolventes com produção polida e mecânicas inteligentes.

Os jogadores controlarão Davi em sua jornada para se tornar Rei. Ele poderá correr e pular em um plano 2D, dentro de um ambiente em três dimensões, logo as ameaças podem surgir tanto do fundo quanto do primeiro plano. No primeiro capítulo, por exemplo, os jogadores terão que fugir de animais selvagens e ataques de filisteus, enquanto Davi volta para a sua cidade-natal, Belém. Para manter o elo com a história a original, ao apertar o botão de pause, o jogo lhe dirá que capítulo está sendo jogado.

Rick Warren, pastor da igreja Saddleback frequentada pelos gêmeos, lhes deu sua bênção, afirmando que é "um divisor de águas para famílias e gamers".

Os irmãos foram inspirados a revisitarem seriamente a ideia de um jogo bíblico após lidarem com crianças nos programas de jovens da igreja. Eles perceberam que as crianças não liam mais, mas que jogavam muitos games, e era cada vez mais comum que os pais jogassem também. Eles queriam criar algo que todos poderiam jogar juntos, mas isto não retiraria a tensão das histórias.

Os irmãos Meulenberg

Por este motivo, as duas primeiras regras definidas pelos irmãos para si mesmos no vídeo do Kickstarter de The Bible Videogame: David foram se manterem fiéis a Bíblia e evitarem violência gratuita.

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Se você conhece o Antigo Testamento, você sabe que eles não teriam como ter escolhido duas regras mais conflitantes que essas. Os textos originais tem mais violência do que todos os Call of Duty juntos.

Greg Perreault, candidato a Ph.D. da Faculdade de Jornalismo do Missouri cuja pesquisa é voltada para a representação da religião nos games, disse-me que muitos games religiosos falharam porque seguiram o rumo dos jogos "para toda a família".

"Há um segmento da população que compra essa versão bonitinha do cristianismo", afirmou Perreault, "em que tudo da Bíblia é fofinho e gentil e amigável. Mas ao mesmo tempo uma olhadela no texto revela que é tudo bem feio, tem violência, tem sexo, tem tripas, e acho sinceramente que é por isso que se trata de uma narrativa tão atraente. Ela conta histórias com as quais você pode se identificar".

Os Meulenbergs reforçaram que não querem seguir a tradição de games cristãos lançados até então. "Nosso objetivo é rivalizar com os padrões da indústria de qualidade e ultrapassá-los", disse Efraim. "O livro mais popular do mundo merece o máximo em qualidade."

O primeiro ato de violência com o qual terão de lidar é também a parte da história de Davi que todo mundo se lembra. O ruivo e adolescente Davi, então apenas um pastor, mata o gigante filisteu Golias com seu estilingue. É um ato violento justificável, mas a parte da história que não é enfatizada na catequese é a de que os solados filisteus só partiram após Davi ter decapitado Golias e ter lhes mostrado sua cabeça degolada.

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"Digo, a forma a qual você mostra a violência em um filme ou game é bastante similar", declarou Efraim. "Você pode escolher em se aproximar das coisas ou deixar com que elas aconteçam fora da tela. Então claro que em uma versão voltada para crianças empregaríamos a última opção ao invés de mostrar sangue espirrando pra todos os lados. Podemos passar a mesma mensagem de uma maneira muito mais branda."

Isso soa como uma solução razoável. Não são muitos de nós que aguentam essa pornografia de tortura ( A Paixão de Cristo de Gibson sendo um exemplo perfeito), e os filmes e games que mais sugerem do que mostrar, possivelmente são mais interessantes mesmo. Mas há diversos outros aspectos da história de Davi que serão mais espinhosos de se evitar.

Tento mencionar uma destas questões aos gêmeos, mas tenho vergonha demais para falar. Eu vou enrolando e tento chegar até o ponto por muitos dolorosos segundos até que Ruben acaba com meu sofrimento.

"Você quer saber dos 100 prepúcios, né?"

200, na verdade, mas sim. "Isso, os prepúcios", digo e ambos riem.

"É, isso vai ser esquisito". Antes de se tornar rei, Davi quis provar seu valor ao Rei Saul, prometendo lhe entregar os prepúcios de 100 filisteus, similar a como eram utilizados escalpos no Velho Oeste. O ambicioso Davi voltou com o dobro do que havia prometido.

World of Warcraft e RPGs semelhantes muitas vezes pedem aos jogadores que recolham 20 peles de Lobos das Trevas, 30 escamas de Basilisco, etc. Estes prepúcios são um "item coletável" perfeitamente bíblico.

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"Claro que teremos que fazer isso de um jeito um pouco diferente", disse Ruben. "Acho que se Saul disser 'derrote 100 homens', para uma criança isso é meio que a mesma missão. Teremos que dar um jeito de lidar com isso."

Aí temos também os aspectos desagradáveis da personalidade de Davi. Quando ele vê a bela Betsabá, por exemplo, dá um jeito de enviar seu marido Urias para uma batalha que não pode vencer. Quando Urias inevitavelmente morre, Davi toma Betsabá como sua esposa.

"Eu pessoalmente adoro o fato de que a Bíblia não esconde esse fato", disse Efraim. "Não diz que Davi era perfeito. Não esconde seu erro. Se você toma a esposa de alguém e então mata esse alguém enquanto lhe serve, não é algo bom, e a Bíblia mostra como Deus o pune por isso também. Conta como tudo acontece. Não mascara nada. Acho que esse é um dos tesouros que temos na Bíblia."

Os irmãos foram menos diplomáticos sobre interpretações modernas da história. Eu cito o segundo livro de Samuel, primeiro capítulo, versículo 26: "Angustiado estou por ti, meu irmão Jônatas; quão amabilíssimo me eras! Mais maravilhoso me era o teu amor do que o amor das mulheres".

Isso, junto de repetidas declarações de amor um pelo outro e alguns beijinhos, levaram à interpretações modernas que veem o relacionamento entre Davi e Jônatas como possivelmente homossexual.

Os irmãos afirmaram desconhecer a interpretação, e francamente, o único momento tenso da conversa ocorreu quando a compartilhei com eles. Ruben diz que na sua cabeça, a relação homossexual entre ambos não fazia sentido porque Jônatas era velho demais para Davi, e que este último o amava como mentor, não amante.

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E essa interpretação soa bem fraca, o mesmo ocorre com todas as interpretações do Velho Testamento. A reinterpretação e releitura infinita, especialmente dos trechos vagos e perturbadores, é o que adoro na coisa toda, e o que me faz temer que nenhum game faça jus a isso. Nisto, eu e os Meulenbergs concordamos.

"Acho que não existe nenhuma obra de arte derivado deste texto que lhe faça justiça", disse Ruben. "Até mesmo uma tradução não faz jus ao texto original. Toda obra, de certa forma, dá ênfase a uma parte dele."

"Acho que existem algumas coisas únicas que podem ser feitas por um game para mostrar a cultura daqueles tempos", Efraim disse. "Claro, quando as pessoas leem a Bíblia talvez digam que eu veja isso de outra forma, mas creio que a experiência mostrará a história de um jeito que as pessoas não viram antes, além de encorajá-las a ler a Bíblia por conta própria e explorar suas interpretações dela."

Mesmo que Ruben e Efraim não criem o primeiro game bíblico que não seja horrível, alguém o fará. Há muito dinheiro a ser ganho, e omitir as partes difíceis não é necessariamente um sintoma de influência cristã.

A RELIGIÃO É UM CAMPO MINADO PARA UM MEIO COM A MATURIDADE DE UMA CRIANÇA DE 5 ANOS.

Matteo Bittanti, escritor, artista e professor do programa de Estudos Visuais da Universidade de Artes da Califórnia, disse-me que ainda esperamos pela versão gamer de A Última Tentação de Cristo de Martin Scorsese ou O Evangelho Segundo São Mateus de Pier Paolo Pasolini, mas que deveríamos esperar sentados.

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"A religião é um campo minado para um meio com a maturidade de uma criança de 5 anos", disse. "Além do fotorrealismo dos games atuais, ainda jogamos variações de polícia e ladrão – perdão – alienígenas. A mesma infantilização que matou o cinema mainstream de Hollywood, com seus super-heróis e personagens de quadrinhos fúteis, tem assombrado a indústria dos games há três décadas. E as coisas não estão melhorando. De fato, a invalidação dos games e a diluição de qualquer coisas remotamente controversa – e não estou falando de seios, algo que só americanos puritanos consideram um problema – é fato consumado."

Perreault disse que o medo da Bíblia nos games tem raízes históricas. "Nos anos 90, quando a Nintendo era a rainha do galinheiro e estava em dois terços das casas, eles tinham uma política de censura muito rígida quanto ao que apareceria em games norte-americanos. Em especial, não existiam representações de violência, sexo, ou religião", disse. "Em muitos casos isso significava que se perdia muito nas traduções."

A Nintendo era tão rígida com relação à iconografia religiosa em seu consoles que cruzes nos caixões da fase Transylvania de DuckTales foram substituídas por "R.I.P.". Em Final Fantasy IV, magias "Sagradas" [Holy] foram renomeadas como "Brancas" [White], e uma Torre de Orações [Tower of Prayers] foi substituída por uma Torre dos Desejos [Tower of Wishes].

É a mesma coisa que acontece com quase todo assunto interessante adaptado por games comerciais. Jogos de tiro em primeira pessoa são viáveis comercialmente porque eles evitam as partes da guerra que são complicadas ou deprimentes. Call of Duty nunca pede para que o jogador faça um pedido para o órgão responsável por veteranos. Não há um trecho no jogo em que você e seu esquadrão falem com os anciões da vila com a ajuda de um tradutor, treinem a polícia local ou questionem o propósito da missão.

Um game bíblico também não teria como questionar a sexualidade de Davi. Ele não pode questionar que tipo de megalomania monoteísta é necessária para levar um menino pastor dos campos ao trono do reino unido de Israel.

Com as atuais limitações do cristianismo mainstream, e mais relevantemente, dos games mainstream, o máximo que podemos esperar de The Bible Videogame: David é que seja divertido de se jogar.

Tradução: Thiago "Índio" Silva