FYI.

This story is over 5 years old.

Tecnologia

O Jogo de Terror Terapêutico

Quanto mais rápido seu coração bate, mais perturbador se torna o mundo à sua volta, e é mais difícil completar seus objetivos.

Tudo começa com um pacote de leite caído em uma cozinha bagunçada e decrépita; um fluido negro vaza de seu bocal. O recinto é um paradoxo, ao mesmo tempo claustrofóbico e gigantesco: a geladeira enferrujada à minha esquerda estende-se como um obelisco, dezenas de imãs em formato de letras ferem seu flanco, e o pacote de leite quase alcança meu queixo.

Vejo algo marrom e bulboso no forno do outro lado da cozinha. Quando me aproximo, a coisa se retorce. Eu me afasto — e o leite jorra das paredes e rejuntes, ameaçando inundar o local em uma questão de segundos. Eu paro e respiro fundo algumas vezes, me acalmando, e o dilúvio diminui com a mesma velocidade que começou. Essa é uma das primeiras fases de Nevermind, um jogo de terror da Flying Mollusk que dá um novo significado à famosa máxima de Friedrich Nietzsche: "quando você olha muito tempo para o abismo, o abismo também olha para você."

Publicidade

Com lançamento para PC previsto para esse ano, o Nevermind é mais um exemplo de tecnologia que nos olha de volta. O jogo usa uma câmera RealSense para monitorar as mudanças de frequência cardíaca através do fluxo de sangue no rosto do jogador, e, em resposta, altera o que podemos ver, ouvir e mexer dentro do jogo. De forma muito apropriada, o teaser gratuito lançado em 2012 (você pode baixá-lo nesse site — mas você irá precisar de um sensor cardíaco Garmin Heart Rate) é cheio de reflexões sobre o medo de estar sendo vigiado, ou de ver aquilo que não desejamos. Uma cabeça de veado empalhada se vira para te observar enquanto você se esforça para completar um quebra-cabeças, ao mesmo tempo em que vários bustos de mármore giram para evitar contato visual, gritando em protesto.

Quanto mais rápido seu coração bate, mais perturbador se torna o mundo à sua volta, e é mais difícil completar seus objetivos.

Crédito: Imagem do jogo Nevermind

Entretanto, a ideia não é apenas assustar. A mesma tecnologia que permite o jogo explorar seus momentos de fraqueza é também uma forma de fortalecer a resiliêcia emocional do jogador. "O estresse e a ansiedade podem ter várias origens — o trânsito, ligações, reuniões, bebês chorando — e é necessário ter alguns truques efetivos para lidar com esses sentimentos, não importa qual sua origem", disse-me Erin Reynolds, diretora criativa do Nevermind, via email.

"O Nevermind dá aos jogadores a oportunidade de mergulhar em situações intensas e incômodas, e assim praticar diferentes técnicas para controlar sensações de estresse e medo — e, idealmente, dar mais segurança para essas pessoas usarem essas técnicas na vida real, independente do contexto."

Publicidade

Idealizado por Reynolds enquanto ela completava um mestrado em Artes Visuais na Universidade do Sul da Califórnia, Nevermind faz parte do crescente grupo de jogos "sérios" que buscam "te ajudar, sorrateiramente, a se tornar a pessoa que você quer ser", parafraseando a descrição oficial no site da Flying Mollusk. Seguindo um dos maiores clichês do terror piscológico, o game coloca o jogador no papel de um terapeuta com a habilidade de explorar simulações 3D da mente de seus pacientes.

"Todo paciente já passou por algum evento terrível em algum momento de sua vida — algo tão tenebroso que não pode ser lembrado de forma consciente (um fenômeno que pode acontecer em pacientes com traumas)", explicou Reynolds."Assim, apesar dos detalhes, ou até mesmo do evento em si, terem sido reprimidos, as memórias continuam escondidas no subconsciente."

Crédito: Imagem do jogo Nevermind

O trauma do paciente dita o design e a estética das missões que o jogador terá que completar. A lembrança do acidente de carro de um ente querido pode, por exemplo, conjurar um túnel de ferro enferrujado e retorcido, por onde você caminha em direção ao grito terrível de uma buzina. De forma menos dramática, é possível também descobrir detalhes de uma catástrofe esquecida a partir de capas de livros, a combinação de um cofre, ou peças de louça irritadas. "Tudo é uma pista — cada objeto, o tipo de iluminação, a paleta de cores da sala, o tom da música. Cada cantinho se refere ao evento reprimido que você, o jogador, tem que trazer à superfície."

Publicidade

Para complicar, não existe uma divisão óbvia entre as bizarrices programadas em cada nível e aquelas que são uma resposta às suas ações. Dessa forma, parte do desafio é se distanciar dos conflitos internos de seus pacientes. É mais fácil falar do que fazer. "Deixe suas preocupações na porta", ordena uma pichação em uma das fases do jogo, rabiscada logo abaixo de um desenho infantil de dois olhos. Não existe morte nesse jogo, apesar dele transportá-lo para uma área mais calma quando seu nervosismo te impede de interagir com peças fundamentais da trama.

Reynolds busca enfatizar que Nevermind não pode substituir um terapeuta de carne e osso — o jogo será vendido como um produto de entretenimento, e poderá ser jogado sem o dispositivo de monitoramento cardíaco (a versão final irá funcionar com vários outros dispositivos além da câmera RealSense, incluindo o Kinect do Xbox One). No entanto, o jogo é o resultado de uma "pesquisa expansiva", e a Flying Mollusk espera desenvolver uma versão "terapêutica" em parceria com especialistas comportamentais.

Até o momento, o Nevermind pode ser comparado a projetos não-comerciais como o PlayMancer, um projeto europeu que criou games para o tratamento de distúrbios impulsivos como a bulimia e a jogatina patológica.

A tecnologia de monitoramento biológico utilizada nos projetos do PlayMancer é bem mais avançada que a utilizada no Nevermind, mas as duas seguem a mesma ideia: aumentar a dificuldade dos desafios a partir de fatores como a frequência cardíaca e a expressão facial dos jogadores. Os pacientes devem, por exemplo, juntar balões em um ambiente aquático sem acabar com seu oxigênio, ou subir uma montanha com obstáculos gerados com base nos seus níveis de estresse. "O objetivo não é ganhar, como na maioria dos jogos", acrescentam os autores do projeto. "Mas sim, aumentar a capacidade de auto-controle."

Publicidade

Não existe morte no jogo

Na realidade, o objetivo dos videogames nunca foi apenas "ganhar" — esses jogos são um amontoado de fios e códigos, e nossa recompensa psicológica está ligada ao domínio desse sistema, e não à vitória sobre um inimigo ou à conclusão de um desafio. Portanto, uma experiência como o Nevermind tem muito a oferecer; tanto à arte do design de jogos quanto ao mundo da terapia.

Já posso imaginar uma nova geração de títulos que irá desafiar o auto-controle dos jogadores de várias formas — através de mecanismos de respiração que afetam sua mira em Call of Duty, ou personagens não-jogáveis que agem de acordo com suas expressões faciais.

"Em geral, jogos que podem compreender suas reações inconscientes e adequar a experiência à essas respostas podem ser muito intensos", afirmou Reynolds. "Apesar de possuir algumas ideias próprias, acredito que os usos dessa tecnologia são tão vastos que nenhuma ideia pode lhes fazer jus."

Tradução: Ananda Pieratti