​A loucura redentora de Nise da Silveira
Retratada no novo filme “Nise - O Coração da Loucura”, a psiquiatra alagoana revolucionou o tratamento da esquizofrenia por meio da arte. Eis aqui por que seu resgate é importante para a ciência do país. Crédito: Centro Cultural do Ministério da Saúde

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​A loucura redentora de Nise da Silveira

Ela revolucionou a psiquiatria ao usar a arte para tratar de pacientes esquizofrênicos. Agora, enfim, um filme resgata sua importância para a ciência do país.

A câmera foca nos pés de Glória Pires enquanto caminha. Ela para e bate em uma porta de metal. Ninguém responde. Bate mais uma vez, sem sucesso. Continua a esmurrar até ser recebida no Hospital Psiquiátrico Pedro II, no bairro de Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro. Na tela, Glória quase arromba o hospital, da mesma forma como sua personagem Nise da Silveira rompeu com a psiquiatria tradicional numa época em que a loucura era tratada com violência.

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A Dra. Nise foi a primeira mulher a se formar na Faculdade de Medicina da Bahia em 1926. Ela era a única em uma turma com 157 homens e concluiu o curso aos 21 anos. Em seu trabalho de conclusão de curso, apresentou o "Ensaio sobre a criminalidade da mulher no Brasil", um dos primeiros estudos da área. Na faculdade, conheceu seu marido, o sanitarista Mario Magalhães, com quem dividiu interesse por escritos marxistas. O contato com a obra do velho barbudo lhe rendeu um período de 18 meses no presídio Frei Caneca durante o Estado Novo, com quem dividiu cela com ninguém menos do que Olga Benário, a militante comunista alemã, casada com Luís Carlos Prestes, grávida e que quis ter o seu filho no Brasil. Na prisão, também conheceu seu conterrâneo Graciliano Ramos, que a citou em seu livro Memórias do Cárcere.

Depois de sair da prisão, Nise trabalhou no hospital psiquiátrico de Engenho de Dentro, onde começa a história do filme Nise – O Coração da Loucura, dirigido por Roberto Berliner, com estreia marcada para 21 de abril. Apesar do clima de filme global e estrelado por atores globais, Berliner prova que fez a lição de casa com bastante tempo de pesquisa ao reunir um elenco bem preparado capaz de retratar com habilidade e sensibilidade a trajetória de Nise no Engenho de Dentro.

O ano era 1944 e, lá, a médica revolucionou a forma como a psiquiatria encarava a loucura. Boa parte dos pacientes (ou clientes, como os chamava a Dra. Nise) era diagnosticada com esquizofrenia. Naquele tempo, a condição era tratada de duas formas brutais: lobotomia ou eletrochoque. Nise se recusou a executar tais práticas e foi "rebaixada" à ala de Terapia Ocupacional do hospital, que era encarada como uma piada. Na sala designada à ala, os clientes varriam e limpavam ou ficavam esperando o tempo passar enclausurados em suas mentes.

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O filme mostra de uma forma muito crua como o lugar parecia mais uma prisão do que um hospital. Pacientes eram tratados na base da porrada por médicos frios e desinteressados, eram colocados em solitárias e encarados como animais. O eletrochoque era aplicado a torto e a direito, assim como a lobotomia, feita com um picador de gelo. Em uma das cenas do longa, a Dra. Nise fica estarrecida quando um médico demonstra como aplicar o eletrochoque em um paciente fora de si, que se debatia preso em uma maca, porque sabia o que estava por vir.

Num grande clima de hostilidade, Nise reforma a sala de Terapia Ocupacional e começa seu trabalho, que na época foi muito debochado, mas que hoje é tão reconhecido que o antigo hospício de Engenho de Dentro carrega seu nome: Instituto Municipal Nise da Silveira. O tratamento aplicado pela médica consistia em deixar os "loucos" livres para explorar o espaço e criar. Nise ficava horas observando o comportamento de cada um e fazendo anotações.

Nise, interpretada por Glória Pires, observa as obras feitas no ateliê do hospital psiquiátrico. Crédito: Vantoen P JR.

A arte foi o meio pela qual Nise descobriu que os esquizofrênicos conseguiam se expressar. "Meu instrumento é o pincel, o seu é o picador de gelo", responde Nise em uma das cenas do filme a um dos médicos especialistas em lobotomia que criticou sua forma de trabalhar. Com ajuda de um artista plástico e dois enfermeiros do hospital (sendo Ivone, interpretada por Roberta Rodrigues, a grande Dona Ivone Lara), Nise colocou seus clientes para pintar e trabalhar com argila na confecção de escultura. O filme mostra a história de cinco das mais de cem pessoas que a doutora tratou.

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As obras produzidas por seus clientes rodaram o mundo e hoje se encontram no Museu de Imagens do Inconsciente, fundado pela própria Nise em 1952 no Rio. Ela tinha um grande interesse pelo tema e publicou o livro Imagens do Inconsciente em 1981, analisando os frutos produzidos no ateliê do hospital. Nise publicou 10 livros e vários artigos sobre o inconsciente e é considerada uma das fundadoras da psiquiatria moderna. As pinturas e esculturas também foram tema da trilogia de mesmo nome, Imagens do Inconsciente, de Leon Hirszman, diretor do Cinema Novo brasileiro.

Nise observou na arte dos clientes um padrão. Muitos deles desenhavam mandalas, figuras circulares e outras formas geométricas. "Não abandone nunca as formas geométricas para estudar humanidades", aconselhou um professor de Nise. Lembrando-se da recomendação, ela se debruçou sobre os estudos de Carl Jung, psiquiatra suíço fundador da psicologia analítica. Jung dizia que as mandalas eram a expressão psicológica da psique. Na época, Nise trocou cartas com Jung e enviou fotos das mandalas feitas por seus clientes. "Foi um dos atos mais ousados da minha vida", relatou Nise. Jung ficou impressionado, tanto com as imagens quanto com o fato de Nise ser mulher psiquiatra naquele tempo, e manteve contato com a doutora até 1961, inspirando seus escritos.

Nise foi a principal divulgadora do trabalho de Jung no Brasil e foi convidada pelo próprio para estudar no Instituto Junguiano na Suíça e expor o acervo do Museu de Imagens do Inconsciente em 1957. No ano seguinte, ela fundou o Grupo de Estudos C. G. Jung no Rio.

Além da arte, Nise era uma grande amante de gatos, chegou a ter 23, e incentivava a convivência de seus clientes com animais. "Eu gosto muito de todos os animais. O cão tem uma qualidade que eu acho belíssima e da qual eu me sinto distante, que é a infinita capacidade de perdoar. Dê um passo que se dê ele é fiel. (…) Com relação aos gatos, de tanto vê-los na rua desamparados, eu ia apanhando e trazendo pra casa. O gato não tem essa capacidade de perdoar, como eu não tenho. Eles são muito especiais. No Hospital, introduzi os animais como ajuda para os doentes. Como co-terapeutas", disse em entrevista de 1994.

Cena do filme Nise - O Coração da Loucura. Crédito: Vantoen P JR.

Nise dedicou a sua vida e sua carreira à desconstrução de preconceitos em torno da loucura. "Não se cura além da conta. Gente curada demais é gente chata. Todo mundo tem um pouco de loucura. Vou lhes fazer um pedido: vivam a imaginação, pois ela é a nossa realidade mais profunda. Felizmente, eu nunca convivi com pessoas muito ajuizadas", dizia. Em 1956, ela criou a Casa das Palmeiras, em Botafogo (RJ), instituição sem fins lucrativos dedicada à reabilitação de pacientes de instituições psiquiátricas. O lugar foi a primeira instituição a desenvolver um projeto de destitucionalização dos manicômios do Brasil.

Miúda de tamanho mas de gigante reconhecimento, Nise foi imprescindível para a psiquiatria e também para a história do Brasil, além de uma mulher incomparável. Em tempos de busca crescente pela sanidade, o trabalho de Nise nos ensina a apostar no afeto e olhar para a humanidade do outro. O filme, com seus acertos e defeitos, mostra o triunfo de uma mulher combativa e idealista, uma heroína de verdade, sem exageros ou distorções. Um retrato "especialmente importante neste momento particular do cenário político brasileiro em que nos faltam heróis", como afirmou o diretor Berline. O conselho de 1994 da doutora, afinal, ainda se aplica nesse tempos de polarização: "Gostaria de dizer que o mal que está solto no mundo atualmente, dentro da complexidade da psique, recuasse um pouco, diante dos seus opostos".