Por que as escolas dos EUA precisam falar sobre linchamento

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Por que as escolas dos EUA precisam falar sobre linchamento

O novo documentário 'An Outrage' visita locais de linchamento em seis estados do sul dos EUA para explorar um dos capítulos mais brutais da história norte-americana — e suas ligações com o racismo moderno e a violência policial.

Esta matéria foi originalmente publicada na  VICE US .

Grande parte da história norte-americana é marcada por reuniões de brancos em praças das cidades e outros espaços públicos para assassinar negros sob auspícios de puni-los por crimes que frequentemente eles não haviam cometido. Às vezes, esses justiceiros nem se incomodavam com supostas ofensas e simplesmente enforcavam pessoas para aterrorizar afro-americanos em suas comunidades, afirmando seu domínio no rescaldo da escravidão. Segundo uma profunda pesquisa recente, estima-se que cerca de quatro mil vidas foram tiradas por selvageria extrajudicial nos estados do sul dos EUA entre 1877 e 1950.

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Isso pode parecer história antiga numa era em que Barack Obama acabou de servir dois mandatos como presidente dos EUA. Mas com uma suposta alta nos crimes de ódio e a administração Trump empenhada em acabar com programas que beneficiam pobres e minorias, numa tentativa de "Tornar a América Grande de Novo", esse é um capítulo importante na longa e brutal história racial no país.

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Em seu novo documentário,  An Outrage, Hannah Ayers e Lance Warren tentam mostrar à próxima geração quão ruins as coisas eram naquele época. A ideia é que professores possam contar com o filme numa era de ressentimento branco renovado, para mostrar aos estudantes até onde chegamos — e por que nunca podemos voltar atrás.

O filme de 30 minutos foi gravado em seis locais de linchamento na Geórgia, Carolina do Sul, Mississippi, Texas, Tennessee e Virgínia, com descendentes das vítimas, ativistas e historiadores. A VICE conversou recentemente com os cineastas sobre por que é importante – agora mais que nunca – que os americanos reflitam sobre sua história destrutiva, como a história dos linchamentos em particular é útil para entender dinâmicas de poder racial, e o que tudo isso significa na era de Trump.

VICE: Imagino que os jovens norte-americanos — especialmente os brancos — vão sofrer para entender os linchamentos. Vocês podem falar o que isso implicava? Lance Warren: No século seguinte a uma terrível guerra [guerra civil norte-americana], primeiro pela união e depois para acabar com a escravidão, milhares de mulheres, homens e crianças negros — os mais novos cidadãos da nação, de uma casta desprezada por séculos — foram assassinados porque buscavam liberdade nos EUA. Muitos milhares de afro-americanos pereceram nas mãos de linchadores no sul por mais de um século depois da Guerra Civil. Os que morreram eram homens jovens e velhos, veteranos, recém-casados, crianças, mulheres grávidas. Eram irmãos e irmãs, mães e pais, melhores amigos. Eram seres humanos.

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Linchamentos não eram apenas enforcamentos, e não eram perpetrados apenas por gangues de caipiras ou a KKK. Nas praças das cidades e nas florestas, em segredo ou em público, homens mulheres e crianças brancas de todas as classes sociais participavam do sequestro, mutilação e assassinato de afro-americanos acusados de sérios crimes — ou pequenas afrontas à honra branca. O que define "linchamento" é um assassinato que acontece fora do sistema judicial e assassinatos que eram socialmente sancionados — os linchadores não eram punidos, muitos eram aplaudidos e até recompensados. No auge da epidemia de linchamentos, nos anos de 1890, um afro-americano era morto em algum lugar do sul a cada quatro dias.

Por que vocês fizeram o filme? Era simplesmente para se afastar das injustiças da história norte-americana? Se sim, como conseguimos isso? Fazer uma ponte não será fácil ou sem desconforto. Afinal de contas, como Isabel Wilkerson reconhece no nosso filme: "Quem ia querer pensar sobre essas coisas horríveis?" Mas como ela, sabemos que encarar a história é algo necessário e cheio de promessas. Se buscarmos a força que deve vir de uma visão compartilhada do futuro, isso não vai diminuir ao confrontar honestamente a feiura do passado. Na verdade, isso torna esse futuro mais acessível, porque não seremos mais atrapalhados por desconfiança, dúvida, ressentimento e medo. Encarando o horror feito por norte-americanos que vieram antes de nós, identificando os comportamentos e preconceitos em todos nós que perpetuam a dor desses atos, e discutindo como lembrar e ir além desse passado, podemos fazer melhor. Podemos fazer melhor.

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"A taxa de afro-americanos sendo mortos hoje é similar à taxa de norte-americanos sendo linchados no começo do século 20."

Dado o alcance da prática do linchamento — que não era apenas coisa do sul — como vocês decidiram onde, geograficamente, filmar? Vocês poderiam ter passado por centenas ou até milhares de locações, certo? Hannah Ayers: Os seis estados em que filmamos dão um retrato da longa e geograficamente variada história do linchamento [nos EUA]. Uma coisa que aprendemos logo no começo da nossa pesquisa é que não existe um linchamento "típico". Os seis lugares que escolhemos ajudam a ilustrar a complexidade do linchamento e como isso era difuso. Esses atos violentos ocorriam em áreas rurais e praças, em espetáculos secretos e públicos, no Delta, nos Apalaches e cidades movimentadas. Quando estávamos decidindo onde filmar, nosso foco foi identificar indivíduos com histórias fáceis de se identificar: um descendente de uma vítima de linchamento, um descendente de um editor negro de jornal que protestava contra os linchamentos, um ativista trabalhando para documentar essa história, um pastor, um voluntário numa biblioteca de genealogia. Muitos desses indivíduos cresceram em lugares onde linchamentos aconteceram, e estão trabalhando para registrar essas histórias e lembrar as vítimas.

Vocês podem falar sobre a importância dos linchamentos, considerando os diálogos sobre raça que estamos tendo nos EUA nos últimos anos? Warren: Devemos saber, só de assistir as notícias e protestos nos últimos anos, que as raízes das tensões raciais [no país] são profundas. Mas podemos não entender o porquê. Nosso filme tenta responder essa questão, revelando não apenas a história por muito tempo escondida dos linchamentos, mas também a cultura do medo, a ambivalência sobre o valor das vidas negras, e a persistência da violência que tem levado muita gente — hoje, e há gerações — a exigir o fim do status quo. Se seus ancestrais tivessem sido torturados, assassinados e depois esquecidos, você não estaria com raiva? Você não exigiria reparação?

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A história dos linchamentos é perturbadora, mas não devemos vê-la como controversa: não há pontos conflitantes legítimos sobre linchamento. Mas estamos dizendo isso se os achamos problemáticos demais para ensinar, muito feios para uma conversa educada. Perpetuamos o esquecimento quando nos recusamos a lembrar. "Momentos em que vidas negras importam são predominantes na nossa história", aponta o historiador Yohuru Williams em  An Outrage. "E é nossa incapacidade de reconhecer a 'ferida aberta' que nos coloca nesse ciclo infinito de cada geração crescendo à sombra de um corpo negro brutalizado." Ele diz: "Meus pais cresceram à sombra de Emmett Till; eu cresci à sombra de Yusef Hawkins; meu filho vai crescer à sombra de James Byrd e Trayvon Martin. Quando isso vai parar?"

"Esquecer nossa história é um luxo que os brancos podem se dar, mas os negros não."

Ayers: Tragicamente, esse é o momento perfeito [para esse filme] porque finalmente há mais conscientização de que os negros são brutalizados e desumanizados — e isso não é um fenômeno novo. Famílias negras têm suportado séculos de violência; por isso o Black Lives Matter é um movimento necessário. Um dos historiadores que entrevistamos, Jonathan Holloway, argumenta que esquecer nossa história é um luxo que os brancos podem se dar, mas os negros não. "E se você tem esse luxo", ele aponta, "o problema é um sistema que repete a si mesmo, porque ninguém lembra de dizer 'Espere um pouco — estamos fazendo tudo de novo'." É perigoso ver o vídeo do assassinato de uma pessoa negra desarmada — e achar que isso é novo — e não reconhecer como isso ecoa através da história norte-americana.

Como a violência policial moderna se liga aos linchamentos? Uma acadêmica que entrevistamos para o filme, Isabel Wilkerson, explicou isso bem. Ela apontou que a taxa de afro-americanos sendo mortos hoje é similar à taxa de norte-americanos sendo linchados no começo do século 20. "É uma simetria muito triste de ataque público", ela diz, "sobre pessoas que estão na casta mais baixa desde a fundação do país". "Simetria" é uma palavra astuta para se usar aqui. Linchamentos e mortes de homens negros desarmados não são a mesma coisa, claro, mas devemos lidar com essa simetria. As duas coisas envolvem medo dos homens negros e a suposição de que eles são violentos. As duas coisas se relacionam com a perigosa dinâmica de poder e desejo de controle social. E tragicamente, as duas coisas têm permissão para persistir por causa da complacência pública.

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Qual é a reação ideal ao filme para vocês — que tipo de impacto vocês esperam ter, dada essa dinâmica de poder nos governos nacional e estaduais, e o tipo de "reação branca" que estamos vendo agora? Esperamos que nosso filme sirva como um foco de ação. Temos visto os melhores documentários servindo como ponto de protesto para pessoas que se importam com uma questão, que querem educar outros membros da comunidade, e então se organizar para mudar alguma coisa. E devido ao trabalho da Equal Justice Initiative, além de historiadores, autores, grupos religiosos e ativista, mais e mais comunidades estão se conscientizando sobre os linchamentos que aconteceram nas praças de suas cidades e em seus quintais. Grande parte do nosso esforço será fazer parcerias com grupos para tornar o filme disponível para exibições, e dar a eles ferramentas para gerar discussão sobre como melhor reconhecer a história de violência racial em suas comunidades. Também vemos um grande potencial de mudar mentes e desencadear ações através da disponibilização do uso do filme para escolas e universidades.

Temos sorte de ter um parceiro com o Southern Poverty Law Center para incorporar o filme a seu programa Ensinando Tolerância. Esse programa oferece a professores currículos e materiais educativos para abordar desigualdade e justiça nas salas de aula.  An Outrage será um componente significativo para uma nova iniciativa que empodere professores para ensinar a história racial dos EUA, incluindo a escravidão e seus legados. Nosso objetivo desde o início era encontrar um parceiro que pudesse levar o filme às salas de aula — e queríamos trabalhar especificamente com o Southern Poverty Law Center. Nossa parceria significa que o filme e um currículo complementar estarão disponíveis gratuitamente para aproximadamente 500 mil professores e milhões de estudantes.

Saiba mais sobre An Outrage aqui .

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Tradução: Marina Schnoor

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