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Banir a Capa Alternativa de Batgirl em Referência à Piada Mortal É uma Escolha Ética ou Comercial?

Conversamos com o artista brasileiro Rafael Albuquerque para entender o que o levou a pedir a retirada de sua ilustração da nova edição do gibi da DC Comics.

"A liberdade tem de vir com responsabilidade", explica parafraseando o Homem-Aranha, o artista brasileiro Rafael Albuquerque, veterano da DC Comics. Recentemente, ele retirou de circulação a capa alternativa que desenhou especialmente para a edição nº 41 da série Batgirl. Após uma campanha amplamente repercutida nas redes sociais questionando o cunho sexista e abusivo da imagem, o artista, juntamente com a DC Comics e os autores da série, resolveu soltar um comunicado se desculpando pelo teor da ilustração e anunciando a retirada do pin-up, que deveria fazer parte de uma edição voltada para um público feminino entre 14 e 17 anos.

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Quem está familiarizado com o universo do Batman sabe muito bem que as histórias do Cavaleiro das Trevas envolvem narrativas pesadas que misturam moral, loucura e violência. A referência que o Rafael usou para a imagem em questão é especialmente aplicada a essa tríade: é a agressão do Coringa à Batgirl na célebreBatman: A Piada Mortal, escrita por Alan Moore e lançada em 1988.

Na HQ, Moore e o desenhista Brian Bolland contam o surgimento do arqui-inimigo do Batman e também a missão dele de enlouquecer o próprio e todos seus entes queridos. Uma parte da história mostra a imagem perturbadora de um dos aliados do Bruce Wayne, o Comissário Gordon, sendo colocado pelado em uma montanha-russa depois de ter visto sua filha Barbara (a Batgirl) ser baleada pelo Coringa, o que a deixa paralítica. A HQ deixa também em aberto se houve ou não violência sexual.

Como visto acima, a homenagem de Albuquerque à clássica história de Moore retrata a personagem Barbara Gordon sendo abraçada pelo Coringa segurando um belo dum cano e borrando uma tinta vermelha no rosto dela, formando um Chelsea Smile semelhante ao dele. A ilustração, que apareceria na forma de um pin-up na edição, acabou colocando em pauta mais uma vez a sexualização feminina no universo dos quadrinhos. A hashtag #ChangeTheCover, que pedia a troca da capa, acabou também atraindo diversas opiniões contrárias, resultando na retirada da arte de Albuquerque – cujo conteúdo, no fim das contas, não tinha nada a ver com a história contada na edição em questão.

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Muito além de uma questão da representação feminina, talvez estejamos testemunhando uma interessante tomada de posição comercial por parte da indústria de quadrinhos. Em vez de representar personagens femininas em situações de puro horror (que não deixam de atrair leitores), talvez seja muito mais atraente vender uma imagem de uma super-heroína forte e empoderada para meninas que desejam se identificar com a personagem. O próprio Rafael que já desenhou para outra edição da Batgirl,demonstra exatamente isso.

A autocensura do desenhista pode ter sido interpretada negativamente por alguns fãs, porém também coloca novamente em foco que a indústria de HQs, assim como toda a indústria de entretenimento em geral precisa ficar muito mais ligada em atrair novos públicos do que ficar restrita a um certo perfil que imaginamos de consumidores de quadrinhos. "É muito difícil a gente ver nitidamente um quadrinho que não parte para a sexualização da mulher, ou que tem personagens femininas que são fortes, que sãorole models. Logo isso faz com que não existisse um público feminino que comprasse quadrinhos", reflete o ilustrador.

Após o pronunciamento da DC Comics na segunda-feira (16), decidimos procurar o Rafael para trocar uma ideia sobre a polêmica.

VICE: Já deu alguma polêmica antes com alguma de suas capas?
Rafael Albuquerque: Olha, acho que é a primeira vez que deu uma repercussão tão grande, que nem sei se nos quadrinhos já teve alguma coisa nessas proporções.

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Como foi que aconteceu?
O que acontece é o seguinte: toda vez que uma revista vai ser vendida, eles divulgam um preview da capa antes. Então, foi feita para a edição uma capa alternativa mais voltada para colecionadores. Por ser um leitor mais antigo e conhecer algumas coisas dos anos 1980/1990, achei que seria legal fazer uma homenagem a uma história bastante conhecida, que é a Piada Mortal.

Só que o que não levei em consideração na hora era essa questão do público-alvo da Batgirl. Na história, existe realmente uma situação muito violenta com a Barbara Gordon envolvendo o Coringa, porém o do tom da revista agora é completamente outro: ele é voltado para o público feminino, jovem, e ela [a capa] acabou passando muito essa mensagem de abuso. [A Barbara] é uma personagem forte que se tornou um modelo mesmo para essas leitoras.

Então,quando vimos essa reação da capa, ficamos surpresos; realmente, por mais que eu goste dessa imagem e da história, ela realmente não é para o público-alvo que a edição está buscando. Aí, tanto eu, a DC e os autores da história achamos apropriado retirar a capa.

Vi que foi da tua própria iniciativa vetar a capa. Como e por que você tomou essa decisão?
Quando vi a reação online, primeiro entrei em contato com os autores para saber o que eles estavam achando de tudo isso. E a gente acabou concordando que tudo realmente não fazia sentido. Depois, entrei em contato com a produtora e acabamos concordando que acabou fugindo do tom que eles queriam passar: então, todos decidiram que seria melhor retirar a capa.

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Muitos dos seus seguidores reclamaram de você a ter vetado e alguns até insinuaram que a nova capa seria para "fãs dos filmes do Batman". O que você acha dessa postura de "exclusividade" que alguns leitores tomam em relação à história em quadrinhos?
Não sei exatamente como responder essa pergunta. Não tem muito a ver com o filme do Batman. Como um leitor antigo de quadrinhos, fiz a capa pensando que agradaria os leitores. E, de fato, agradou muita gente, especialmente por conta dessa conexão com a história antiga. Mas o ponto não é esse. Não é se vai agradar um ou outro. O ponto mesmo é que a imagem não tem nada a ver com o foco da edição atual. Eu acredito que os fãs antigos talvez nem leiam essa revista, porque, se o cara tá buscando aquela personagem que foi abusada e violentada naquele momento, ele não vai nem [se] conectar com essa nova personagem.

Nós não estamos fazendo nem para os fãs antigos nem para os fãs do filme – a gente tá fazendo público que tá chegando, começando. Isso é muito importante. Porque acho que,em nenhum momento como agora, a indústria esteve tão interessada em buscar novos fãs e novos públicos; por isso, as minorias estão também tendo revistas para elas.

Acho que os fãs antigos, às vezes, falham em perceber que nem todas as revistas são para eles e que está começando a aparecer uma audiência nova. Acho, inclusive, que é uma coisa bastante positiva.

Você acha que o mundo HQ deveria ser mais inclusivo com minorias?
Sem dúvida nenhuma, ele tem de ser. É uma questão social: todas as pessoas seguem exemplos, e os quadrinhos são um exemplo também. O jovem que se identifica com um personagem de quadrinhos por esse ter um caráter louvável – é muito importante para a formação dele. Tem um lado que acho que é o ético, e tem um lado que acho que é o comercial também. Precisa ter uma preocupação muito mais ampla, acho que fica um pouco importante isso. É claro que isso não vai agradar a todos.

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Os fãs de HQs são mais linha-dura na hora de aceitar essas "inclusões" nos quadrinhos?
Não dá para generalizar. Acho que tem muita gente que gosta, que acha que foi positivo. E não tem muito a ver com o fã antigo e o fã novo: acho que tem muito mais a ver com o que vem da história de cada um, sabe? Não dá para polarizar.

Numa entrevista,você comenta que o universo HQ sempre foi machista. Isso é uma coisa que você sempre notou ou só depois da polêmica da capa você acabou percebendo esse aspecto?
Como estava te dizendo antes, os quadrinhos historicamente foram feitos para um público masculino, hétero, branco. E,até muito pouco tempo atrás, era muito raro uma revista que vai contra isso, que não é para esse público específico. E,como te falei,acredito que está começando a expandir essa visão. Quando falo que a indústria é machista, tem a ver com isso. É muito difícil a gente ver nitidamente um quadrinho que não parte para a sexualização da mulher ou que tem personagens femininas que são fortes, que são role models. Logo, isso faz com que não existisse um público feminino que comprasse quadrinhos. Acho que isso tá mudando, gosto de ver que a indústria tá amadurecendo.

Teve muita gente que comparou a história de você ter vetado a capa com censura. Você acha que é o caso?
Obviamente que não é o caso. Censura é a questão de você poder falar o que quiser, mas o importante também é poder não falar o que não quiser. Não tem a ver com censura, tem a ver com passar a mensagem certa. A liberdade é importante, mas a liberdade tem de vir com responsabilidade. Eu acho que essa é a parte que as pessoas têm deentender: quando a liberdade não é exatamente o que elas querem.

Você acabou fazendo outra capa alternativa para a edição #41?
Não. A revista não vai ter uma capa alternativa. Apenas a capa oficial, feita pelo Cameron Stewart.

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