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Rappers falam sobre depressão, hip hop e cultura negra norte-americana

Conversamos com artistas para entender como o encontre entre música, depressão e traumas sociais do povo negro interferem na arte e vida do rap.

Imagem por Frances Smith.

A escritora Rachel M. Harper certa vez comparou a relação entre dor e arte com o parto. "Não queremos que [nossa mãe] sofra para nos trazer ao mundo", ela escreveu, "mas ficamos felizes em estar vivos". Em se tratando do hip hop, é difícil discordar. Scarface peneirou sintomas de depressão e esquizofrenia para o som definidor do Geto Boys "Mind Playing Tricks on Me". Me Against the World veio depois que Tupac levou vários tiros e estava esperando por uma sentença de prisão. Future disse que "a melhor coisa que fiz foi me desapaixonar" — cinco projetos e "March Madness" depois, parece que ele estava certo.

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Apesar de alguns dos raps mais transcendentes abraçarem abertamente a tristeza, às vezes a depressão e o hip hop não se dão bem. Grande parte dessa divisão vem do fato de que o hip hop é um gênero competitivo e abastecido pelo machismo. Combine isso com o capitalismo brutal da indústria da música dos EUA, e o hip hop pode se tornar um ambiente em que a depressão clínica e outros transtornos mentais são considerados uma fraqueza. E você não pode ter fraquezas quando está no fundo da boate ampliando os negócios.

Isso não quer dizer que o hip hop é a única cultura que não aborda apropriadamente as doenças mentais. Mas ele é uma forma de arte, uma extensão da comunidade afro-americana em que depressão e problemas mentais geralmente são estigmatizados, e com resultados perigosos. Pesquisadores descobriram que as taxas de suicídio dobraram entre 1993 e 2012 entre garotos negros norte-americanos. Mesmo rappers conhecidos tiraram a própria vida, como o MC do Brooklyn Capital STEEZ, que se matou em 2012, aos 19 anos. A morte dele destacou a questão da saúde mental no hip hop e começou um importante diálogo. Mas não é surpresa que alguns rappers tenham respondido de maneira desrespeitosa à tragédia. O rapper nova-iorquino Troy Ave fez uma faixa dizendo que o artista está "queimando no inferno" por se matar, provando que o rap ainda tem que amadurecer muito em se tratando dessa questão. Falamos com alguns artistas da cena norte-americana sobre o que eles acham da ligação entre depressão, suicídio e a música a qual eles dedicaram suas vidas.

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Fat Tony
Idade: 28
Houston, Texas

Artistas que falam sobre [depressão] recebem destaque: gente como Scarface, Earl, Future ou Biggie. Muito dos aspectos de vulnerabilidade nas músicas deles são o que os tornam tão incríveis. Mas acho que depressão não é algo discutido abertamente no rap — e também não é discutido abertamente na comunidade negra em geral, ponto. A saúde mental é uma coisa que fica meio que bloqueada.

No final de 2013 eu morava no Brooklyn, em Williamsburg. Me mudei para lá porque o selo pelo qual lancei meu álbum, Smart Ass Black Boy, tinha um escritório na área. Eu estava cansado do estilo de vida de ficar indo a bares o tempo todo, e meu colega de apartamento na época e eu não estávamos nos dando bem. Eu sentia que não estava num bom momento da minha vida. Tive alguns problemas com o lançamento daquele disco: a empresa não colocou o álbum disponível online nos cinco dias depois do lançamento… Um monte de fãs estavam me mandando mensagens como "Cara, seu disco saiu hoje, por que não consigo comprar pelo iTunes? Por que não saiu no Spotify? Por que a Amazon diz que não posso comprar seu CD?" Isso acabou voltando para mim, e fiquei devendo dinheiro para o selo por vendas que não tinham acontecido. Foi a maior merda.

Acabei voltando para Houston porque queria me cercar de pessoas que não estivessem falando de música o tempo todo. Minha decepção com minha carreira musical passou para a vida pessoal. Amigos me diziam: "Você não parece o mesmo, você não está mais tão extrovertido". Na época eu só queria ficar sozinho.

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Fiquei mal pela maior parte de 2014 até o verão passado. Claro, não anunciei que estava triste, deprimido nem nada assim; agora que sai daquele estado, vejo isso melhor. Acho que fiquei estafado no Brooklyn, aí voltei para Houston. Aí fiquei cansado de Houston e fui embora de novo. Fui para a Califórnia, que é um lugar muito mais calmo. Eu não estava com pessoas com quem cresci lá. Era apenas eu num lugar novo, e isso me deu muito tempo para pensar. E quando finalmente tive tempo de ficar sozinho, consegui trabalhar a minha mente e resolver esses problemas.


Archie Green
Idade: 30
Cleveland, Ohio

Depressão não é um assunto discutido o suficiente dentro da cultura afro-americana, especialmente entre os homens. É porque os afro-americanos são retratados como machos alfa, e [depressão] é um sinal de fraqueza. Muitos rappers e MCs não falam sobre depressão porque sentem que isso é castrador.

Para mim, acho que foi muito terapêutico escrever sobre isso. Não estou dizendo que orar ou meditar não ajuda, mas, ao mesmo tempo, como artista, é meio que nosso dever estar do lado transparente. Para realmente contar nossa história, temos que contar tudo.

Fui oficialmente diagnosticado com depressão ano passado. Para mim, veio de uma experiência ruim: três anos atrás, depois de voltar para Cleveland de Nova York, fui pego dirigindo embriagado. Tive minha carteira suspensa por um ano. Depois o juiz me permitiu dirigir apenas de casa para o trabalho e de casa para a igreja. Muito disso foi um isolamento autoimposto; eu sentia que não queria ser um peso para os meus amigos, porque sempre que queria sair com eles, alguém tinha que vir me buscar. Depois de um tempo, comecei a aceitar que era assim que minha vida tinha que ser, pelo menos naquele momento. E me senti muito sozinho. Tive dias muito ruins, dias em que não estava me sentindo necessariamente suicida, mas eu perguntava a Deus "Por que você está me fazendo passar por isso?"

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Um irmão de fraternidade me ligou e recomendou que eu conversasse com alguém. Até aquele momento, eu nunca tinha pensado em fazer terapia ou falar sobre o que estava passando pela minha cabeça. Mas cheguei a um ponto onde eu queria isso. Fico muito agradecido por ter começado a ver um psicólogo, porque é saudável. Mesmo que você não sinta que está passando por uma depressão, eu recomendo. Especialmente se você é uma pessoa criativa, é muito bom falar sobre isso.


YC the Cynic
Idade: 25
Bronx, NY

Acho que a depressão é varrida para baixo do tapete no hip hop, assim como na comunidade negra em geral. Como Mos Def disse: "O que acontece com o hip hop é o que acontece com a gente". Nunca sugerimos terapia para nossa família. Nem mesmo pensamos em depressão como uma doença mental. É geralmente algo como "Ei, por que você está triste? Não temos tempo para isso."

Comigo foi um pouco diferente, porque eu não conseguia identificar isso dessa maneira. Esse sempre foi o tipo de pessoa que sou: se fico triste e não quero fazer nada, acho que só estou triste e não quero fazer nada. Mas conheço gente que tem depressão. E é muito difícil lidar com isso.

Acho que muitos artistas lidam com depressão, mas não são o tipo que vai chegar e dizer na lata: "Acho que estou deprimido agora".


L'Orange
Idade: 27
Wilmington, Carolina do Norte

Não acho que [a depressão] é mais estigmatizada no hip hop que em outros gêneros. Isso definitivamente tem a ver com uma cultura tradicional de masculinidade. Esse é um gênero que nasceu da independência, e muitas vezes quando as pessoas estão falando de independência, elas estão falando de expressão e competição. Depressão, especialmente entre pessoas que não entendem isso, pode ser vista como uma fraqueza.

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Sinto que sou mais criativo quando estou mais confortável comigo mesmo, e fico mais confortável comigo mesmo — infelizmente e realisticamente — quando estou deprimido. Essa questão é tão complicada porque há um grupo de pessoas que acreditam que sua arte só pode vir da depressão, que você é menos artista quando negocia consigo mesmo e tenta ser feliz e funcional.

Quando você fala de depressão como pessoa — estar quimicamente desequilibrado — estamos falando sobre uma luta constante. Uma situação em que você faz barganhas consigo mesmo. Você toma a decisão de seguir em frente; nada é fácil quando você está tendo que negociar com esses pontos de vista sombrios.


Little Pain
Idade: 23
Brooklyn, NY

Cresci ouvindo Dipset, as coisas mais antigas deles, e eles sempre falavam de depressão — mesmo Jim Jones. Acho que a depressão sempre esteve no hip hop; diferentes artistas já discutiram isso de várias maneiras. Você tem caras como os Geto Boys e Scarface, que sempre falavam de depressão. Outro artista obviamente é o Tupac. Em várias canções ele fala sobre sua morte.

Outro dia eu estava no meu quarto descansando, e ouvi um cara gritando com uma mulher: "Cara, se anime! Se anime! Você sabe quantas pessoas neste bairro têm depressão? Não saímos por aí nos matando. Isso é coisa de branco". Acho que essa é a ideia ao redor da depressão. Na comunidade negra, é como se falar sobre isso em público fosse tabu.

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Alguns anos atrás, dei uma entrevista para o Noisey e, na semana seguinte, um autor escreveu que eu estava zombando da depressão. Um dos exemplos que ele deu foi o suicídio de Capital STEEZ e que muitas pessoas passam por isso, que não era certo zombar dessa situação. A questão é a seguinte… o jeito como a pessoa escolhe expressar isso só depende dela. Pensando assim, é tudo a mesma coisa, esteja você passando por isso do modo Beanie Sigel, do modo Kid Cudi ou como eu estou fazendo. Seja lá como você coloca [seus sentimentos] para fora, é assim que você lida com isso.


Sammus
Idade: 30
Ithaca, NY

Apenas pela parte artística, [o rap] tem o potencial de ser um pouco mais intenso, porque é sobre lirismo e te atinge de um jeito diferente do que uma música cantada. As pessoas estão realmente focadas nas palavras e na experiência que você está tentando criar com as palavras, então você meio que sente como se estivesse conversando com aquela pessoa.

Para ser honesta, nem sei se o hip hop realmente aborda as questões de depressão ou saúde mental. Eu estava pensando nisso hoje, e sei que o Big Sean tem uma rima em que ele diz que quanto maior ele fica, mais ele quer ver um psicólogo. Lembro que achei isso interessante e apreciei a sinceridade dele.

Questões relacionadas à automedicação geralmente são ignoradas ou usadas para dizer que o rap não é sobre nada. Mas vendo isso pelo aspecto da saúde mental, muitas dessas canções estão dizendo: "Não consigo lidar com o mundo em que estou". Frequentemente ouço essa retórica, mesmo em discussões sobre a legalização de certas drogas e como a automedicação é parte da experiência de ser negro neste país. É altamente estressante. É uma parte importante da discussão, e eu realmente gostaria que isso não fosse usado para dizer que rappers estão falando merda, porque você acha mensagens poderosas em coisas que as pessoas estão dizendo sobre as drogas que usam.

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Na música "1080p", falo sobre como eu tinha pensamentos suicidas e me automedicava com pílulas. Acho que há vários níveis, porque muita gente já comentou isso comigo. Elas falam da perspectiva de ter que lidar com isso a vida inteira. Para mim, foram mais eventos específicos da vida que desencadearam o problema. Tive dias ruins, tive dias bons, e sinto que através de terapia e mesmo da minha música, comecei a me curar.


Dyme-A-Duzin
Idade: 23
Brooklyn, NY

Hoje em dia no hip hop, há muitas músicas populares sobre se intoxicar, ficar chapado e esquecer sobre a depressão. Temos que colocar camadas sobre a depressão, para que ela não seja discutida realmente na música. Dê a volta por cima e esqueça essa merda.

"That Chicken" é a perspectiva de uma pessoa jovem do gueto, ou de qualquer lugar, lidando com a depressão, que vem da vida que ele ou ela leva ou dos obstáculos que enfrenta. É a perspectiva de alguém que diz "Caramba, sinto como se não tivesse ninguém nessa merda, mas tenho que fazer o que tenho que fazer e continuar vivendo". Estou tentando pensar nisso mais profundamente, ver a perspectiva real das pessoas e não só a fachada que elas mostram.

As comunidades negra e do hip hop no geral sempre foram essa cultura durona. Por exemplo, o lancedo Troy Ave com Capital STEEZ só mostra a mentalidade old school dos artistas e das pessoas de Nova York… Mas não sinto que essas opiniões vão importar a longo prazo. Acho que uma conscientização maior está se espalhando, e as novas gerações serão expostas a isso.

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Tradução: Marina Schnoor

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