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A Artista que Está Transformando Cabelo numa Questão Política para as Mulheres Britânicas Negras

A performance da artista Selina Thompson, Dark and Lovely, é uma exploração de como as madeixas informam as ideias de raça, gênero e beleza.

Selina Thompson no cenário de sua performance Dark and Lovely.

"Cabelo é só cabelo." Selina Thompson tinha repetido isso seis ou sete vezes para 40 estranhos reunidos em torno dela antes de pedir que eles repetissem isso em coro. "OK, vocês não estão entendendo ainda", ela diz, insistindo para que todos se juntem a ela no que logo se torna parte de um ritual. Cabelo é só cabelo. Cabelo é só cabelo.

No entanto, nove anos atrás, num banheiro de Erdington, Birmingham, o cabelo dela não era só cabelo. Quando Thompson, então com 16 anos, se olhou no espelho e decidiu que a única solução para seu afro, danificado por anos de relaxamento caseiro, era raspar a cabeça, cabelo não era só cabelo. Cabelo não era só cabelo quando sua mãe chorou e seu pai se recusou a falar com a filha então careca.

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"Eu estava confusa", ela me conta depois de emergir de uma cabana de apliques que forma o cenário de sua performance solo Dark and Lovely – uma exploração de como as madeixas informam as ideias de raça, gênero e beleza. "Eu não conseguia entender todas essas reações ao meu redor. A reação do meu pai foi a mais difícil de lidar, ele ficou muito bravo. Mas não me arrependo daquilo, porque eu estava muito infeliz com o estado do meu cabelo antes."

O tema "cabelo é só cabelo" é a resposta de Thompson à recepção inicial de Dark and Lovely, vinda geralmente de pessoas que não conseguiam entender por que isso era um tema digno da atenção incessante que a artista vem mostrando pelo assunto nos últimos dois anos. As respostas são condensadas em quase duas horas de histórias coletadas de salões de cabeleireiro de comunidade negras típicas da Inglaterra, onde o que significa ser uma mulher negra vem estrondosamente à tona.

Thompson começou a recolher seu material frequentando salões, barbearias e lojas de produtos de beleza voltados para negros da área de Chapeltown, Leeds, quando descobriu que a melhor maneira de entrar na pele das figuras nesses lugares era pôr a mão na massa e ajudar. "Descobri que chegar lá com um caderno e um gravador deixava as pessoas nervosas; então, elas não queriam falar comigo. Aí comecei a passar o dia trabalhando nesses lugares."

"Aprendi muito sobre o que é ser negra e britânica – e a multiplicidade disso. Descobri que, para essas mulheres, fazer o cabelo é um momento de comunhão e de criar laços, quase um momento espiritual para ser compartilhado entre as pessoas. Entretanto, também aprendi que isso expõe as tensões mais sérias e sombrias dentro da comunidade negra."

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A obra central da apresentação de Thompson – um iglu de 2 metros de altura de apliques de cabelo, uma cadeira de barbeiro e uma foto – é onde ela cria uma comunidade momentânea, onde ela coloca a plateia no coração das vidas negras que explora.

A cena interior é inabalável em sua pureza, um jeito de gerar um diálogo espontâneo e real entre Thompson e seu público. Para aqueles familiarizados com as referências – na noite em que assisti à performance em Sheffield, mulheres negras formavam quase metade do público –, isso provoca risadas de reconhecimento e interrupções bem-vindas enquanto ela aborda essas histórias.

Para aqueles que não cresceram com as pressões comuns relacionadas ao cabelo negro, o iglu é um lugar onde fatos e estatísticas – e Thompson têm muitos – se transformam em pessoas e experiências reais. Por exemplo, a L'Oreal estima que mulheres negras gastam seis vezes mais com suas madeixas que qualquer outro grupo étnico. As mulheres do Reino Unido gastam £ 5,2 bilhões (mais de R$ 30 bilhões) com os cabelos, e 80% disso é gasto por mulheres negras, mesmo que elas representem apenas 3% da população.

Algumas das histórias de Thompson são simples e conhecidas. Outras têm diversas camadas. "Tem a história de uma garotinha", ela me conta, "que voltou das férias e foi à escola com tranças corridas. Ela levou um bilhete para casa dizendo que tranças não eram adequadas para o ambiente escolar; portanto, os pais responderam perguntando por quê.

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"Eles apontaram que outras garotas negras da escola usavam tranças corridas. Os professores disseram que a escola fazia concessões para a herança cultural de outras pessoas, mas que o cabelo da menina era muito urbano; logo, ela não podia usar aquele penteado. Penso muito nessa história. Há muita coisa aí, mas não consigo desfazer todos os nós."

Cabelo não é só cabelo – é muito mais que isso. É como um atalho para experiências de negros que vivem num mundo branco. Um mundo onde uma estudante de 18 anos tem de viajar até o outro lado da cidade para achar os produtos de que seu cabelo precisa, passando por várias lojas de rede no caminho. Não é necessariamente uma história sobre vítimas e opressores, e sim uma em que uma garota fica imaginando por que precisa perder uma tarde inteira num salão de cabeleireiro para conseguir uma conveniência básica.

"Não se pode desfazer 400 anos de danos com cem anos de trabalho meia-boca", destaca Thompson. "Há séculos, cabelo negro é considerado 'o outro' e tratado de maneira muito agressiva, como se isso fosse pelo ou lã. As mudanças que fazemos são na textura, para que isso pareça mais com cabelo caucasiano, e isso tem muito a ver com políticas de raça e beleza, com quem é e quem não é bonita, e o valor cultural que entra nisso.

"No final das contas, cabelo negro ainda é 'o outro'", continua Thompson. "Isso está no outro oposto do espectro de beleza."

Depois de duas horas de exploração cuidadosa, fica claro que essa é uma questão complexa. Reduzir o processo a que Thompson e milhares de outras como ela passaram como "uma luta" é triste e denigre uma experiência que parece estar no coração da identidade feminina.

"Quanto eu tiver filhos, quero cercá-los com muitas imagens de cabelo negro. Penteados não só bonitos mas legais." Ela ri, o tipo de risada que entra no seu ouvido e te aquece por dentro. "Embora seja difícil saber o que as crianças vão achar legal."

Tradução: Marina Schnoor.

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