Trecho de 'O Absoluto Frágil', de Slavoj Zizek

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Trecho de 'O Absoluto Frágil', de Slavoj Zizek

A Boitempo Editorial gentilmente nos cedeu um fragmento do livro do esloveno Slavoj Zizek, que a editora lança este mês no Brasil.

Sobre A Origem do Mundo, de Gustave Courbet, como ponto de partida para a arte moderna.

"Uma das maneiras mais esclarecedoras de localizar [a] ruptura entre a arte tradicional e a arte moderna seria por meio da referência à pintura que de fato ocupa o lugar do "mediador evanescente" entre elas: a (mal-)afamada A origem do mundo, de Gustave Courbet, um torso feminino nu, excitado e despudoradamente exposto, com foco na genitália. Essa pintura, que desapareceu durante quase cem anos, foi enfim encontrada – de modo bastante apropriado – entre os pertences de Lacan depois de sua morte. A origem do mundo expressa o impasse (ou beco sem saída) da pintura realista tradicional, cujo derradeiro objeto – jamais exibido plena e diretamente, mas sempre aludido, apresentado como uma espécie de ponto de referência subjacente, a começar ao menos por Verweisung, de Albrecht Dürer – era, obviamente, o corpo feminino nu e totalmente sexualizado como objeto definitivo do desejo e do olhar masculinos. Aqui, o corpo feminino exposto funcionou de maneira semelhante à referência subjacente ao ato sexual nos filmes clássicos de Hollywood, mais bem descrita pela famosa instrução do magnata do cinema, Monroe Stahr, a seus roteiristas em O último magnata, de Scott Fitzgerald:

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Sempre, em todos os momentos em que ela é vista na tela, ela quer dormir com Ken Willard. […] Tudo o que ela faz é em substituição a dormir com Ken Willard. Se desce a rua, desce para dormir com Ken Willard; se come, é para ter forças para dormir com Ken Willard. Mas em momento nenhum você dá a impressão de que ela ao menos consideraria a hipótese de dormir com Ken Willard, a não ser que eles fossem apropriadamente abençoados.

Desse modo, o corpo feminino exposto é o objeto impossível que, justamente por ser irrepresentável, funciona como horizonte definitivo da representação cuja abertura é para sempre adiada – em suma, como Coisa incestuosa lacaniana. Sua ausência, o Vazio da Coisa, é então preenchida por imagens "sublimadas" de corpos femininos belos, mas não totalmente expostos – por corpos que sempre mantêm uma mínima distância da Coisa. Mas o ponto crucial (ou melhor, a ilusão subjacente) da pintura tradicional é que, não obstante, o "verdadeiro" corpo nu incestuoso está lá, esperando para ser descoberto – em suma, a ilusão do realismo tradicional não está na reprodução fiel dos objetos retratados, mas na crença de que por trás dos objetos representados diretamente está a Coisa absoluta que só poderia ser possuída se fôssemos capazes de eliminar os obstáculos ou proibições que impedem o acesso a ela.

Courbet realiza aqui o gesto da dessublimação radical: ele assumiu o risco e simplesmente foi até o fim, retratando de forma direta aquilo a que a arte realista anterior apenas aludia como ponto de referência distante – o resultado dessa operação, é claro, foi (em termos kristevianos) a reversão do objeto sublime em abjeto, em um abominável e repugnante lodo excrementoso. (Mais precisamente, Courbet continuou ocupando habilmente o limite impreciso que separa o sublime do excrementoso: o corpo da mulher em A origem do mundo mantém toda sua atração erótica, embora se torne repulsivo justamente por conta da atração excessiva.) O gesto de Courbet, portanto, é um beco sem saída, o beco sem saída da pintura realista tradicional – mas, justamente como tal, é um "mediador" necessário entre a arte tradicional e a arte moderna – ou seja, representa um gesto que teria de ser realizado se fôssemos "limpar o terreno" para o surgimento da arte "abstrata" moderna.

Com Courbet, acaba o jogo de se referir ao objeto incestuoso "realista" eternamente ausente, a estrutura da sublimação entra em colapso, e a tarefa do modernismo é restabelecer a matriz da sublimação (a lacuna mínima que separa o Vazio da Coisa do objeto que o preenche) fora dessa coerção "realista", ou seja, fora da crença na presença real da Coisa incestuosa por trás da superfície enganadora da pintura. Em outras palavras, com Courbet, aprendemos que não existe Coisa por trás de sua aparência sublime –se forçarmos nossa entrada através da aparência sublime da própria Coisa, tudo o que encontraremos é uma náusea sufocante do abjeto; portanto, a única maneira de restabelecer a estrutura mínima da sublimação é representar diretamente o próprio Vazio, a Coisa como Vazio-Lugar-Moldura, sem a ilusão de que esse Vazio é sustentado por um Objeto incestuoso oculto. Agora entendemos exatamente em que sentido – por mais paradoxal que pareça – o Quadrado negro sobre fundo branco, de Malevich, como pintura seminal do modernismo, é o verdadeiro contraponto a A origem do mundo (ou sua reversão): com Courbet, temos a própria Coisa incestuosa que ameaça arrasar a Clareira, o Vazio em que os objetos (sublimes) aparecem (ou podem aparecer), ao passo que, com Malevich, temos o exato oposto, a matriz da sublimação em sua forma mais elementar, reduzida à simples marcação da distância entre o primeiro plano e o fundo, entre um objeto (quadrado) totalmente "abstrato" e o Lugar que o contém. A "abstração" da pintura moderna, portanto, deveria ser vista como uma reação à presença evidente do objeto "concreto" definitivo, a Coisa incestuosa, que a transforma em um abjeto repugnante – ou seja, transforma o sublime em um excesso excrementoso.

Nesse aspecto, a tarefa da análise materialista histórica é localizar todas essas determinações demasiado formais em seu contexto histórico concreto. Primeiro, éclaro, há a estetização do universo das mercadorias mencionada anteriormente: o resultado é que – colocando em termos algo patéticos – hoje, o verdadeiro lixo são os objetos "belos" com os quais somos constantemente bombardeados de todos os lados; consequentemente, a única maneira de escapar do lixo é colocar o próprio lixo no lugar sagrado do Vazio. No entanto, a situação é mais complexa. Por um lado, há a experiência das catástrofes (reais ou fantasiadas) globais (da catástrofe nuclear ou ambiental ao Holocausto), cujo impacto traumático é tão forte que elas não podem mais ser concebidas como eventos simples que acontecem dentro do horizonte/clareira sustentado pelo Vazio da Coisa – nelas, a própria Coisa não é mais ausente, ou seja, apresentada como Vazio, como pano de fundo dos eventos reais, mas ameaça se tornar diretamente presente, efetivar-se na realidade e assim provocar um colapso psicótico do espaço simbólico. Por outro lado, a perspectiva de uma catástrofe global não era estranha ao século XX – então por que teve tanto impacto precisamente nesse século, e não antes? Outra vez, a resposta está na sobreposição progressiva da estética (espaço do belo sublime isento da troca social) à mercadorização (o próprio terreno da troca): é essa sobreposição e seu resultado, o esgotamento da própria capacidade de sublimar, que transforma cada encontro com a Coisa em uma catástrofe global destruidora, o "fim do mundo". Não surpreende, portanto, que na obra de Andy Warhol o objeto cotidiano e trivial que ocupa o Lugar sublime de uma obra de arte seja nada mais do que uma fileira de garrafas de Coca-Cola."

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