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Games

Ameaças legais da Nintendo a sites de emulação são um ataque à história dos games

A remoção de ROMs da internet pode causar danos catastróficos à cultura dos videogames.
Crédito: Chris Kindred

Miodrag Kovačević, desenvolvedor de games sérvio de 29 anos, atualmente trabalha em projetos de alto orçamento, mas sua infância não foi das mais abastadas. Importar consoles para a Sérvia há três décadas era algo caro e apenas algumas pessoas endinheiradas tinham consoles em casa. Miodrag cresceu jogando vários games de Super Nintendo na casa de amigos ou em “fliperamas” não-oficiais, em que pagava por hora para jogar em diversos consoles.

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“Quando descobri emulação e ROMs, eu já tinha PC e pude conhecer os jogos da década passada que sempre quis zerar e só tive como jogar por uma hora ou duas antes”, disse Kovačević em uma conversa por email. “Aquilo me deu a chance de compensar por tudo que me foi negado na infância”.

Kovačević disse ainda que provavelmente teria interesse em games mesmo sem a existência de ROMs, que permitem às pessoas emularem jogos de consoles em seus computadores, mas não teria o mesmo entendimento que tem hoje.

“Tenho certeza que os games que joguei graças a sites de ROMs estão na casa dos quatro dígitos”, afirmou. “Meu primeiro trabalho escrevendo sobre games foi numa seção retrô de uma revista sérvia, que meio que foi o início da jornada que me levaria a atuar como desenvolvedor. Não sei se teria conseguido o emprego sem o acesso a sites de ROMs ou pirataria”.

Em julho deste ano, a Nintendo processou dois populares sites de ROMs, LoveROMS e LoveRetro.co, naquilo que a empresa chamou de uma “desavergonhada infração dos direitos de propriedade intelectual da Nintendo em larga escala”. Ambos os sites saíram do ar. Na semana passada, outro grande site, já em 18 anos de atividade, EmuParadise, afirmou não mais poder permitir às pessoas que baixassem games antigos, atribuindo tal restrição à “consequências potencialmente desastrosas”.

Por mais que a Nintendo tenha mesmo direito de levar estas ações adiante, histórias como a de Kovačević me entristecem ao ver a empresa correr atrás de sites de ROMs, acrônimo para “read-only memory” ou “memória somente para leitura”, onde entusiastas “rippam” cartuchos originais em computadores de forma a criarem imagens ROM – cópias digitais, resumidamente – desse jogos.

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“Cada vez mais recebemos avisos de retirada”, afirma MasJ, consultor de software de 30 anos que fundou o EmuParadise. Ele não quis divulgar seu nome verdadeiro. “Alguns destes são enviados diretamente aos nossos servidores. De primeira era coisa de empresas de games ou da ESA [organização que defende os interesses de empresas de games dos EUA]. Não veio nada fora do comum até agora, mas o processo [contra o LoveROMS e LoveRetro.co] serviu de forte indicativo de que estas empresas não irão parar até tirarem sites como o nosso do ar. Sempre presumimos que ao passo em que atendêsemos aos pedidos de retirada, ainda mais se tratando do conteúdo obsoleto que oferecemos, ficaria tudo bom. Acabam de nos provar o contrário”.

A Nintendo é detentora dos direitos de propriedade intelectual de seus games, e quando pirateiam estes em vez de comprar um Super NES Classic Edition ou uma cópia digital em alguma das lojas da fabricante, pode-se argumentar que a empresa perde uma grana. De acordo com o site da própria Nintendo, ROMs e emulação também representam “a maior ameaça conhecida aos direitos de propriedade intelectual de desenvolvedores de games”, e “possuem o potencial de danificar” dezenas de milhares de empregos. Mesmo quando um game da Nintendo não está à venda, a propriedade intelectual ainda pertence à empresa, que pode botar na prática seus direitos.

"Descobri algo quase tão excelente quanto a existência dos emuladores: as pessoas estavam traduzindo games japoneses! Aquilo me deixou louco! Poder jogar coisas que não eram pra gente, incluindo os títulos da série Final Fantasy que ‘faltavam’ na época.” — Joshua Bray, 36, Cincinnati, Ohio

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Mas a remoção destas ROMs da internet pode causar danos catastróficos à história dos games como um todo. Muitos desenvolvedores e pessoas que tem videogames como parte importante de suas vidas, especialmente aqueles que cresceram em lares com pouca grana ou fora de algum país ocidental rico, não teriam tomado essa decisão se não fosse pela existências destas ROMs. Capítulos inteiros da história dos games se perderiam se os emuladores e ROMs não a preservassem, exatamente o ponto em que as grandes empresas falharam. E mais importante ainda: negar o acesso a estas ROMs torna o processo de educação destas pessoas quanto ao desenvolvimento de games ainda mais complicado, possivelmente atravancando toda uma nova geração de desenvolvedores de games pelo mundo afora.

“Enquanto professor, muitas vezes vejo alunos se esforçando brutalmente para tentar solucionar problemas que já haviam sido resolvidos em 1985”, afirmou por email Bennett Foddy, professor do Centro de Games da Universidade de Nova York (NYU), desenvolvedor de títulos como QWOP e Getting Over It. “E assim como se ensinaria pintura ou música (ou matemática), o que se faz enquanto professor é mandar os alunos para a biblioteca estudar os clássicos, para que compreendam onde erraram. Só assim podemos progredir nas áreas de ciências, humanas ou artes criativas”.

O problema mesmo é que por mais que a NYU tenha um acervo excelente de consoles e games antigos, este acervo só cobre uma proporção minúscula da história dos games. Ele não conta, por exemplo, com jogos de computador de 8 e 16-bit, que eram distribuídos em mídia magnética que com o passar do tempo acabou corrompida. Não conta também com jogos que operam com moedas, absurdamente caros para uma biblioteca mesmo nos dias de hoje, com maiores dificuldades de acesso considerando que fliperamas já não existem mais, praticamente. E claro, a maioria das pessoas que estão começando a jogar games também não tem sequer acesso ao acervo da NYU.

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“Se eu estivesse dando aulas de poesia, poderia mandar um aluno ler praticamente qualquer poema escrito desde que inventaram a prensa móvel, mas quando falamos de games, minhas opções garantidas por lei me deixa com talvez menos de 1% dos games já feitos em toda a história”, disse Foddy.

"Não seria metade de quem sou hoje se não fosse pela emulação. A prática é essencial para a preservação da história da arte e design de games.” – Abigail Shoemae, 21, desenvolvedora de games indie do Mississipi, nos EUA.

“Aprendi a usar um editor hexadecimal para alterar paletas também e fiquei bem feliz em editar a paleta de cores de Dig-Dug de forma que ficasse mais próxima da versão em fliperama do jogo”, disse Moffitt. “Destrinchar jogos antigos e observar seus gráficos em blocos é uma parte vital do aprendizado quando se trata de game design e técnicas de desenvolvimento, mesmo ao lidar com plataformas mais recentes”.

O bicho pega mesmo, de acordo com Foddy, é quando sites começam a sair do ar ou removem suas ROMs por conta do processo da Nintendo ou de uma simples ameaça da empresa, por mais que no final das contas as ROMs da Nintendo seja apenas uma pequena fração do conteúdo disponibilizado nestas páginas.

“A maioria do conteúdo hospedado pelo Emuparadise era obra de empresas que já não existem mais e que tem poucas chances de ser comercializada legalmente”, disse Foddy. “Esta é uma daquelas situações em que a lei de direitos autorais parece um tanto quanto falha – por mais que elas estejam no direito, do ponto de vista legal, as empresas envolvidas nestas derrubadas estão simplesmente cometendo gigantescos atos de vandalismo cultural, ao meu ver”.

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Faria sentido para a Nintendo dar cabo destes sites de ROMs agora, antes de lançar seu serviço Nintendo Switch Online, em que o usuário pagaria um assinatura do incrivelmente popular console Switch. Além de ser necessário pagar tal assinatura para jogar online, a assinatura também dará acesso a um acervo de games clássicos da Nintendo quese expandirá ao longo do tempo. Não consigo afirmar com precisão o motivo pelo qual a empresa está indo atrás destes sites agora, visto que ela não se pronunciou para além dos processos, que em momento algum mencionam o timing destas ações. Entrei em contato com a Nintendo e não obtive resposta até a publicação deste texto.

Frank Cifaldi, fundador da Video Game History Foundation, comentou que acredita que a popularidade destes sites está por trás da comercialização do Super NES Classic Edition e games antigos no Switch por parte da Nintendo.

“Não creio que o setor no qual atuo exista sem emulação”, afirmou Cifaldi em entrevista ao telefone. “Acredito que a comunidade teria deixado games antigos para lá caso não tivesse acesso a estes jogos. Não creio que o Virtual Console da Nintendo [portal oficial da Nintendo para comprar títulos antigos no Wii U, Wii e 3DS] existiria. Isso provou que o mercado existia”.

Mesmo hoje, com métodos legais para aquisição de títulos clássicos, o mais dedicado segmento de gamers ainda depende de ROMs. A comunidade dos speedrunners, que se dedica a zerar games o mais rápido possível, conhecida pelos eventos Games Done Quick, que já arrecadaram mais de 16,5 milhões de dólares para instituições de caridade até o momento, vale-se de ROMs para encontrar a forma mais ágil de zerar um jogo, além de transmitir tentativas de speedruns com games raros.

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“Duvido que estaria trabalhando como streamer de games em meio-período se não fosse pelas ROMs”, afirmou Brian Cook, professor de língua inglesa e literatura de 32 anos da Universidade Estadual de Utah e também streamer voltado a games obscuros de “qualidade inferior”, via email. “Um game que jogo regularmente, Alpiner, foi lançado para TI-99. O console custa por volta de 36 dólares mais 40 dólares para o sintetizador de voz… Ninguém gastaria essa grana a não ser que tivesse certeza de que game vale tudo isso. ROMs nos dão a oportunidade de explorar estes games antigos e encontrar verdadeiras pérolas”.

Se é que tal informação vale de algo, disse Cook, agora ele tem uma cópia de Alpiner pra chamar de sua, por mais que seu dinheiro não tenha ido para a desenvolvedora ou para a Texas Instruments, criadora do TI-99. “Eu queria ter uma lembrança deste jogo bobo”, afirma.

Cifaldi também trabalha junto à desenvolvedora Digital Eclipse, especialista no relançamento de games clássicos em novos dispositivos. Ele afirma que sites de ROMs não só mantiveram o interesse dos jogadores em games antigos da Nintendo em alta por anos a fio antes da empresa oferecer uma maneira realista de comprar tais games como a própria indústria dos games depende, literalmente, da tecnologia criada pela comunidade de emulação.

Caso você adquira o Doom original na Steam hoje, por exemplo, o game rodará no seu PC com base em um software gratuito de código livre chamado DOSBox, que emula o sistema operacional DOS. O Retro-Cade, dispositivo que licenciou e comercializou legalmente games de desenvolvedoras como Capcom, tem como base o emulador RetroArch, criado para rodar ROMs ilegais. Muito dos games point-and-click da LucasArts que foram relançados oficialmente rodavam com base no engine SCUMM, agora rodam com base no ScummVM, gratuito e desenvolvido por um fã. Cifaldi apresentou provas que sugerem que a própria Nintendo revendeu ROMs que haviam sido postadas na internet ilegalmente, mas a empresa nega.

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“Todos os emuladores são construídos em cima do que veio antes. A emulação de consoles da Nintendo não surgiu do nada. Houveram décadas de software que serviram de referência, criados por pessoas que construíram seus próprios hardwares para extração destas ROMs e que criaram seus próprios emuladores para jogá-las”.

Cifaldi disse ainda que parte do que se passa na Digital Eclipse hoje depende de trabalhos desenvolvidos na cena amadora de emulação, citando documentos criados ao longo dos anos que detalham como recriar games antigos fielmente em hardwares mais novos. “Se não fosse todo esse trabalho que vem sendo feito pela comunidade, estes games não existiriam”, disse Cifaldi. “Não seria algo comercialmente viável”.

Todos com quem falei sabem bem da posição legal da Nintendo neste caso. Se ela quiser derrubar um site de ROMs, ela pode. A questão é, o que a Nintendo poderia fazer para proteger seus direitos sem eliminar a comunidade da qual seus fãs mais dedicados dependem?

De acordo com MasJ, fundador do EmuParadise, as empresas de games deveriam adotar um modelo semelhante ao Spotify, em que usuários podem pagar uma mensalidade para ter acesso a um acervo extenso de games antigos.

“A demanda existe, só é preciso criar o serviço”, afirmou. “Eu entendo que o licenciamento seria um problema considerando que a indústria de games é muito mais fragmentada do que a do cinema ou música. Mas é um desafio que vale o esforço e espero que vejamos algo o quanto antes”.

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Cifaldi concorda.

“Acho que o único motivo pelo qual não temos uma Netflix para games é porque a Nintendo demonizou a emulação, que é apenas uma ferramenta e a melhor possível para que se possa jogar games antigos”.

Por mais que esta solução seja melhor do que o paradigm atual, ela só vale para games que a Nintendo e demais empresas querem vender novamente. Para desenvolvedores, historiadores e mesmo speedrunners como Cook, geralmente os títulos menos conhecidos são os mais interessantes.

O site Lost Levels de Cifaldi, por exemplo, é voltado à conservação da memória de games que nunca foram lançados oficialmente, algo que as pessoas só poderiam ter acesso através de ROMs. Cook atualmente tem jogado Monkey King em seu canal nO Twitch, um game não-licenciado para o NES, desenvolvido na China. Isso só foi possível graças às ROMs, sem contar o esforço de tradução para o inglês empreendido por fãs para que mais pessoas pudem jogar o título.

“A pior parte disso tudo pra mim é que a indústria cinematográfica já aprendeu esta lição”, disse Cifaldi. " 90% dos filmes surgidos antes da década de 30 já não existem mais porque haviam sido criados para serem vendidos uma única vez e nunca mais”.

De acordo com Foddy, se a Nintendo quisesse mesmo lançar todos seus games mais antigos para plataformas mais modernas, ele não se preocuparia com a empresa correndo atrás de ROMs em sites como o EmuParadise.

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“Mas não é isso que querem – os títulos mais populares são disponibilizados e o resto some”, disse Foddy. “Cadê Clu Clu Land no Virtual Console? Cadê a versão de dois jogadores exclusiva do Famicom de Excitebike? Não tem nada disso ali, então se as ROMs somem, estes jogos são apagados da história.” ( Clu Clu Land e Vs. Excitebike acabaram chegando ao Virtual Console, mas títulos raros como Adventures of Lolo 3 e games não-licenciados, nunca deram a caras).

“Posso te falar enquanto game designer que acabo encontrando algumas das mecânicas e soluções mais inteligentes em jogos medianos, inacabados ou horríveis mesmo”, afirmou Kovačević said. “Então temos empresas levando adiante seus direitos em relação a estes jogos, mas como as alternativas apresentadas são tão pobres, quem sai perdendo é a comunidade levando em conta que o meio é péssimo quando se fala de conservação”.

É importante para mim destacar a experiência de Kovačević considerando que ela acaba por ser muito semelhante à minha. Super Metroid para o SNES é um de meus games favoritos, mas nunca joguei ele no console. Quando criança, tive a sorte de ter pais que puderam me dar um SNES e alguns jogos ao ano, mas nunca consegui jogar tudo.

Nasci e fui criado em Israel, e como a maioria das pessoas em países onde a Nintendo não tem representação oficial, por muitas vezes não tinha como conseguir os games de forma legal, mesmo com a grana na mão. Caso uma loja da região não importasse algum cartucho (incluindo os custos exorbitantes repassados ao consumidor) ou ninguém que eu conhecesse estivesse vindo dos EUA ou qualquer outro país em que games de SNES estavam amplamente disponíveis, bem, azar o meu.

Na adolescência, porém, descobri que poderia rodar um emulador de SNES no meu computador e logo comecei a baixar todos os games de Super Nintendo ao qual não tive acesso anteriormente. Foi uma das coisas mais empolgantes que poderia fazer num computador até então. As ROMs, junto de outras formas de pirataria, me deram acesso e me educaram quanto a games, o que me possibilitou trabalhar escrevendo sobre games pouco após o ensino médio, o que por sua vez muito provavelmente me levou a trabalhar escrevendo em um site de tecnologia. Sei por experiência própria que as pessoas não estão exagerando em nada quando dizem que ROMs tiveram um impacto significativo em suas vidas.

Como Foddy disse, no final das contas, os processos da Nintendo fariam sentido se a empresa visasse um benefício real ao derrubar estes sites, mas não é o caso. O faturamento da Nintendo aumentou e diminuiu ao longo das décadas em que sites de ROMs se popularizaram. O Wii U foi um desastre e vendeu poucos games. O Switch é um sucesso e está vendendo muitos jogos. Há diversas razões para isso, mas é dureza de entender como uma cópia traduzida, hackeada de Monkey King ser tirada do ar ajudaria em algo.

“Só causa prejuízos”, disse Foddy. “Quem está nessas empresas e ama games, não deveria deixar isso continuar”.

Esta matéria foi originalmente publicada no MOTHERBOARD US.

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