Baco Exu do Blues é deus e homem no seu primeiro disco, 'Esú'
Foto: Fernando Gomes

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Noisey

Baco Exu do Blues é deus e homem no seu primeiro disco, 'Esú'

O rapper baiano fala sobre como o via sacra da depressão ao gozo pós-"Sulicídio" o fizeram criar o que ele define como "o disco do ano".

Baco Exu do Blues tá de volta trazendo o mesmo escárnio que levou seu nome para além dos ouvidos de seus conterrâneos. Seu primeiro álbum, Esú, já traz na capa o tom provocador característico do co-autor de "Sulicídio" e que se estende pelas dez faixas que compõem o trampo. "A forma mais fácil de a gente desconstruir as coisas é causando raiva e discussão e essa capa tem a ver com isso", afirma o MC que, há pouco mais de um ano, plantou a desgraça na cena junto a Diomedes Chinaski. Os sons de Esú são as respostas de Baco às pressões e glórias vividas desde que largou os estudos pra estudar o rap, colocar seu nome no cenário nacional, arrumar uns desafetos entre os colegas e fazer o que, para ele, é o disco do ano.

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Para desenvolver os instrumentais que dão base à sua lírica carregada de sarcasmo e referências diversas, Baco convidou o produtor carioca Nansy Silvvs e também chamou KL Jay pra riscar uns vinis na faixa que abre Esú. Encontrou ainda inspiração em samples que reverenciam suas raízes nordestinas e africanas na busca de uma sonoridade própria que dialoga intimamente com o que anda em evidência no rap/trap no Brasil. Segundo o MC, o disco traz a história de um personagem em transição, que passa por diversas provações, da depressão ao gozo, através de sacadas poéticas como "carrego comigo coragem de erê/ carrego comigo coragem dinheiro e bala", onde faz referência a Chico Science. Suas referências que, inclusive, estão por todo o disco com fotografias de Mário Cravo acompanhando as músicas e filmes cult, pintores surrealistas e literatura baiana sendo misturados às neuroses e crenças do Exu do Blues.

Colamos no apartamento dele em Salvador e, entre uma breja e outra, ouvimos o MC baiano falar sobre questões como deuses, a depressão pós-Sulicídio e do disco que você já pode dar play agora.

Noisey: Comente sobre o processo de composição de Esú. Você fez tudo do zero a partir de "Sulicídio" ou já tinha umas coisas prontas de antes? E como foi a parceria com o Nansy Silvvs?
Baco Exu do Blues: Esse disco tem coisa de antes, de agora, e do mesmo momento de "Sulicídio". É uma passagem, um resumo de tudo que aconteceu comigo. O Nancy foi o seguinte: eu queria fazer com um produtor presente, que eu pudesse estar ao lado pra passar minhas referências e daí quis trazer ele pra Salvador pra esse trabalho, pois acho que ele é o que mais entende essa fita do trap. Como ele produz pra uma galera de fora, já tem uma forma de pensar diferente. Ele pensa 100% trap e eu adicionei minhas referências a isso pra chegar com um bagulho diferente.

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Por que "Esú"? Qual sua relação com o orixá e o que é ser o exu do blues?
Engraçado que eu tava conversando com minha coroa hoje sobre isso. Quando eu me intitulei Exu do Blues eu não tinha noção de nada, não tinha noção do tamanho do nome. E aí foi ganhando sentido com o caminho que eu fui percorrendo e, hoje, o sentido é completo pra mim. Tem a ver com a questão do mensageiro, de abrir caminhos, de ser a entidade que mais sente o carnal e humano. Do caminho do meio, estar bem e estar ruim ao mesmo, aceitar e passar sobre isso. Meu trampo é isso, a confusão, nada certo e acho que é um bagulho que eu precisava colocar ali.

Entre tantos trabalhos sendo lançados no rap, o que você acha que faz desse um disco relevante?
Eu procurei fazer um bagulho que eu acredito que nunca foi feito aqui no Brasil, e de gringos eu também não tenho nenhuma referência que possa dizer que parece com o que eu tô fazendo. Desde o conceito do disco às fotografias que acompanham cada música, pra pessoa compreender o disco ela tem que estar de fato interessada na parada. Eu trabalhei ele todo pra ser uma saga, uma saga pessoal mas que eu acredito que também seja a de quem vai ouvir. A trilogia é "você tá bem, encontra algo que te tira daquele conforto, que te leva à depressão e você consegue sair disso", sabendo que a depressão e a vitória andam juntos. Quando você encontra esse ponto de coexistir em meio a isso é que você se mostra onipotente. Essa é a parada do disco, quero que todo mundo que ouça pense "eu sou um deus", mas um deus humano que é fudido, passou por muita coisa, mas um deus.

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Realmente tem muita informação, muita coisa saindo mesmo e acaba que muito disso vai ficando descartável. Tem som que bate três milhões de views e daqui a uma semana não tem mais ninguém ouvindo. A gente tá num momento do rap de muito alvoroço por tudo e logo depois isso cai. Eu não quero fazer parte disso, eu vim pra quando soltar um som esse som ser um clássico, ficar na sua cabeça, você lembrar do meu som daqui a três, quatro anos. Vão lembrar de "Sulicídio", "999", "Tropicália"… daqui a anos! Eu faço pra ser marcante pra quem ouve.

E o que você acha dessa questão que a gente comentou do alvoroço do público, esse lance mais volátil de que tudo é o melhor lançamento por poucos dias?
Eu acho que isso é meio culpa dos MCs, que educaram o público a pensar que o óbvio é genial. Qualquer parada óbvia que você fala é levada como genial porque ninguém tava falando antes. Quando você tem uma cultura de ouvir besteira e você ouve o óbvio, você fica "caralho, alguém falou!". Eu já vi letra de gente traduzindo livro, colando várias frases e as pessoas acharem genial. As pessoas estão acostumadas com coisa rasa e falta muito sentimento nas músicas. O bagulho que era pra ser pensado por um tempo acaba fazendo sentido só por um dia e acabou, não tem aquela profundidade que te faz refletir por um tempo mesmo. O último som (falando de singles) desse ano que eu senti algo a mais foi o Victor Xamã, "Adepto", um som que me levou pra outro lugar, que me fez sentir toda a atmosfera que ele imprimiu ali. Mas eu vejo vários sons que são lançados por aí e não me levam a lugar nenhum. Eu ouço a rima, o flow e não vejo por que ouvir novamente.

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Foto: Fernando Gomes

Em algumas músicas do disco você parece falar a partir de personagens. Isso procede? E numa balança hipotética, o que você acha que pesaria mais na sua escrita: sua vivência, suas referências ou essa licença poética de falar a partir de um personagem?
É clichê falar isso, mas acho que eu vou muito pelo sentimento da obra completa. Eu vejo a escrita como uma trindade a se respeitar: instrumental, forma que você canta e a letra. São as três coisas que vão passar o sentimento. Minha letra é um elemento disso pra expressar o sentimento que eu quero. Eu não vim nesse disco preocupado com punchlines, métricas e blá blá blá. Eu vim preocupado em passar um sentimento mesmo.

O que você fazia antes de ser MC?
Eu sou MC desde que eu parei de estudar pra ser MC. Não aconselho ninguém a fazer isso porque é um tiro no escuro, mas eu sempre tive uma certeza muito forte de que eu só ia prestar pra isso mesmo. Botei essa parada na minha cabeça, me internei, li o máximo que pude, vi o máximo de filme e fotografia que pude e tudo que podia me interessar pra minha escrita.

E quem era Baco antes de "Sulicídio"?
Era um MC tentando ganhar a vida com rap e me divertindo. Quando você ainda é desconhecido pelo grande público, acho que é o momento mais divertido da vida de um MC. Você tá só com seus parceiros, dando rolé, bebendo, pensando em rap 24 horas por dia. Isso é muito do começo. Você escreve suas melhores letras quando está no anonimato, sem a pressão do público. Produza e estude o máximo que você pode nesse momento pra quando as coisas acontecerem você estar preparado pra isso.

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O que você viveu pós-"Sulicídio" que você acha que mais influenciou nas composições desse disco?
A depressão que eu entrei depois de "Sulicídio" é um bagulho que foi muito importante. Pouca gente sabe, mas nas primeiras semanas após a música sair eu fiquei totalmente introspectivo. Fiquei em casa fechado, só saía pra fazer show mesmo, sem entender o que tava acontecendo. De uma hora pra outra tudo mudou pra mim e eu não estava preparado pra reagir a tudo aquilo, toda aquela pressão, cobranças do público. Esse processo de internação e tudo que aconteceu depois, de rodar o Brasil, conhecer minhas influências e ao mesmo tempo vivendo sob julgamento o tempo todo… Eu tava com medo de perder minha musicalidade, de não voltar a ser o que eu era e manter o que eu sou. Começaram a rotular tudo e eu pensei "foda-se o rótulo que as pessoas estão me dando" e esse álbum é uma fuga disso. Eu não vou ficar ouvindo o que tão falando sobre mim ou nem me pedindo pra fazer, eu vou fazer o que eu quiser.

Essa pressão você sentiu mais da parte do público ou de outros MCs?
Do público, mano. MC não faz mal nenhum a outro MC, o máximo que pode rolar é uma disputa amigável ali.

E a reação dos nordestinos?
Na real, apesar de "Sulicídio" ter gritado o nome do Nordeste, a maioria da galera que se beneficiou nem foi daqui. Surgiram bem mais nomes de fora do eixo mas que também são de fora do nordeste, saca? Eu não sei lhe dizer o porquê. Talvez por ter mais preparo e mais facilidade com relação à estrutura, porque aqui a gente faz na raça, quem faz sabe disso. A diferença de conforto é absurda pra outros lugares. Não é falta de qualidade, tô falando de estrutura. Vão acontecer mais coisas que vão levantar outras bolas como "Sulicídio" levantou, isso vai continuar surgindo. E acho que pro Nordeste foi tipo a preparação pra preparação, a galera viu que aconteceu, que a bola bateu na trave e pode entrar e aí as coisas mudarem mesmo. No momento em que o Nordeste entrar no jogo de fato, que tiver vários MCs daqui reconhecidos nacionalmente, aí o bagulho vai ficar doido porque a qualidade de escrita e de criatividade da galera daqui é um bagulho absurdo.

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Foto: Fernando Gomes

O que você busca ao se afirmar um deus, como na faixa-título do disco?
Essa faixa é tipo uma explicação do que é exu. Ele é homem, é deus e o mundo e os deuses têm medo dele, tanto que algumas religiões falam dele como demônio, com temor. Só que na verdade todo mundo é isso, não tem por que lutar contra.

Você faz parte de uma geração de MCs brasileiros que foi bastante influenciada pela galera que fazia o que era chamado de rap alternativo e que adotava uma postura mais underground, mais de humildade e, no entanto, hoje se rima bastante sobre ego e ideais mais próximos do capitalismo mesmo, o que você acha dessa mudança?
Tem um bagulho muito foda que eu aprendi com Emicida, que não é legal ficar ostentando pobreza. É importante você mostrar às pessoas que elas podem ganhar algo. Mais ainda quando a pessoa é periférica e/ou de cor. Quando um preto fala de ego, ele tá se auto-afirmando, a gente precisa de auto-afirmação. Empoderar as causas e, se as pessoas precisam de dinheiro, mostrar que a forma mais fácil de mudar as coisas, querendo ou não, é tendo dinheiro. É você ser preto, chegar num restaurante chique com alguém te olhando feio e consumir a mesma coisa que ela tá consumindo. Nisso você mostra igualdade, essa pessoa pelo menos toma um susto e isso é uma coisa que eu gosto, eu gosto de incomodar esse tipo de gente. A gente tá num sistema capitalista e nossa forma de mostrar a vitória é dentro desse sistema. A gente tem que ganhar, não pode ter uma geração só com MC rico e branco.

Seu disco é o disco do ano?
Sim.

Pra onde você levaria um fã de rap do sul no carnaval de Salvador?
Relógio de São Pedro. Acho que a viagem de entender Salvador é entender a agressividade da cidade, a humanidade, a negritude daqui, o porquê dos MCs daqui falarem desse jeito, produzirem dessa forma. E acho que você estar ali no Relógio de São Pedro, local que é um bagulho violento e ao mesmo tempo com beleza te mostra que Salvador é isso, uma violência bonita em todos os aspectos. É o susto e a admiração ao mesmo tempo.