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Relato

Por que homenageamos Marielle Franco na Argentina

Brasileiros jogaram flores para a vereadora no mesmo rio onde milhares de militantes argentinos foram atirados de aviões.
Foto cortesia do Coletivo Passarinho.

Isabela Gaia é uma jornalista e tradutora brasileira que mora em Buenos Aires, Argentina. Ela participou da organização de um protesto para homenagear e exigir justiça no caso da vereadora Marielle Franco e escreveu este texto.

Chegamos ao Parque de la Memoria, em Buenos Aires, para homenagear Marielle Franco na tarde do último sábado (14), dia em que se completava um mês de sua execução junto a Anderson Pedro Gomes, seu motorista.

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Foto cortesia do Coletivo Passarinho.

Embora todas as 37 organizações convocantes tivessem trabalhado para que o ato acontecesse, dava para ver no rosto da Andressa que era ela quem mais tinha feito para que recebêssemos a adesão de quase 100 organismos de direitos humanos, movimentos afro, LGBTQIA+ e “villero” (que moram nas favelas), além da comunidade brasileira e de outras entidades da sociedade civil.

Defensora dos direitos humanos e mãe solteira como Marielle, Andressa era amiga da vereadora e só ela sabe o quanto esse mês lhe custou.

Percorremos em zigue-zague o monumento pelas vítimas do terrorismo de Estado – visto de cima ele tem a forma de uma ferida aberta –, lendo os nomes dos 30 mil desaparecidos e assassinados pela ditadura militar argentina (1976-1983). Pessoas de 17, 24, 22 anos. Mulheres grávidas, cujos filhos foram sequestrados pelo Estado e desde então são procurados incansavelmente por suas avós.

Foto cortesia do Coletivo Passarinho.

Mais de 500 pessoas compareceram ao evento. Houve apresentações de música brasileira, dança afro, um desfile de tambores de candombe, poesia, rap e uma roda de capoeira. Uma generosa dose de cultura negra para um país que há tempos nega sua afrodescendência.

Mulheres representantes das diferentes organizações convocantes leram no microfone a Declaração de Buenos Aires, um documento conjunto assinado por um leque diverso de movimentos, desde as Abuelas de Plaza de Mayo até a Asamblea Lésbica Permanente ou a Agrupación Xangô.

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ASSISTA AO VÍDEO: MARIELLE PRESENTE

Marielle Presente


Entre as mulheres que leram a declaração estavam Lita Boitano, presidenta de Familiares de Desaparecidos y Detenidos por Razones Políticas e mãe de dois desaparecidos pela ditadura, e Vera Jarach, integrante das Madres de Plaza de Mayo Línea Fundadora e também sobrevivente do Holocausto nazista, que finalizou a leitura com gritos de “Marielle Presente!” e “Lula Libre!”.

Foto cortesia do Coletivo Passarinho.

Em seus 40 anos de militância, elas jamais haviam participado de uma convocatória com aquele grupo de organizações. Quem as uniu foi Marielle Franco.

Como diz o próprio documento, “Marielle representava o que há de mais novo e promissor na política atual”. Em Buenos Aires ou nas dezenas de cidades do Brasil que se manifestaram naquele dia, a militância provou a transversalidade de pautas políticas que ela personificava. Passou só um mês, mas o rosto de Marielle já é um símbolo da luta por justiça, democracia e igualdade para a nossa região que, em seus melhores momentos, só soube exaltar seus referentes masculinos, brancos e heteronormativos. Che Guevara que me perdoe.

Foto cortesia do Coletivo Passarinho.

À diferença do Brasil, porém, onde as instituições democráticas vêm sendo carcomidas a olhos vistos e o fascismo avança descontrolado, ali naquele parque a memória concreta nos dava algumas garantias sobre o futuro da Argentina, mesmo agora no contexto de um novo governo de políticas neoliberais muito similares às de Temer.

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Afinal, é para isso realmente que aquele espaço existe. A construção do monumento fez parte da chamada “justiça de transição” conquistada a duras penas nas últimas décadas por pessoas como aquelas avós e mães. Um processo de ações para enfrentar o legado de violência estatal do passado, garantindo o direito à memória, verdade e justiça, que a Argentina soube levar a cabo como nenhum dos outros países da região que atravessaram ditaduras no século 20.

Foto cortesia do Coletivo Passarinho.

Por isso é tão simbólico que terminássemos aquele ato jogando flores para Marielle no mesmo rio onde milhares de militantes como ela foram atirados de aviões, nos chamados “voos da morte” da ditadura. É tão terrivelmente simbólico quanto deve ser. Porque com os argentinos e as argentinas aprendemos que não estávamos ali para fechar uma ferida, mas para abri-la, para fazer doer e aprender. Porque não ter gravado na história do Brasil “Nunca mais” nos custou a vida de Marielle Franco.

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