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Julia Katharine. Foto: Larissa Zaidan/VICE Brasil

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A cineasta trans Julia Katharine não quer só sobreviver

Primeira transgênero brasileira a dirigir um filme em circuito comercial, Julia conta como é trabalhar entre a vontade de inspirar e o medo de morrer.

Bem ao início do longa-metragem Lembro Mais dos Corvos, nos primeiros minutos do filme gravado em um só take, a atriz e cineasta Julia Katharine admite que “eu sempre tive esse estigma de transtornada, sabe? Mulher trans… tornada.” Com estreia na Sessão Vitrine Petrobrás nesta quinta (21), o filme dirigido por Gustavo Vinagre – seu primeiro longa – e com produção da Carneiro Verde Filmes se trata de uma ficção quase documental. Numa noite de insônia, Julia conta histórias fabuladas de sua vida em frente às câmeras durante uma conversa com Gustavo.

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A autoficção – cujo formato de relato e o tema da insônia chega a lembrar um trabalho que o cineasta norte-americano Kahlil Joseph realizou com Seu Jorge em 2010, The Model: Oshun and the Dream – será precedida pelo curta Tea for Two. Com roteiro e direção de Julia, o curta se tornou o primeiro filme dirigido por uma pessoa trans a entrar no circuito comercial de cinema brasileiro e discute vários temas que dizem ou não respeito à autora pessoalmente: amor entre mulheres, solidão, depressão, transfobia, preconceito velado.

No país em que mais se mata transexuais no mundo e num governo excluiu os LGBTs da pasta de Direitos Humanos logo em seus primeiros dias, Corvos ganhou oito prêmios até então, incluindo um Troféu Helena Ignez, de melhor atriz, recebido por Julia na Mostra de Cinema de Tiradentes. Para a atriz e diretora, no entanto, mais importante que os prêmios é a simbologia de estrear os dois filmes no momento político em que o Brasil se encontra.

“Estrear esses filmes é um movimento de resistência, de dizer que estamos aqui e não vamos arredar o pé”, disse a cineasta em entrevista à VICE. Leia o restante da conversa abaixo.

VICE: Como você começou a trabalhar com cinema?
Júlia Katharine: A primeira experiência que tive com cinema foi num filme do Beto Brant, Crime Delicado (2005). Era pra ser uma figuração que acabou se tornando uma cena com fala, eu fiz uma improvisação e tinha certeza que ia acabar no chão da sala de edição. A cena entrou e eu fiquei super feliz, mas dali em diante não aconteceu mais nada. Me desliguei completamente disso e teve um hiato deste momento até eu reencontrar o Gustavo Vinagre. Antes do Crime Delicado nós tínhamos trabalhado no MixBrasil juntos e sempre conversávamos sobre fazer cinema. Ele foi pra Cuba estudar e eu fui pro Japão, e nos perdemos. Quando ele me reencontrou no Facebook, já era um cineasta premiadíssimo e me convidou pra fazer um curta. Desse filme nasceram outros dois, e daí o Corvos, que é a estreia dele no longa-metragem. Foi uma surpresa, um orgulho. E essa parceria foi muito feliz porque já temos outros dois projetos encaminhados.

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Foto: Larissa Zaidan/VICE

Durante esse tempo sem contato com o cinema, a ideia e vontade de trabalhar com isso ainda existia?
Existiu desde criança. Sempre quis fazer cinema, mas me parecia uma coisa impossível, então era só um desejo. Desde muito nova eu escuto as pessoas dizerem que pra uma mulher trans não existe lugar em nada. As referências que eu tinha de pessoas trans e travestis no cinema eram muito pontuais: um filme que eu vi com a Rogéria no começo dos anos 90, a Roberta Close fazendo um filme do Ivan Cardoso nos anos 80. Nunca vi uma mulher trans que tivesse filmografia.

Quando o Gustavo me ofereceu papéis nesses filmes todos, o que mais me chamou a atenção foi que a minha identidade de gênero nunca foi uma questão. No Filme-Catástrofe [2017], a minha personagem em momento nenhum diz que é trans, por exemplo. As pessoas interpretam como elas quiserem. No Cuidados [2017] a mesma coisa. Acho que isso acabou influenciando os amigos ao redor que fazem cinema porque de repente fui convidada pra vários outros filmes. E a questão trans virou um boom no cinema mais ou menos na mesma época. Pipocaram vários longas com temáticas trans e isso é interessante, mas ainda acho complicado. A maioria deles têm protagonismo de pessoas cis, e não acho que tenhamos que ficar cobrando de diretores que eles trabalhem com pessoas trans apenas porque os personagens são trans, de repente não é o que o diretor quer, não conversa com a proposta. Mas nós sempre temos que estar no lugar de prioridade, nas primeiras escolhas. Ainda é muito recente, temos muito o que avançar – isso se tudo não der errado, se esse governo não destruir tudo o que a gente construiu.

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Como é trabalhar com arte e ser transexual num governo em que as duas coisas são tão desvalorizadas?
É todo dia acordar com medo de que algo de ruim vai acontecer. Tenho um pouco de medo de ficar falando isso, mas é muito real. Tenho agitado meus amigos mais próximos para a realização de um longa-metragem que eu estou escrevendo e quero dirigir, mas não vou atuar. Eles respondem “pra quê essa urgência? Procura um edital”, mas eu não quero contar com nada disso. Estou sentindo que esses editais vão todos acabar, vai ter um desmantelamento dessas coisas.

Nunca vivenciei, nos meus 41 anos, um momento tão agressivo e violento contra pessoas trans e LGBTs. Toda essa política anti-LGBT que o governo tem legitimado e defendido está entrando na cabeça das pessoas intolerantes e estamos vendo violências absurdas. Estou sentindo um medo que nunca tive antes na minha vida e que começou na pré-eleição do Bolsonaro. Eu estava na Chapada dos Guimarães (MT), participando de um festival de cinema chamado Tudo Sobre Mulheres – eu era a única mulher trans no festival e fui já com muitas ressalvas, com muito medo do que eu fosse encontrar. E lá na cidade sofri todo o tipo de transfobia que nunca havia sofrido na minha vida. Chegou um momento em que tive que contar com a ajuda das minhas amigas pra me sentir segura andando por ali. De lá pra cá, é uma crescente. Fico sempre pensando em violência. Tento me proteger o máximo que posso porque tenho medo de morrer antes de filmar um longa-metragem. Então decidi que esse ano eu vou fazer, custe o que custar.

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Acho importante mostrar pra esse governo que a gente não vai voltar pro armário, que esse retrocesso que eles estão propondo vai acontecer pra eles e pros seus amiguinhos, mas pra mim não rola. Quero avançar. O cinema é uma ferramenta política e de transformação. Se antes minha pretensão era fazer comédias românticas porque eu queria me encantar com mulheres trans vivenciando romances que eu vi a Julia Roberts fazendo, hoje penso que quero usar essa ferramenta como dispositivo para alcançar pessoas e combater um pouco esse retrocesso.

“Acho importante mostrar pra esse governo que a gente não vai voltar pro armário, que esse retrocesso que eles estão propondo não rola pra mim. Eu quero avançar.”

Depois que você começou a trabalhar como atriz, como surgiu o ímpeto de passar a roteirizar e dirigir seus próprios filmes?
Desde menina, eu tinha umas pretensões muito malucas e não pensava pequeno. Sempre pensei que começaria como atriz, aí partiria pro roteiro e depois pra direção – fazer o movimento que as mulheres faziam nos anos 90, a Jodie Foster, por exemplo. Mas o Gustavo Vinagre, já em 2017, virou pra mim e falou “Ju, começa a escrever e a pensar em fazer seus próprios filmes porque você tem muito a oferecer e é importante que você aproveite esse momento.” Comecei a escrever o Tea For Two, que na verdade foi um tratamento em cima de um roteiro antigo que eu já tinha. Inscrevi no edital da Spcine, ganhei e começamos a filmar.

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Por que você optou por retratar relações entre mulheres no Tea For Two?
Tea for Two era um outro filme, uma comédia romântica sobre uma mulher e um homem cis. Eu fiquei muito maravilhada com o trabalho do ator que escolhi para fazer o personagem principal [a princípio], mas tivemos problemas durante o processo e não pude contar com ele no curta. A produtora me ofereceu uma lista de atores disponíveis e me deu dois dias pra escolher, mas não queria nenhum porque era aquele, não o trocaria por nenhum outro. Eu decidi, então, transformar a protagonista numa mulher. Pra mim, o filme cresceu muito nesse processo. Por várias questões, mas a principal pra mim foi descobrir esse amor entre mulheres e estar mais conectada com isso. Como uma mulher trans hétero, eu nunca tinha chegado tão próximo disso. Quando eu assisto o filme hoje, vejo que essa transformação foi uma conspiração universal para que fosse um curta sobre mulheres porque nesse momento, com Bolsonaro, isso é bem mais impactante e importante. Temos poucas protagonistas mulheres lésbicas no cinema. Tenho muitas amigas trans lésbicas que adoraram o filme e acharam o máximo porque se viram ali.

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Foto: Larissa Zaidan/VICE

No Tea for Two sua personagem é ficcional, mas você se coloca um pouco nela. Em Corvos sua personagem é você, mas também tem um tom ficcional. Qual a relação entre as duas?
Acho que não há muita diferença entre elas. São fabulações de quem eu sou. Me vejo muito na Isabela, e a Júlia do Corvos também sou eu, mas um pouco fabulada. Foram duas experiências distintas, mas em que pude exercitar esse lado atriz. O Corvos foi para o Festival Mar Del Plata, no ano passado, e uma senhora veio me falar que se emocionou muito com um momento do filme em que eu literalmente atuo, conto uma história não-real. Ela ficou muito penalizada por mim, e era um momento em que eu tinha sido completamente atriz. Mas o filme também tem muito de mim, acho que me espalhei nesses personagens todos. Tive uma depressão muito grande logo depois que voltei do Japão, que é esse momento da Silvia de isolamento, de estar sozinha com seus discos e livros.

Como foi ver seu filme exibido nesses festivais e receber o prêmio na Mostra de Cinema de Tiradentes?
Foi incrível. O Corvos era o primeiro longa do Gustavo e tínhamos muito medo de que não fosse bem absorvido. Mas o filme ganhou 8 prêmios no total, e eu fico super feliz. Mas fico mais feliz ainda por ele estar estreando num momento importante, que é um momento da gente marcar posição. [Estrear o Corvos] é um movimento de resistência, de dizer que estamos aqui e não vamos arredar o pé.

Você acha que isso abre caminho para pessoas trans?
É o que eu pretendo. Na Semana do Cinema [anteriormente Semana dos Realizadores] no ano passado, aconteceu uma coisa muito linda no dia que passamos o Corvos. Foi um dia complicado, estava chovendo e tinha pouca gente na sala. A sessão correu e, logo antes do debate começar, uma mulher trans veio na minha direção, a única da plateia. Ela estava chorando e me disse que estava em casa, super mal, quando um amigo a chamou pra dar uma volta e os dois acabaram entrando pra ver o filme sem saber do que se tratava. Ela disse que tinha mudado o dia dela e a feito muito feliz. A gente ficou se abraçando, chorou juntas. Passou um mês e ela me mandou uma mensagem dizendo que está escrevendo um roteiro porque ficou muito impactada por, mesmo podendo tudo dar errado, eu ter conseguido fazer o filme. Pra mim, é isso: só de ela ter se inspirado a transformar a vida dela e correr atrás de um sonho, já vai fazer muita diferença.

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