Sonia Braga as Domingas _ Victor Jucá Bacurau
Foto: Divulgação.
Entretenimento

Ninguém precisa de Tarantino quando se tem 'Bacurau'

O western carne de sol de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles mostrou que é possível fazer cinema referencial de gênero sem ser óbvio e maçante.

N.Ed.: Este texto não contém revelações sobre o enredo.

Nessa altura do campeonato, não é mais preciso escrever uma sinopse de Bacurau, dirigido por Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho e lançado semana passada nos cinemas brasileiros. O filme já foi visto por mais de 86 mil pessoas desde sua estreia e, antes, por mais de 20 mil espectadores nas pré-estreias disputadas quase aos tapas nas salas de cinema. Por enquanto, é um dos trabalhos artísticos mais emblemáticos do Brasil bolsonarista.

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Uma das preciosidades do filme são as referências de gêneros cinematográficos e acontecimentos históricos do Brasil inseridas de forma inteligente e sem presumir que o espectador é limitado demais para entendê-las. Cito isso pensando no último de Tarantino, Era Uma Vez Em Hollywood, onde cada mínima metalinguagem ou referência sobre o cinema ou televisão dos EUA aparecem como se fossem indicadas por placas de neon para que seus espectadores entendam e se sintam inteligentes. Bacurau não emburrece o espectador, pelo contrário, ele traz mais repertório, o que foi surpreendente para mim.

Nos últimos filmes de Mendonça, O Som ao Redor (2012) e Aquarius (2016), o medo do diretor de deixar ambiguidades na narrativa e, consequentemente, ser mal entendido, era tão grande que deixou os filmes literais e cansativos. Em alguns momentos de O Som ao Redor os diálogos me pareceram memes. Em Bacurau há uma confiança muito clara e aposta na sagacidade do espectador, sem precisar explicar tudo e deixando pontas soltas na narrativa.

No caldeirão de gêneros trazidos para a história de Bacurau e já mencionados por críticos de cinema, estão desde a construção narrativa típica de filmes do John Carpenter, takes e transições de cena do gênero western spaghetti e homenagens ao Cinema Marginal e o Cinema Novo, especialmente nas obras de Glauber Rocha, onde o sertão um personagem tão importante quanto os atores — ele permanece lindo e quente, enquanto tudo explode em torno dele.

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Evidente que a pequena cidade de Bacurau também nos lembra uma Canudos distópica, isolada na seca, sem acesso à água em um Brasil separado em dois (possivelmente entre o Sul e o Norte). No entanto, ao contrário de Canudos, não há uma figura mística única que dita as vontades e o destino dos habitantes de Bacurau. Não existe nenhuma necessidade de cultivar deuses ou mestres em uma comunidade onde todos estão no mesmo pé de igualdade — da médica às prostitutas e os cangaceiros cyberpunk.

Embora o filme pareça uma cutucada no atual cenário geopolítico brasileiro no mundo, ele não foi feito com esse propósito. O longa começou a ser idealizado entre Mendonça e Dornelles (que trabalhou como diretor de arte nos filmes anteriores de Kleber) em 2009 e terminou de ser filmado no final do ano passado. Não há referências diretas sobre figuras políticas que aparecem no noticiário político ou acontecimentos recentes, há apenas a imaginação de futuros possíveis para o Brasil — um país onde é quase impossível prever o estado das coisas para os próximos cinco anos.

A narrativa ambientada em futuros próximos apareceu também em outro filme nacional em 2019. Divino Amor do cineasta Gabriel Mascaro também se passa em um Brasil futurista, consolidado na estética neopentecostal e da burocracia nacional. Porém, Mascaro foca numa protagonista que acredita e quer radicalizar ainda mais o sistema em que vive. Já Bacurau mostra que é possível o levante feito por quem está fora do sistema. Seja lá como ele for.

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