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A história de JT Leroy, o escritor mundialmente famoso que nunca existiu

Falamos com Jeff Feuerzeig, diretor do documentário sobre um dos maiores embustes da literatura.
JT Leroy (esquerda) e Asia Argento em 2005 (foto via Yui Mok/PA Archive/Pressa Association Images).

Esta matéria foi originalmente publicada na VICE UK.

Quando a notícia saiu em outubro de 2005, o caso foi descrito como o maior embuste literário da história recente. O que começou com chamadas telefônicas do moleque de 16 anos ruim da cabeça chamado “Terminator” para seu terapeuta, se transformou num estranho fenômeno literário que envolveu gente como Gus Van Sant, Tom Waits, Courtney Love, Winona Ryder, Mary Karr, Asia Argento e mais. Esse é o caso bizarro do escritor JT Leroy, o tema do documentário Author: The JT LeRoy Story, de Jeff Feuerzeig.

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Crescendo numa parada de caminhão de West Virginia, Jeremiah “Terminator” Leroy teve uma infância abusiva, vendo a mãe se prostituir para alimentar seu vício em drogas. Quando ele tinha sete anos, ela começou a vesti-lo de menina, o usando como isca para os clientes locais. Logo ele também estava se prostituindo em paradas de caminhão do Sul dos EUA, viciado em heroína e HIV positivo.

Nos anos 90, “Terminator” estava em São Francisco. Um telefonema fatídico para uma linha de proteção à criança o apresentou a um psicólogo, o Dr. Richard Owens, que o aconselhou a escrever seus pensamentos entre as sessões pelo telefone (eles nunca se encontraram pessoalmente) como forma de terapia. Enquanto isso, entre 1994 e 1995, os escritores Bruce Benderson e Dennis Cooper começaram a receber chamadas de um garoto problemático com uma “voz feminina muito suave”. Agora morando com uma britânica chamada “Speedie” e um namorado, “Astor”, “Terminator” começou a enviar aos escritores o que tinha escrito por fax. Benderson e Cooper ficaram chocados. Como um garoto de 14 anos que fazia michê poderia escrever aquilo?

Seu primeiro romance, Sarah, foi publicado em 2000, quando JT tinha 17 anos. O texto foi apelidado de ficção autobiográfica, e tirava boa parte dos detalhes góticos de sua criação, costurando tudo com um estilo elevado que tornou o livro um clássico instantâneo da ficção transgressora, acumulando infinitas críticas positivas. Ainda assim, ninguém tinha encontrado JT pessoalmente.

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No auge do sucesso de Sarah, em 2001, um jovem tímido de rosto redondo, peruca loira e óculos escuros fez sua estreia diante do mundo como o escritor Jeremiah “Terminator” Leroy. Finalmente emergindo da obscuridade, agora ele estava em todos os lugares, cercado por uma tribo crescente de amigos e confidentes celebridades.

Mas em outubro de 2005, uma matéria intitulada “Quem é o verdadeiro JT Leroy?”, escrita por Stephen Beachy para a New York Magazine, questionava se o escritor realmente existia e sugeria que o “homem atrás da cortina” na verdade não era um homem, mas uma mulher de 40 anos do Brooklyn chamada Laura Albert, também conhecida como a assistente britânica de JT, “Speedie”. Outro artigo no New York Times de fevereiro de 2006 provou que JT Leroy – ou “Perucas e Óculos”, como Beachy o chamava – na verdade era interpretado em público por uma mulher chamada Savannah Koop, irmã do marido de Laura Albert, Geoff Knoop, o “Astor”. Em vez de JT Leroy, o que havia era um elenco de personagens com motivos obscuros. Seus livros não eram o produto autobiográfico de uma criança prodígio viciada em drogas de West Virginia, mas a ficção de uma mãe de quase quarenta anos que escrevia a série de TV Deadwood com o nome de Emily Frasier, ou “Speedie”.

O documentário de Jeff Feuerzeig mostra o que ele chama de “a história mais louca sobre uma 'história'”, através da experiência de Laura Albert. “O que acabei descobrindo nessa jornada do filme foi que havia uma grande mentira nessa história, o que Laura compartilha muito sinceramente, sem dúvida”, diz Feuerzeig pelo telefone. “Mas foi uma jornada muito mais orgânica do que eu poderia premeditar.”

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Albert é imprevisível e fascinante de assistir em seus depoimentos para a câmera. A menos confiável das narradoras menos confiáveis, ela conta tudo sem remorso, com os olhos arregalados, como se ela mesmo não acreditasse na loucura que acabou desencadeando. “É uma surpresa que Laura Albert tenha se mostrado uma boa narradora?”, pergunta Feuerzeig. “Ela claramente sempre foi uma narradora incrível. Quando chegou a hora de contar sua história, ela não deixou nada para trás.”

Feuerzeig nunca tinha ouvido falar em JT Leroy, mas quando leu sobre o caso pela primeira vez anos atrás, ele ficou pasmo. Ele entrou em contato com Albert e enviou seu aclamado The Devil and Daniel Johnston, um documentário que observava a relação entre doença mental e arte no caso do músico Daniel Johnston. Albert gostou do filme e concordou em fazer o documentário, apesar de ter recusado vários outros diretores. “Essa era a chance dela de finalmente contar tudo”, diz Feuerzeig.

Através de entrevistas e um impressionante arquivo pessoal, temos a imagem de uma mulher profundamente perturbada. Cadernos antigos, filmagens em super 8, fotos, desenhos (que Feuerzeig animou em Author) e gravações de áudio podem ser “a maior coleção conhecida de autodocumentação, se é que alguém está contando isso, num documentário”, na opinião de Feuerzeig.

Abusada física e sexualmente quando era menina, Albert mais tarde desenvolveu um vício em comida e em linhas de ajuda psicológica, o que se transformou em horas ligando para números de auxílio à criança e adolescente, se passando por diferentes garotos. Ela usava os avatares para explorar o mundo exterior, muitas vezes empregando a irmã enquanto ela continuava em casa, com vergonha de seu “tamanho”. Ela gostava da cultura punk. Descobrimos que ela foi internada numa ala psiquiátrica.

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Laura Albert em 2007 (foto por Kelly Lee Barrett via ).

Se escondendo atrás da persona de um adolescente abusado, longe de sua própria doença mental, sua história de abuso, seu peso e sua suposta incapacidade de ser uma artista de verdade, o arco de Albert lembra um conto mítico de expressão feminina torturada. Feuerzeig me conta que hoje ela usa um pingente de máquina de escrever escrito “Write hard, die free”.

Há um prazer especial nos detalhes em forma de tecnologias obsoletas dos anos 90 e começo dos 2000. Assistimos as fitas cassetes rodando com as gravações de Tom Waits ligando para JT para dizer que a prosa dele era “tão úmida, está viva”. Ouvimos as ligações entre Courtney Love e Laura Albert depois da grande “revelação” (Estou com uma carreira pequena aqui, não quero te colocar na espera, você se importa se eu cheirar?”) e ouvimos JT Leroy (Albert) dizer a Asia Argento que a ama pelo telefone. Cada trecho oferece uma explicação para a traição sentida por muitos amigos de JT e a amarga repercussão, o “momento Carrie”, como diz Albert. “Vou ficar em pé aqui coberta de sangue de porco.”

“Uma metáfora é diferente de uma farsa”, JT Leroy pronuncia lentamente para o Dr. Owens no final. Na época da “revelação”, a escritora Mary Gaitskill, uma das primeiras pessoas a apoiar JT, comentou que a história de JT Leroy representava “a confusão entre amor, arte e publicidade”, uma confusão que parece fazer mais sentido em 2016 do que em 2005, quando a dualidade entre identidade e obra nunca pareceu mais premonitória. Com a arte se tornando cada vez mais definida por concursos de popularidade disputados nas redes sociais, e com a curadoria de avatares e personas se tornando padrão numa cultura obcecada por celebridades, a questão central de Author é: a obra se sustenta sozinha?

O trabalho de Albert vai se sustentar sem o garoto viciado de West Virginia? Feuerzeig acredita que sim. Ele começa Author com uma citação de Felini. “Uma coisa criada nunca é inventada e nunca é verdade: ela é sempre ela mesma”. Quanto da nossa ideia de “quem” escreveu “o quê” influencia nossa apreciação de uma obra? Os livros de JT LeRoy foram relançados com a estreia de Author.

@Roisin_Agnew

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