A reforma trabalhista representa o fim da CLT?

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A reforma trabalhista representa o fim da CLT?

O que muda na vida do trabalhador caso seja aprovado o projeto de lei que prevê mudanças na Consolidação das Leis do Trabalho no Brasil.

Foto no topo via Flickr/Agência Senado

Foi um rio que passou por cima dos direitos do trabalhador. Quase sem aviso, o governo aprovou na Câmara dos Deputados a maior reforma já empreendida na CLT. Dois dias antes da Greve Geral convocada para esta sexta-feira (28), o PL 6787/16 foi aprovado na Câmara com 296 votos a favor e 177 contra. Agora a reforma segue para o Senado, onde conta com a promessa de ser combatida por ninguém menos que Renan Calheiros (PMDB-AL), líder do PMDB na Casa.

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O texto aprovado, de autoria do Executivo e relatoria do deputado federal Roberto Marinho (PSDB-RN), correu em caráter de urgência graças às manobras realizadas pelo presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), batizadas pela oposição de "método Cunha"– aquele lance de votar repetidamente as matérias até que, de alguma forma, elas passem. A primeira tentativa foi derrotada no dia 18 de abril e, após muito trabalho de bastidores, o Planalto mudou o placar de 230 a favor e 163 contra, para 287 e 144, já no dia seguinte. A aprovação da reforma trabalhista surge como uma questão de sobrevivência para Temer, que encontra um desafio maior pela frente com a reforma da Previdência, que precisa de 308 votos para passar na Câmara.

Dá pra ver como cada deputado votou aqui.

Os defensores da reforma trabalhista alegam que não haverá redução de direitos, que as mudanças propostas modernizam leis obsoletas, e que irão permitir os empresários voltarem a contratar; os que são contra enxergam a reforma trabalhista, junto com a reforma da Previdência e a PEC dos gastos, uma medida que expõe a lógica do governo Temer e os reais beneficiados, que enfraquece os sindicatos, precariza as relações de trabalho e abrirá espaço para o achatamento do salário mínimo.

Essa foi a maior mudança da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) desde que foi criada em 1º de maio de 1943. Ainda assim, o argumento de que essas leis sejam ultrapassadas não corresponde ao que o procurador-geral do Trabalho, Ronaldo Fleury, afirmou em audiência na Comissão Especial, formada em fevereiro deste ano, de que, ao longo destes quase 47 anos, a legislação já foi modificada em 85%. Segundo ele, países com recentes mudanças na legislação trabalhista como México e Espanha não obtiveram redução do desemprego.

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A coluna vertebral do projeto, segundo Marcos Verlaine, jornalista e analista do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), é a prevalência do negociado sobre o legislado. "O que for acordado entre patrões e trabalhadores é o que vai prevalecer e isso irá acabar com a legislação trabalhista, que é a mediação do Estado que reconhece o trabalhador como a figura hipossuficiente, ou seja, a figura mais fraca econômica, social e politicamente na relação entre capital e trabalho. Sem a legislação este desequilíbrio fica ainda maior", lamenta.

Os acordos prevalecerão sobre a legislação com relação à jornada de trabalho, regime de sobreaviso, parcelamento das férias, intervalo de alimentação de no mínimo meia hora, grau de insalubridade, inclusive no caso de gestantes. Caso a mãe tenha um laudo médico considerando as condições de trabalho adequadas, ela permanece exercendo as atividades. Do contrário, a gravidez passa a ser considerada de risco e ela é afastada pelo INSS. Alguns pontos continuam garantidos como a licença maternidade e paternidade, o recebimento do 13º, FGTS e seguro-desemprego – para quem continuar trabalhando sobre o regime CLT, claro.

No caso da jornada de trabalho, com a CLT, são permitidas 44 horas semanais, com no máximo 8 de trabalho horas por dia. Com a reforma, a jornada diária pode chegar a 12 horas, com o limite de 48 horas semanais, com 36 ininterruptas de descanso – esse tipo de escala é geralmente aplicada em hospitais. A rescisão contratual também poderá ser feita em acordo individual, na presença de advogados.

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Outro ponto é com relação aos tipos de contratos que serão estabelecidos entre empregadores e empregados. O texto aprovou o trabalho intermitente, por jornada ou hora de serviço, e o teletrabalho ou home office. O primeiro caso, conhecido nos países do Reino Unido como "contratos zero" hora, não prevê quantidade mínima de horas a serem trabalhadas e, por consequente, uma remuneração mensal, sendo o trabalhador pago por hora trabalhada.

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Um estudo realizado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), divulgado em janeiro, apresenta uma série de Notas Técnicas, assinadas por 12 procuradores do trabalho, que aponta as inconstitucionalidades da reforma. A Nota Técnica nº 1, que versa sobre o contrato intermitente, pontua, detalhadamente, que, ao flexibilizar tempo e remuneração, dois dos principais termos contratuais na modalidade trabalho, se rompe com o princípio geral dos contratos, não acarreta na diminuição do desemprego e viola compromissos internacionais com a Organização Internacional do Trabalho (OIT).

"A Justiça do Trabalho vai virar um cartório para recepcionar os problemas da relação de trabalho, mas não vai poder fazer nada, pois aquilo que foi acordado está prevalecendo." - Marcos Verlaine

Verlaine se pergunta ainda quem irá fiscalizar estas novas relações de trabalho. "O Estado não está apetrechado, organizado, estruturado, para fiscalizar essa relação. É evidente que terá muita ilegalidade neste processo. O Estado parece que não está preocupado em contratar mais servidores, mais auditores do trabalho, mais auditores da Receita Federal para fiscalizar essas relações", ressalta. Além disso, acabando com a legislação trabalhista, a Justiça do Trabalho perde o objeto. "Vai virar um cartório para recepcionar os problemas da relação de trabalho, mas não vai poder fazer nada, pois aquilo que foi acordado está prevalecendo", afirma.

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Além dos novos contratos e da prevalência do acordo sobre a lei, outros pontos aprovados são considerados preocupantes para especialistas no tema. O deslocamento de casa ao local de trabalho, considerado como tempo disponível ao empregador, já não será mais computado como jornada de trabalho; no caso de demissão, o empregador pagará metade do aviso prévio e os trabalhadores poderão movimentar 80% do FGTS, reduzindo pela metade a multa anteriormente de 40% ao empregador, e abrindo mão do seguro-desemprego. Essa movimentação enfraquece os fundos.

Em um momento de crise, com o aumento do desemprego, que atingiu nível recorde desde 2005, atingindo cerca de 13 milhões de brasileiros, a flexibilização desta relação vem a calhar. Além de pender desproporcionalmente para o lado mais forte, a reforma trabalhista enfraquece os sindicatos ao acabar com a obrigatoriedade da contribuição sindical. "Quebram as pernas dos sindicatos e abrem um espaço para negociação. Que sindicato hoje tem condição de negociar sem este poder? Se enfraquece o poder sindical, enfraquece a justiça do trabalho, enfraquece a arrecadação das contribuições, como o FGTS, e dão espaço para a negociação em um contexto onde o trabalho está extremamente fragilizado", afirma o doutor em ciências sociais pela Unicamp Giovanni Alves.

Autor dos livros O novo (e precário) mundo do trabalho : reestruturação produtiva e crise do sindicalismo (Boitempo Editorial, 2000) e Trabalho e subjetividade : O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório (Boitempo Editorial, 2011), Giovanni afirma que não vê nenhuma outra vantagem na reforma trabalhista, "que não a de dar mais poder ao capital em detrimento do trabalho em uma situação de crise, que por si já fragiliza o trabalhador, e com essas medidas ele vai ficar muito mais vulnerável".

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Beneficiados

O texto substituto mexeu em 104 artigos da lei trabalhista, enquanto o texto original modificava sete. Levantamento feito pelo The Intercept analisou as 850 emendas apresentadas por 82 deputados, 52,4% delas incorporadas parcialmente ou não, pelo relator, ao longo dos debates da Comissão Especial. Segundo a reportagem, "292 (34,3%) foram integralmente redigidas em computadores de representantes da Confederação Nacional do Transporte (CNT), da Confederação Nacional das Instituições Financeiras (CNF), da Confederação Nacional da Indústria (CNI) e da Associação Nacional do Transporte de Cargas e Logística (NTC&Logística)". As emendas foram apresentadas por parlamentares da base governista (dos partidos PMDB, PSDB, PP, PTB, SD, PPS, PR e PSD) e metade deles sequer integrava a comissão.

Ironicamente, de acordo com reportagem da Repórter Brasil, o relator Rogério Marinho está sendo investigado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em inquérito sobre "seu envolvimento em uma empresa terceirizada que coagia funcionários demitidos a renunciar às verbas rescisórias e a devolver a multa do FGTS". De acordo com dados do Ministério Público do Trabalho, foram R$ 338 mil apropriados ilegalmente.

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Não é novidade nenhuma considerando-se o perfil deste Congresso, na opinião de Giovanni. "É uma crônica de uma morte anunciada. Não sei como a gente se espanta ainda. A questão é saber a quem eles estão servindo. Ao capital. Este Congresso representa os lobistas das associações patronais. Estas emendas foram escritas por lobistas. São doadores de campanha, estão simplesmente cobrando a fatura do financiamento do golpe", enfatiza.

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A relação entre a PEC 95/2016 que congela os gastos públicos em vinte anos, com as reformas da Previdência e trabalhista compõem uma lógica quase que simbiótica. "Desde a PEC dos gastos públicos, a lei da terceirização, a reforma trabalhista, a reforma da Previdência, o ponto em comum é de reduzir o custo da força de trabalho no Brasil, que propicia o aumento da lucratividade brasileira e a espoliação do fundo público", conclui o professor.

A fidelidade ao projeto neoliberal começou ainda nos tempos do "consenso de Washington". Desde os anos de 1990, com a posse do governo de Fernando Collor (1990-1992), o Brasil deu seu primeiro passo nessa direção, que seguiu sob o comando de Fernando Henrique Cardoso, entre 1995 e 2002. Com os governos de Lula e Dilma, a toada neoliberal foi amainada, mas não interrompida, segundo o professor. Para ele, esse desmonte é um processo longo e progressivo, mas que não enterra a CLT. "Desde 1990, o capitalismo brasileiro se entregou numa lógica do capitalismo neoliberal que vem de certo modo aprofundando a precarização do trabalho. Os governos de Lula e Dilma paralisaram de certa forma este processo, mas não aboliram esta dinâmica, até mesmo porque não poderiam. Com o golpe, com o governo Temer, assim como na barragem da Samarco, levou de roldão aquilo que estava represado, que era exatamente este processo de desmonte do trabalho no Brasil. Aprofundou, mas não enterrou. A saga continua", acredita.

Para Verlaine, o quadro é devastador. "Esse tsunami é uma demanda que vem sido acalentada, perseguida pelos empresários há tempos. Vem agora porque pegou a esquerda num momento de fraqueza política, de defensiva. Logicamente os sindicatos ficaram um período longo um pouco no banho-maria, tranquilos, com um governo com uma agenda convergente, e agora estão sendo atacados. Além de retirar direitos, essas propostas do governo, apoiadas, e cujo nascedouro são os empresários, tem o objetivo de fragilizar, a ponto de tornar irrelevante, o movimento sindical, que são as instituições que defendem o trabalhador nessa condição de empregado", afirma.

Na opinião de Giovanni, o fato de vivermos em um sistema capitalista, pode fazer com que estas medidas "contribuam com o investimento, com a lucratividade e que a economia possa até crescer, mas vai ser um crescimento sem inclusão social e que vai aprofundar a desigualdade social do Brasil e a concentração de renda", conclui.

Apesar do trâmite acelerado na Câmara, a reforma ainda vai enfrentar alguma resistência no Senado, a começar pelo próprio PMDB, na figura de Renan Calheiros. Enquanto os deputados ainda sabem que podem se esconder por trás do quociente eleitoral – porque a reforma política não passa a tempo – o Senado vai passar pela renovação de 2/3 das cadeiras em 2018, e ali a disputa é muito mais personalizada. Não é de bom tom ser apontado como "traidor da classe trabalhadora", especialmente diante do número de parlamentares investigados, agora formalmente, pela Lava Jato. Mesmo com o presidente do Senado Eunício Oliveira (PMDB-CE) na UTI, a briga deve ser relativamente arrastada – Cássio Cunha Lima (PSDB-PB), vice-presidente da Casa, já chiou contra a reforma da Previdência.

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