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Tecnologia

Os brasileiros que usam o Gab, a rede social da direita alternativa americana

Uma engajada comunidade brasileira encontrou o lugar perfeito para descarregar impropérios sem peso na consciência.

"O Congresso não deverá fazer qualquer lei restringindo a liberdade de expressão." Talvez você já tenha ouvido em algum filme este trecho da Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos, aquela que resguarda os direitos à livre manifestação. Ela também dá as caras no lugar mais nobre da página de entrada do Gab, uma rede social que mistura características do Twitter com Reddit e que, com o slogan de "liberdade de expressão para todos", se tornou nos últimos meses um canal de disseminação para os "alt-right", a direita-alternativa dos norte-americanos.

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A ideia por trás do Gab é simples: liberdade total e absoluta para se falar o que quiser. Embora a ideia seja ubíqua a qualquer movimento social de esquerda ou de direita, o Gab desde sua fundação atraiu "birthters" (aqueles que ainda acreditam que o ex-presidente dos Estados Unidos Barack Obama não nasceu na América), racistas, xenófobos e ultra-direitistas. É comum achar comentários como: "Foda-se os seus sentimentos, esse é nosso país, não o seu" ou "a América é uma nação livre e os americanos merecem formar uma comunidade livre do governo e dos judeus". Na internet isso é chamado de "chorume". O Gab, por extensão, é uma espécie de "agregador de chorume".

Criado em agosto passado em meio ao turbilhão da disputa eleitoral entre o republicano Donald Trump e a democrata Hillary Clinton, o Gab não esconde sua influência. No lugar de um pássaro azul, seu símbolo é o sapo verde, animal ícone da direita alternativa norte-americana; "gab", por sua vez, representa seu cachoar, assim como "tweet" é a onomatopeia inglesa para o piado de um pássaro. Há também um limite de caracteres (são 300) e "trending hashtags". Estes são invariavelmente relacionados à MAGA, "Make America Great Again", slogan de campanha do presidente eleito Donald Trump.

Mas, ao contrário do que muitos pensam, nem só de americanos vive o Gab. Há uma pequena e engajada comunidade de brasileiros no site, ainda que a plataforma não comente oficialmente sobre números. As reclamações patrícias são bastante parecidas com as dos americanos: a mídia tradicional e os sites "mainstream" como o Facebook e o Twitter censuram e boicotando o discurso livre. É o caso do catarinense Daniel Livaruk. "Entrei no Gab pela liberdade de expressão", explica. "Nunca cheguei a ser bloqueado em outras redes. Mas percebi que algumas opiniões de amigos eram muito criticadas. No Facebook, por exemplo, alguns foram bloqueados. Então decidi apoiar essa rede."

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"As pessoas aqui não são tão sensíveis"

O usuário @Chauke explica sua motivação nos mesmos moldes. "Quando eu soube que um diretor do Twitter ameaçava censurar Donald Trump, eu saí de lá, enojado e revoltado", diz. "No Gab me sinto livre, feliz e integrado."

Já o paulistano Daniel Araújo, que se diz anarquista, deixou totalmente as redes "mainstream" por considerar o Gab mais seguro. "As outras redes sociais têm questões sérias de segurança, que não parecem acontecer aqui", explica. "Além disso as pessoas não sabem lidar com a diferença. No fundo acabam todos dizendo a mesma coisa no Twitter ou Facebook. Aqui há diversidade."

Entre os assuntos mais comentados pelos brasileiros são as peripécias do deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) e piadinhas sobre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva que vão das inocentes ("Lula preso amanhã") às quase criminosas ("Lula imitou John Lennon ao dizer que era mais famoso que Jesus. Agora alguém para imitar o atirador"). Outro assunto muito discutido entre os brasileiros foi a notícia de que o site do jornal O Globo formaria um grupo para checar notícias. "A ideia é combater notícias falsas, mas não aquelas criadas por jornalistas. Ou seja continua a mesma bosta", gabou-se o usuário @Clandestino. "É tudo pela zoeira", resume o usuário Lucas, que pediu para não ter seu sobrenome ou arroba divulgados. "O Twitter é cheio de sjw [sigla em inglês para ´guerreiros da justiça social´]. As pessoas aqui não são tão sensíveis."

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Parte da adesão brasileira pode ser justificada pelo fato de não ser difícil entrar no Gab. O site afirma ser necessário um "convite", mas basta se inscrever para receber. Foi o meu caso. Ainda que tenham me colocado no número 477.833 de uma lista de espera, minutos depois recebi um e-mail com os dizeres: "Clique aqui para falar livremente."

Ser um canal que abomina problematizações em nome da liberdade pessoal parece ser o apelo do Gab. E não é algo acidental, uma transformação de conteúdo gerada pelo público. O site já nasceu assim, conforme explicou o criador do site Andrew Torba à época do lançamento. "A diferença é que nós acreditamos na livre expressão, na internet livre para todos", disse em entrevista para a rede britânica BBC. Torba, que se autoproclama um "cristão conservador", diz que a mídia tradicional vem "censurando as ideias conservadoras". A debandada que pretendia comandar do Twitter aconteceu depois da expulsão do jornalista Milo Yiannopolous da rede social.

Polêmico e histriônico, o britânico Yiannopolous é uma das vozes mais queridas pela direita-alternativa norte-americana, e sua expulsão do Twitter levou a críticas de que o site estaria censurando seus usuários. Na época, o ator norte-americano James Woods tuitou: "Já que o Twitter está agora no ramo da censura não usarei mais seus serviços para meu direito constitucional de liberdade de expressão. Tchau para todos." Woods fez uma conta no Gab, mas postou apenas duas vezes. Seis semanas depois ele estava de volta ao Twitter como @realJamesWoods.

Com 150 mil inscritos o Gab ainda é um empreendimento pequeno. O Twitter, em comparação, tem 319 milhões de usuário. Essa falta de braços é nítida. O tal "trending hashtag" raramente alcança mais de mil interações, e o perfil do Milo Yiannopolous, um dos mais populares, tem apenas 34 mil seguidores. "Por que vocês não interagem mais?" reclamam alguns usuários. O excesso de liberdade de expressão, pelo visto, intimida.

O Gab parece buscar de modo obsessivo sua razão de existir. Por todo o site há frases de autores consagrados fora de contexto. Uma das frases mais citadas é a do escritor britânico George Orwell: "Em tempos de inequidade falar a verdade é um ato revolucionário." Não deixa de ser uma ironia desastrada. Escrito em 1948, seu livro 1984 é um libelo sobre a importância da liberdade e da liberdade de expressão. Em dado momento da trama, Winston Smith, o personagem principal, escreve em seu diário: "A Liberdade é a liberdade de dizer que dois mais dois são quatro." Esta é uma verdade absoluta. Mas em 2017 às vezes parece que a liberdade é a liberdade de dizer que dois mais dois é igual a cinco. E é isso que os usuários do Gab, incluindo brasileiros, estão querendo provar.