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'Field Niggas' mostra a vida dos sem-teto drogados nas noites do Harlem

O impressionante filme de estreia de Khalik Allah é o resultado de anos de imersão na comunidade predominantemente negra e parda que povoam uma esquina conhecida da região onde estão muitos sem-teto, alcoólatras e viciados.

Em agosto de 2010, Khalik Allah, um nova-iorquino descendente de jamaicanos e iranianos, pediu uma câmera do pai emprestada para fazer algumas fotos de seu amigo GZA (ou Genius), do Wu-Tang Clan . Mas, quando ele ganhou uma câmera analógica totalmente manual, seu interesse em fotografia se metamorfoseou em paixão. Desde então, Allah, agora com 30 anos, já juntou um corpo de trabalho incrivelmente íntimo em fotos que ele conseguiu rondando as ruas de Nova York procurando rostos para capturar.

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O impressionante filme de estreia de Allah, Field Niggas, é o resultado de anos de imersão na comunidade que povoa a esquina da 125th Street com a Lexington Avenue, no Harlem. Entre essa demografia predominantemente negra e parda, estão muitos sem-teto, alcoólatras e viciados com os sistemas dilacerados pela poderosa erva sintética K2.


Assista a um trecho exclusivo de Field Niggas:


O filme se desdobra em câmera lenta, com som e imagem deliberadamente fora de sintonia, o que dá uma qualidade quase alucinógena à narrativa. É uma colagem confrontadora e hipnótica de vozes devastadas, rostos cheios de cicatrizes e olhos turvos, ocasionalmente pontuada pela presença mais esperançosa de crianças pequenas. O próprio Allah aparece no filme para persuadir e dar apoio a seus temas. Fazendo isso, ele dá uma plataforma vital para aqueles considerados a escória da sociedade, as pessoas cujas vozes nunca são ouvidas.

Field Niggas é um filme humano e cheio de compaixão, embora ele tenha suas faíscas de humor negro. Nisso, o filme lembra Dark Days, documentário clássico de Marc Singer sobre a comunidade que vivia no sistema do metrô de Nova York. Só que isso também é intenso e angustiante, evocando a ideia de que esse bolsão urbano é uma prisão infernal. O título – uma referência ao discurso Mensagem a Grass Root, de Malcolm X – sugere escravidão moderna. Essa conexão com cativeiro humano se intensifica pela música de prisioneiros que surge na trilha sonora.

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Falei com Khalik Allah recentemente para discutir desde o título controverso do filme até o sistema prisional industrial dos EUA e suas drogas preferidas.

VICE: Vamos começar com o título: ele é bem agressivo, assim como o próprio filme. Qual foi sua ideia por trás disso?
Khalik Allah: Eu tinha o filme pronto antes de pensar num título, mas escolhi esse porque representa a mentalidade insurgente que eu tinha enquanto gravava. Era um título muito rebelde no contexto de toda a indústria, em que as pessoas fazem tanta coisa para serem respeitadas, como mudar o título de um filme para conseguir distribuição. Eu queria chegar à indústria e ser colocado na lista negra logo de cara, e o título Field Niggas seria um atalho para isso. No entanto, aconteceu o contrário: eu fui aceito, e eles adoraram!

Esse título também é uma ode aos meus super-heróis Nat Turner e Toussaint Louverture, além de vários outros escravos que fugiram. Essas sempre foram as pessoas que admirei quando garoto. Acho que foi Malcolm X a primeira pessoa a trazer a ideia de negro da casa e negro do campo para mim. As pessoas que estou documentando não são representadas, elas são os escravos do campo [field niggas] de hoje, e muitos não percebem a posição em que estão nesse jogo de xadrez. As pessoas não entendem quanto dinheiro o complexo prisional está tirando do governo. Essas pessoas estão sempre indo para trás das grades.

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"Os policiais podiam estar conversando e contando piadas com meus amigos – as pessoas do filme –, e, algumas horas depois, um negro era levado do lugar por cinco ou seis policiais." – Khalik Allah

Diferentemente de muitos documentários, seu filme não tem uma política prescritiva do tipo "Vamos explicar e resolver todos esses problemas". Entretanto, os personagens falam sobre suas experiências com drogas, prisão e, especialmente, brutalidade policial. Você até colocou o assassinato de Eric Garner quase no final, o que já é chocante em si, ainda mais porque quebra as regras estéticas que você criou para si mesmo.
Queria que esse fosse um documentário sincero e espiritual, não político. E, sim, a polícia está por toda parte no filme. Não ficávamos mais que 30, 40 segundos sem ver um policial. A presença deles representa meu conceito original de Field Niggas, que iguala a condição dos personagens à escravidão: aqui, a polícia representa os capatazes, não os senhores. Eles apenas fazem o que os senhores mandam. Muitos deles não são de áreas como o Harlem ou dos lugares que policiam; então, para compensar seu medo, há muita agressão e intimidação contra os locais.

Eu estava tentando respeitar a polícia, pois é aqui onde me encontro espiritualmente: independentemente de como as pessoas parecem ou o que fazem, você as trata como seus irmãos no mundo. Sei que minha perspectiva não é compartilhada por todo mundo. Os policiais podiam estar conversando e contando piadas com meus amigos – as pessoas do filme –, e, algumas horas depois, um negro era levado do lugar por cinco ou seis policiais. Você não sabe o que pensar e não sabe como essa relação realmente é. Mas tentei retratá-los com respeito e honestidade. Eles permitiram que eu os filmasse, porém não me deram nenhum áudio: isso, de certa maneira, é uma declaração.

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Você vê seu filme como um ato de rebelião?
Para mim, como artista, rebelião é fazer o que é genuíno para você, as pessoas percebendo isso ou não. Tudo deu certo com o filme, mas as coisas poderiam ter desandado. Podiam dizer que o filme era exageradamente estilizado ou que eu aparecia demais. Agora, sinto que estou sendo pendurado pelo meu estilo fotográfico rebelde. Não pendurado de uma árvore pelo pescoço – minha arte está sendo pendurada em galerias. Isso reflete uma ressurreição em vez de crucificação. Em vez de ser crucificado pelo meu estilo fotográfico rebelde, estou sendo ressuscitado ou ganhando mais vida.

Como sua filosofia e sua origem religiosa influenciam seu trabalho?
Cresci entre os Five-Percents, que praticam o Islã como modo de vida. Quebramos isso numa sigla: "Eu Estimulo Vida e Matéria" e também "Eu Ilumino Tudo ao Redor". A ideia de estimular luz e matéria estava na minha mente enquanto eu fazia o filme. Eu estava estimulando vidas que importavam, e é isso que um diretor tem de fazer. Isso era o que um dos meus diretores favoritos, Werner Herzog, fazia – Field Niggas é inspirado nos documentários dele. Sempre aprendo mais com um diretor que está presente no filme. Ele nem sempre precisa estar falando. Mesmo quando Spike Lee não estava atuando em seus filmes nos anos 80 e 90, ele estava presente através de seu estilo.

"Para ganhar acesso às vidas das pessoas, e para ganhar permissão de fotografar esses caras, tive de conversar muito com eles. Às vezes, eu era como um psicólogo – uma caixa acústica onde as pessoas podiam se expressar sem serem julgadas." – Khalik Allah

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Você é ouvido muitas vezes na trilha sonora e até se filma num espelho. Fale um pouco mais sobre como é se colocar no filme.
Me colocar no filme foi uma extensão natural do que faço na minha fotografia. Eu já fotografava aquele bairro três anos antes do filme. Para ganhar acesso às vidas das pessoas, e para ganhar permissão de fotografar esses caras, tive de conversar muito com eles. Às vezes, eu era como um psicólogo – uma caixa acústica onde as pessoas podiam se expressar sem serem julgadas. Isso me permitiu entrar muito mais fundo nas vidas delas.

A não sincronia entre o som e as imagens é algo muito poderoso. Isso dá uma qualidade à obra como a de sonho…
A decisão foi técnica e estética. Senti que o microfone da câmera não ia conseguir captar os sons sutis da rua; portanto, levei um componente de áudio separado para isso. Além disso, eu gostava mais do efeito em câmera lenta, e usar isso significava que eu não poderia usar o áudio gravado de qualquer maneira. Aí pensei: "Cara, esse é o casamento perfeito!". Isso faria os espectadores pensarem e daria a eles tempo para participar ativamente do filme. Criando essa pausa estilística, isso se torna como um romance, e você pode fazer suas próprias ligações. Quero respeitar a inteligência do público.

"Eu queria chegar à indústria e já entrar para a lista negra logo de cara, e o título Field Niggas seria um atalho para isso." – Khalik Allah

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O filme se concentra numa porção da sociedade com muitos problemas, embora ele tenha um visual muito bonito…
A esquina da 125th com a Lexington não é como Manhattan; logo, eu sabia que fazer o filme lá constituiria uma rebelião contra o que muita gente está fazendo em termos de fotografia, como fotografar mulheres bonitas e paisagens. Eu queria fazer de tudo para que isso fosse um antônimo de beleza, apesar de a beleza estar nos olhos de quem vê. O fotógrafo padrão, que fotografa belas mulheres… bom, às vezes você não consegue diferenciar se ele é um bom fotógrafo ou se o tema é que é bonito, sabe?

Tudo se passa à noite e, principalmente, a céu aberto – fora uma sequência no metrô, o que me fez pensar no fotógrafo Bruce Davidson e em sua série Subway. Ele foi uma influência?
Sim, ele é uma grande inspiração. Adoro o trabalho dele porque ele foi contra a maré quando começou a fotografar em cores, quando não era popular fotografar assim. Eu não queria usar nenhuma luz sintética ou incandescente, porque foi isso que ele usou em Subway para compensar a falta de flash. Para compensar, usei lentes com uma grande abertura; então, isso era mais rápido e deixava entrar muita luz dos postes e dos bares.

Numa parte do filme, você diz que fumou muita maconha durante o processo de edição. Isso te ajuda a ser mais criativo?
Sim, isso me ajuda a não levar as coisas tão a sério. Eu estava trabalhando na Jamaica num novo material recentemente. Nos primeiros dias, fiquei sob muita pressão. Eu estava trabalhando com uma agência pela primeira vez – sempre trabalhei sozinho. Eu estava fumando muita maconha e haxixe, e lá é muito ensolarado; assim, o que eu estava fotografando ficou superexposto. Eu nem calibrei o medidor. Fotografei tudo estourado. O novo filme é sobre espiritualidade, e um homem fez uma prece para mim. Foi aí que mudei mentalmente, fiquei mais confortável e disse "Este sou eu. Estou desobedecendo as regras agora. Estou na minha área e posso continuar filmando no meu próprio estilo". Maconha definitivamente me ajuda com isso. Além de outras drogas psicodélicas: LSD, DMT, ayahuasca. Essas coisas, eu recomendo para toda a humanidade.

Mesmo com o filme sendo focado nos rostos, você tem uma sensação forte de lugar. Seu objetivo era fazer um documento duradouro sobre a área?
Antes de levar o filme para festivais, isso ficou disponível por um tempo de graça no YouTube. Alguém deixou um comentário no vídeo chamando isso de "um futuro artefato". Comecei a pensar em como todas as pessoas – todas essas vítimas das drogas – no bairro vão ser eclipsadas pela grande onda de gentrificação que está se aproximando. Você pode ver os planos, especialmente para a Lenox Avenue. Eles já estão derrubando pequenos prédios, e toda essa área vai se tornar mais "segura". Então, sim, isso é um futuro artefato.

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Tradução: Marina Schnoor.