FYI.

This story is over 5 years old.

series

Como "Friends" criou uma geração de idiotas neuróticos e egoístas

Elencamos alguns motivos que comprovam o fato de "Friends" ter sido a primeira sitcom coxinha.
ST
ilustração por Sam Taylor
MS
Traduzido por Marina Schnoor
Ilustração: Sam Taylor

Vinte anos atrás, no mês passado, uma nova série estreava. Originalmente intitulado Insomnia Cafe, o programa devia aproveitar o vácuo que Seinfeld tinha gerado, usando o humor neurótico da Nova York pós-Woody Allen para tratar de relacionamento e vida cotidiana. Mas o tom da resenha enviada a NBC revelou que esse seria um show diferente:

"A série é sobre seis pessoas de vinte e poucos anos que frequentam um café. Um café que funciona 24 horas. Ela é sobre sexo, amor, relacionamento, carreiras… Sobre uma época na vida em que tudo é possível, o que é muito emocionante e assustador. É sobre a busca por amor, compromisso e segurança… E o medo do amor, do compromisso e da segurança. E também é sobre amizade, porque quando você é jovem e solteiro na cidade grande, seus amigos são sua família."

Publicidade

Diferente de Seinfeld e de todas as outras sitcoms anteriores; com seus conjuntos típicos de pais desajustados, mães irritantes, filhos chapados e vizinhos pervertidos; Friends seria a primeira sitcom coxinha. Uma comédia na qual o elenco principal era formado por jovens metropolitanos bonitos, que não tinham problemas com álcool ou doenças sexualmente transmissíveis.

Jogando com nosso desejo de ser exatamente esse tipo de pessoa, a série foi um sucesso retumbante. Nos anos que se seguiram, Friends se tornou um fenômeno internacional. A linguagem do namoro dos personagens, típica de Nova York, entrou para o léxico pop dos anos 1990 de um jeito que o "eat my shorts" do Bart Simpson nunca conseguiu. Na verdade, poderia a estranha sintaxe das piadas do Chandler estar mais sutilmente misturada aos padrões de fala de quase todo ocidental de 20 a 40 anos? Todo mundo conhecia o corte de cabelo "The Rachel" e o Matt LeBlanc fez um filme muito incrível sobre um macaco que jogava basebol. É ridículo ver o quão influente se tornou essa comédia romântica que durou dez anos.

Mas não se engane; Friends é um programa bem razoável. É envolvente, reconfortante e totalmente assistível. Parece inacreditável que o episódio final foi transmitido uma década atrás. Mas, em sua segunda vida aparentemente inescapável de reprises, Friends também teve um impacto negativo em nossa geração. Basicamente, o programa nos transformou em babacas. Eis o porquê:

Publicidade

Personagens de meia-idade

Sim, sitcoms nunca foram sobre pessoas "legais". Claro, as roupas do George Costanza podem ter inadvertidamente aberto caminho para a geração Wavey Garms, mas Seinfeld era sobre a vida do Larry David, e o Larry David nunca foi um Iggy Pop. Os personagens de Seinfeld eram praticamente os mesmos de qualquer outra série norte-americana — gente que se preocupa demais e que não vê um bom motivo para ficar na balada até tarde.

A diferença aqui é que os personagens do Seinfeld deviam mesmo ser disfuncionais e estranhos, mas no Friends eles deviam ser jovens urbanos e sexies. E, ainda assim, tem um episódio em que todos eles piram por causa de um show do Hootie & the Blowfish. Isso é um indicativo de que os roteiristas de Friends não estavam interessados em refletir seu tempo. Em vez disso, eles deram aos personagens uma abordagem confortável e de meia-idade da cultura moderna, o que não dá para engolir. Os personagens vivem na Nova York do meio dos anos 1990, a época do The Tunnel, dos Club Kids e do Wu-Tang Clan. Ainda assim, esses jovens que trabalham em moda, TV e restaurantes famosos estão confinados ao rock de rádio, Duro de Matar e algumas piadas sobre o Chandler gostar de musicais. Nunca encontrei uma pessoa da minha idade com tão pouco envolvimento com o mundo a seu redor.

Eles quase nunca iam a baladas, eles nunca falaram sobre os filmes do Tarantino, sobre rap ou sobre a Björk. Até nossos pais faziam isso. Em vez disso, a Phoebe fica empolgada para conhecer o Sting. Por quê? É difícil saber se o programa foi simplesmente mal escrito ou se isso foi um esforço consciente para fazer os personagens o mais em cima do muro possível.

Publicidade

Com tudo isso em mente, você ainda diria que foi a morte de Kurt Cobain, a era Thatcher e/ou a internet que mataram a cultura alternativa jovem de massa nos anos 1990? Ou foi o Friends?

As situações ridículas de moradia

Fora o Chandler e o Ross, os outros amigos não deviam ganhar mais de US$15 mil por ano juntos. O Joey era um ator desempregado, a Monica era uma chef de meio expediente, a Rachel era barista e aspirante a fashionista e a Phoebe trabalhava como massagista meio período, as carreiras menos rentáveis que é possível imaginar. A possibilidade de qualquer um deles ter vista panorâmica para Manhattan, móveis shabby chic e sofás La-Z-Boy é totalmente ridícula.

A história era que a Monica tinha herdado o apartamento, o que não explica por que ela não repartiu o dinheiro com o Ross. Se fosse para explicar realmente a história, o Joey podia estar vivendo de benefícios sociais. E mesmo assim, como eles bancavam essa vida? Não bancavam, isso é só um monte de besteira aspiracional sem base na vida real.

Esse estilo de vida despreocupado de quem mora no 15º andar, que definiu as aspirações de tanta gente no final dos anos 1990 e começo dos 2000, nunca se tornou realidade para nenhum de nós. Como poderia? A coisa toda foi concebida e executada a 45 mil quilômetros de Manhattan, nos estúdios da Warner Bros na Califórnia, onde um estilo de vida era uma coisa que os assistentes de palco podiam empurrar de um lado para o outro.

Publicidade

Homens patéticos, mulheres vadias

Friends não mostrava a vida sexual dos personagens sob um ponto de vista muito atraente. O Ross e o Chandler eram quase celibatários, frustrados e sem vontade, e o Joey parecia acreditar que interpretar era o único jeito de levar uma mulher para a cama. Por outro lado, o mimimi interminável de Rachel, Monica e Phoebe sobre os respectivos méritos da masculinidade daquele cara e das cantadas daquele outro, parecem querer compor a ideia de que namorar é algo muito distante de um processo natural. Por que ser tão neurótico? Friends foi a série que transformou transar em burocracia.

Agora, o Match.com, e todos os outros sites de encontros, se sentem na obrigação de discutir a etiqueta do primeiro encontro em suas propagandas (fora o uniformdating.com, que ainda não consegui entender muito bem — parabéns aos caras por manter os mistérios do amor com suas proposições de venda esquisitas). Um monte de mulheres passa a vida inteira bebendo vinho e reclamando interminavelmente sobre amostras inadequadas de "romance" de caras que — Deus que me perdoe — as levaram para jantar numa pizzaria. Um monte de caras se tornaram cínicos com a própria ideia de amor, se metamorfoseando em um exército de Joeys, mas sem o charme de um personagem de TV com um roteiro salvador e o sorriso idiota do Matt LeBlanc.

Friends, no seu desejo inocente de bater os recordes de audiência, nos vendeu uma ideia reducionista de gênero que continua conosco até hoje.

Publicidade

Joey Tribbiani foi o primeiro "artista da cantada" do mundo

Falando nisso, alguma de vocês, moças, já foi abordada por um cara de camiseta e chapéu engraçado no supermercado, academia, café ou em qualquer lugar? Culpe Joey Tribbiani. O Joey podia ser um ótimo personagem de TV — e talvez o mais "real" da turma — mas alguma coisa em suas rotinas superconfiantes de flerte público era tão crível, que inspirou uma geração de moleques de apartamento a testar na pele os limites da lei de assédio sexual. Ainda assim, acho que isso é ainda melhor do que a maneira como o Chandler foi entendido.

O programa deu à luz aos babacas de café

Piadas sobre pessoas bebendo cafés com nomes engraçados ficaram mais chatas do que as pessoas que elas visam, e Friends é responsável por esses dois males sociais. Claro: quando o programa começou, os cafés tinham uma aura sofisticada e glamourosa. Diferentes de bares e lanchonetes, eles são lugares tanto para o trabalho como para lazer, um lugar onde você pode conversar com seus amigos sem as interrupções de tiozões gritando com a TV. Agora que você pode conseguir um expresso decente no aeroporto ou no McDonald's, os cafés perderam o exotismo.

No entanto, os babacas dos cafés permaneceram. Ficando cada vez mais tempo lá por causa do wi-fi e ampliando ainda mais o mercado. Ainda suspirando dramaticamente quando outras pessoas fazem barulho, ainda falando de entrevistas de emprego, ainda lendo os mesmo livros e ainda tentando terminar seus roteiros escrotos.

Publicidade

Todo mundo conhece um tedioso "Ross e Rachel"

Esse é o pior legado do Friends.

Outrora, os humanos viviam felizes dentro das classificações simples de "solteiro", "junto", "casado" ou "divorciado". A menos que você fosse um selvagem ou francês. Isso até o Ross e a Rachel aparecerem "dando um tempo", o que deu às pessoas a liberdade para participar de todo tipo de ambiguidade romântica.

Assim, uma geração inteira começou a trocar mensagens de texto infinitas sobre "para onde as coisas estão indo", dormindo com seus amigos e dizendo que estão simplesmente "saindo", e sendo o mais evasivos e dolorosos possível. Não que todo mundo tenha que casar e ter filhos com 25 anos — e sim, certa ambiguidade romântica pode ser algo divertido — mas, talvez, se tivéssemos nos agarrado à ideia de que namorado é namorado e namorada é namorada, teríamos poupado muitos corações partidos e mensagens de texto pentelhas.

A atitude do Friends quanto a relacionamentos não era boêmia ou liberada, era apenas irritante. Não havia grandes teorias sobre o que um relacionamento deveria realmente significar; os acontecimentos eram apenas sintomáticos do egoísmo e da obsessão consigo mesmo. "Dar um tempo" nunca significou nada além do fato de que uma pessoa queria terminar, mas não teve coragem de admitir isso para a outra. A saga Ross e Rachel legitimou algo que devia ser considerado babaquice desde o começo, fazendo surgir uma geração de gente que ficou falando de falsificações pseudopsicológicas de relacionamento por mais de uma década.

Siga o Clive (@thugclive) e a Nathalie (@NROlah) no Twitter.

Ilustrações por Sam Taylor. Siga o cara no Twitter (@sptsam) ou visite o site dele: samtaylorillustrator.com