Bob Marley

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Noisey

Um guia para curtir um Bob Marley sem ser tonto

Para que possamos ir muito além dos pôsteres, dos banzas, das bermas e do ‘Legend’.

Todos nós já conhecemos essa pessoa. Ela é bem-informada, conhece um pouco disso e daquilo. É uma pessoa eclética que normalmente conhece todas as bandas "do momento". E não para por aí. Essa pessoa também afirma ouvir tudo. Daí você pergunta, "tudo?". Ela repete, "tudo". Você diz, "country?". Ela diz, "From a Room" de Chris Stapleton toca demais lá em casa". Você rebate, "reggae?". Ela responde, "Eu amo Bob Marley".

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Aí soa aquele alarme. Tirando o fato de que Bob Marley morreu há 36 anos e há diversos novos artistas do gênero por aí, citá-lo como sua escolha dentro do reggae é apelação pura e simples.

Você vai mais fundo. "Que fase?"

Ela responde, orgulhosa, "Legend".

Legend. Sempre Legend. Pergunte a qualquer um quais são suas músicas favoritas do Bob Marley e serão citadas faixas deste disco, uma coletânea póstuma de 14 faixas que inclui canções de seis discos diferentes. Foi assim que resumiram a carreira do cara.

Mas vamos te ajudar a ver o Bob Marley além dos clichês. Iremos além dos pôsteres, dos banzas, além de Legend.

Diferente de qualquer estrela do Caribe que o antecedeu ou o sucedeu, Bob Marley mostrou a música da região, o reggae, para o mundo. Em menos de uma década, ascendeu da obscuridade a ponto de se tornar um renomado porta-voz em prol da liberdade. Marley era um embaixador musical que transcendia gêneros, nações e até mesmo a morte, com um legado que só cresceu após seu falecimento por conta de um câncer em 1981, com 36 anos.

Bob Marley ainda é o artista de reggae mais vendido de todos os tempos. Há incontáveis discos e coletâneas com suas músicas disponíveis no mercado, que ajudaram a manter o mito relevante até os dias hoje. Tantas opções dificultam no processo de saber por onde começar se você é um neófito e então lhe apresentamos este guia introdutório para que você mergulhe nas águas deste que é um dos maiores músicos da história.

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Bob Ska/Rock (steady)

A pior parte de se tornar ícone de qualquer coisa é que geralmente te reduzem a um único discurso ("Eu tenho um sonho", no caso de Martin Luther King, ou como no caso de Bob, um único disco, Legend).

Felizmente, a carreira de Bob Marley pode ser traçada até os primórdios da música jamaicana que viria a ser o reggae. De fato, Marley cresceu ao mesmo tempo em que a ilha encontrava sua identidade, tendo apenas 17 anos quando a Jamaica tornou-se independente da Grã-Bretanha, em 1962. Foi neste mesmo ano que os músicos jamaicanos amadureceram e foram além de suas influências R&B norte-americanas. O resultado é que a carreira de Marley converge em vários momentos com a de outros pioneiros da promissora indústria musical jamaicana da época.

Antes de 1962, artistas jamaicanos tocavam mento, calypso ou a sua própria interpretação do R&B americano, conhecido como boogie jamaicano. O ska era um gênero animador e animado; muitas vezes considerado o som da liberação, pois seu surgimento coincidiu com a independência do país onde surgiu. Sopros acentuavam as batidas, mais aceleradas que as do R&B, e foi isso que fez do ska um gênero particularmente jamaicano. A influência americana surgia na forma da harmonia de quatro partes típica do doo-wop daquela época.

Bob Marley aos 15 anos já sabia que queria fazer música. Bandas e artistas como The Jiving Juniors, The Magic Notes e Jimmy Cliff, este com maior relevância, lançavam material que disputava popularidade com o R&B americano. A mãe de Marley até lhe conseguiu um emprego no ramo da soldagem, o que não durou muito tempo.

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"Eu amava cantar, então achei que devia aproveitar a chance", comentou Bob na edição de 24 de fevereiro de 1973 da Melody Maker. "Solda era um negócio complicado! Então fui até Leslie Kong da Beverley Records em 64 e gravei um disco numa mesa de um canal. Jimmy Cliff me levou lá — ele era o cara da Beverley."

Se você quer entrar na do Bob Marley, precisa conhecer essas faixas — mesmo que ninguém nem saiba quando elas foram lançadas.

Quando Marley gravou de novo, desta vez com sua banda, The Wailers, o processo se deu após aprender harmonias com Higgs & Wilson, dupla que tinha gravado o primeiro sucesso da ilha, "Manny O". Joe Higgs também foi importante em outros dois momentos: quando Marley aprendeu a tocar guitarra e quando se converteu ao rastafarianismo.

Nestas gravações podemos ouvir Marley ficando cada vez mais seguro com sua voz. E, seguindo um padrão que se estabeleceria depois, Bob compôs músicas como "Stir it Up", que depois seria retrabalhada e relançada, obtendo maior sucesso.

Os skas de Bob Marley soam óbvios, mas é preciso um ouvido treinado para saber a diferença entre rocksteady e reggae. A melhor forma de marcar é pelos anos. Muitas destas faixas foram lançadas em discos de 45 rotações e nunca num disco de fato até o lançamento do box set de 1992 Songs of Freedom.

Playlist: "Judge Not" / "One Cup of Coffee" / "Put it On" / "Bus Dem Shut " / "Stir it Up (original version)"
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Bob engajado/rudeboy

Ao passo em que Bob em sua fase rocksteady/ska lidava com temas essencialmente apolíticos, fazendo música pra festinha, o Bob Rudeboy já denuncia o que rolava na Jamaica.

É nesta época que Marley e banda conseguem seu primeiro grande sucesso, "Simmer Down", de 1964. Esta faixa tratava de crime e violência na ilha. Marley empregaria este tipo de composição engajada ao longo de sua carreira — o que Bob dizia ser do povo para o povo.

Um grande exemplo disso é a forma como Bob conta uma história em "Johnny Was", inclusive se inserindo na narrativa:

Woman hold her head and cry;
Comforting her I was passing by.
She complained, then she cry:
Oh-ooh-wo-ah, cry (ah-ah), yeah, I know now (ah-ah),
No I know, I know now: (Johnny was a good man)
Said I know, mm-mm-mm-mm-mm. (never did a thing wrong)
Ah! ah! (Johnny was a good man)

Bob não abraçou a cultura rastafári logo de cara; ele ainda era um cara limpinho como os rude boys de sua época, mas tudo mudaria no decorrer dos anos 60…

Playlist: "Simmer Down" / "Rude Boy" / "Duppy Conqueror" / "Mr. Brown" / "Caution" / "Concrete Jungle" / "Burnin' and Lootin'" / "Johnny Was"
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Bob rasta/revolucionário

Talvez esta seja a mais proeminente categoria da qual Bob faz parte e as canções desta época são, de longe, minhas favoritas.

A música de Bob Marley tem apelo diante de todas as raças e credos. Quando eu era mais novo, sempre ficava impressionado ao ver um monte de colegas de trabalho brancos bêbados cantando "Redemption Song" a plenos pulmões e me falando como aquela era uma de suas favoritas do artista. Detalhe: é uma música que trata da sobrevivência à escravidão.

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Marley lida com a instituição escravocrata em diversas músicas, além de deixar espaço para temas como os efeitos do colonialismo, guerra e ganância. A maior parte destas canções tornaram-se hinos populares, destituindo-as em partes de seu poder revolucionário, mas ainda assim, foram estas faixas que fizeram de Marley um ícone mundial.

O princípio presente em todas estas canções é a superação da adversidade: Marley nunca soa como uma vítima e o rastafarianismo foi o principal motivador desta. As crenças rastafarianas moldaram a perspectiva musical de Marley e até mesmo estas faixas podem ser divididas em diferentes eras.
É através deste sistema de crenças que letras como "Slave Driver" surgem:

We gonna chase those crazy
Chase them crazy
Chase those crazy baldheads out of town
Build your penitentiary, we build your schools
Brainwash education to make us the fools
Hate is your reward for our love
Telling us of your God above

Playlist: "Slave Driver" / "No More Trouble" / "Get Up, Stand Up" / "Rastaman Chant" / "Revolution" / "Crazy Baldhead" / "War" / "Kaya"
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Bob para apaixonados

Não é segredo pra ninguém que Bob amava as mulheres.

Fato é que as mulheres o amavam também: a contagem oficial de filhos do músico é de 11. Após a fase rasta/revolucionária, com certeza a categoria que maior compreende a obra de Marley é a de canções de amor.

Naturalmente, só há uma forma de entender estas canções, pelo menos de acordo com a minha experiência. Eu nunca disse que era autoridade em Bob, apesar de conhecer uma coisinha ou outra sobre o cara, porém acabei descobrindo que não sabia tanto assim quando conheci uma mulher na faculdade que era louca por ele. Ela ouvia suas canções românticas e gritava, tamanha sua empolgação. Ela amava Bob — um amor póstumo, mas ainda assim amor.

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Quando Marley estava vivo, ele tinha este mesmo efeito em mulheres por todo o mundo. Suas letras pensativas e vulnerabilidade encantaram incontáveis corações — ajudando inclusive alguns casais neste processo. Se liga nesse trecho de "Turn the Lights Down Low":

Loving you is a like a song I replay
Every three minutes and thirty seconds of every day (uh, uh)
And every chorus was written for us to recite (right)
Every beautiful melody of devotion every night
It's potion like this ocean that might carry me
In a wave of emotion to ask you to marry me
And every word, every second, and every third
Expresses the happiness more clearly than ever heard (uh)

Playlist: "Baby We Got a Date" / "Stir it Up" / "No Woman No Cry" / "Turn Your Lights Down Low" / "Waiting in Vain" / "Is This Love" / "Satisfy My Soul"
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Bob versão diplomacia global

Quando Chris Blackwell contratou Bob Marley para a Island Records em 1972, ele tinha um plano. Blackwell sabia que para fazer Bob bombar pelo mundo, seria necessário dar uma polida, colocar alguns elementos de rock e modelar a música nesse sentido. Tudo começou com uma versão mais leve de Catch a Fire em 1973 e assim foi até a morte prematura de Marley em 1981.

Ao passo em que a influência de Bob crescia, sua ideologia tornou-se cada vez mais pan-africana. Ele via a influência que sua música exercia pelo mundo, especialmente no continente africano, e é exatamente por isso que seus últimos discos continham as mais poderosas mensagens em algumas de suas mais doces canções. Tal ato, por sua vez, enfraqueceu seus laços com o reggae — tem coisa ali que só é reggae porque Bob Marley é o reggae.

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Independentemente disso, amo as letras e como elas energizavam as pessoas. Muitas vezes chamavam de Bob de profeta pela forma como observava as coisas. A letra de "Zimbabwe" resume boa parte da inquietude africana.

To divide and rule could only tear us apart
In everyman chest, there beats a heart
So soon we'll find out who is the real revolutionary
And I don't want my people to be tricked by mercenaries
As mensagens desta fase de Bob são profundamente poderosas e são um dos principais motivos que o levam a ser visto como um ícone até hoje.

Playlist: "Zimbabwe" / "Africa Unite" / "Wake Up and Live" / "One Drop" / "Bad Card" / "We and Dem" / "Zion Train" / "Forever Loving Jah"
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O sdq está pirando em uma ilha em algum lugar do mundo (pelo menos em espírito) e quer você junto, siga-o no Twitter.

Matéria originalmente publicada no Noisey US.

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