A direita alternativa dos EUA e o medo de um planeta negro
Ilustração por Richie Papa.

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A direita alternativa dos EUA e o medo de um planeta negro

A angústia em relação a um país mais negro e pardo, junto com uma frustração generalizada com o sistema político, são as forças por trás do desastroso fenômeno Donald Trump.

Esta matéria originalmente publicada na VICE US.

Para um certo pessoal branco de direita, os EUA está à beira de um apocalipse racial. Eles estão apavorados porque sentem o país escorregando pelos dedos, para as mãos de selvagens negros e pardos. Brancos já são minoria entre crianças com menos de cinco anos; casamentos inter-raciais estão na maior alta de todos os tempos; e tem um negro na Casa Branca querendo que pelo menos 10 mil refugiados sírios se assentem nos EUA até o final de setembro. O mesmo presidente que teve a cara de pau de tentar proteger 5 milhões de imigrantes sem documentos da deportação. Sem mencionar que há um movimento popular defendendo proteger a vida de bandidos negros contra as autoridades, se espalhando por todo o país e infectando desde as universidades até passatempos nacionais como o Super Bowl.

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Segundo Ian Haney-Lopez, professor de direito da Universidade da Califórnia, Berkeley, e especialista em racismo na era pós direitos civis, são tendências como essa que criaram um ambiente propício para todo tipo de revanchismo branco. "Diante das mudanças sociais que declararam pessoas não-brancas igualmente humanas aos brancos, mulheres igualmente humanas aos homens e merecendo os mesmos direitos, que várias religiões e até não ter religião devem ser respeitados", ele disse a VICE, "há segmentos da população que querem reconquistar sua posição superior de antes em hierarquias injustas".

Essa angústia contra uma América mais negra e parda, junto com uma frustração generalizada com o sistema político, são as forças por trás do desastroso fenômeno Donald Trump — o combustível que o disparou dos reality shows para a nomeação como candidato presidencial do Partido Republicano.

Sem ter que se preocupar com os papos conservadores tediosos sobre cortar impostos e restaurar os valores da família, Trump diz a esse segmento descontente da população que ele está aqui para "Tornar os EUA grande de novo" — ou, mais corretamente, "Tornar os EUA branco de novo". E o sentimento claramente ressoa com o eleitorado republicano.

Então talvez faça sentido que a ascensão de Trump tenha acontecido graças às sombras desses que se definem por sua política de identidade branca. Alguns anos atrás, as sementes do nacionalismo branco eram espalhadas disparatadamente pela internet, dos fóruns do 4chan onde nasceu o Gamergate aos pickup artists do YouTube exultando as virtudes da masculinidade branca, até os memes antissemitas dos neonazistas do Daily Stormer.

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Mas desde que Trump entrou em cena, muitos dos grupos de direita focados na preservação do status branco nos EUA se juntaram num novo movimento branco, coletivamente conhecido como "direita alternativa".

"Donald Trump tem conseguido se comunicar com o cidadão branco médio que encara agora um futuro difícil", diz Richard Spencer, uma das vozes mais conhecidas da direita alternativa e líder do National Policy Institute, uma usina de ideias separatistas brancas.

"A direita alternativa se desenvolveu sozinha", ele disse numa entrevista recente para a VICE. "Temos nossas próprias discussões, disputas, ideias e termos. Mas por causa do movimento Trump, conseguimos atingir um novo nível. Eu nunca teria previsto que surfaríamos essa onda. Eu costumava desprezar a maioria dos políticos, particularmente os republicanos. Mas com Trump é diferente, e isso é maravilhoso."

Spencer leva o crédito por ter cunhado o termo "direita alternativa" em 2008, e diz que a parte "alternativa" significa "romper com as restrições do conservadorismo mainstream". Ele chama o movimento de "a força intelectual [por trás de] Trump", explicando que quando os conservadores mainstream consideraram a candidatura de Trump uma piada, isso deixou uma abertura para a direita alternativa preencher o vácuo. Apesar de Trump ter rejeitado de leve o tipo de nacionalismo branco abraçado pelo movimento, ele trouxe o que Spencer descreveu como um tipo de "qualidade existencial para a política", particularmente ao redor da ideia de identidade branca num país cada vez menos branco.

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"Você escolhe a pílula vermelha da verdade, não a pílula azul da ilusão. Isso significa a verdade sobre raça, sobre os EUA, a verdade sobre a influência dos judeus, sobre as mulheres… São verdades difíceis que vão na contramão da ideologia liberal e pensamento positivista." — Richard Spencer

Para Spencer e outros da direita alternativa, Trump não só encorajou o movimento a sair das sombras; com sua mensagem xenofóbica, ele fez vários conservadores mainstream se abrirem sobre o jeito que pensam — um processo que a juventude da direita alternativa nos fóruns e redes sociais chama de "tomar a pílula vermelha". Uma referência a Matrix, a "pílula vermelha" significa desde se envolver no Gamergate até entrar em fóruns de direitos dos homens para apontar o dedo na cara dos "cuckservatives" do establishment republicano, que se recusam a abraçar sua identidade branca.

"Essencialmente, você escolhe a pílula vermelha da verdade, não a pílula azul da ilusão", diz Spencer. "Isso significa a verdade sobre raça, sobre os EUA, a verdade sobre a influência dos judeus, sobre as mulheres… São verdades difíceis que vão na contramão da ideologia liberal e pensamento positivo."

Para quem abraça essas "verdades" questionáveis, a solução é clara: estabelecer o que Spencer chama de um "estado étnico" para brancos, livre da diversidade que a direita alternativa acredita ter provocado a decadência econômica, social e cultural do país. Por que alguém ia querer morar num país com comida insossa e música ruim vai além da minha compreensão — mas entre a variedade de grupos sob a faixa da direita alternativa, dos líbers da pílula vermelha aos ativistas dos direitos dos homens até os trolls da internet, a ideia é tema unificado, um tipo de promessa de campanha usada para proselitismo e para atrair novos seguidores para o movimento.

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"A maioria dos brancos não gosta da ideia de ter crescido nos EUA e acabar seus dias num posto avançado da Guatemala ou Haiti." — Jared Taylor

Nesse sentido, a direita alternativa e Trump formam um tipo de simbiose. Trump fornece o portão populista para a política étnica da direita alternativa, e o movimento fornece um caminho pseudointelectual para que jovens conservadores aceitem Trump.

Essa troca deu à direita alternativa um perfil cultural e uma consciência que escapava à política de identidade branca há décadas. Hoje, o movimento é uma força poderosa, mesmo que controversa, dentro da política conservadora, defendido por provocadores de direita, como Ann Coulter e os jornalistas do Breitbart, e desprezado por outros comentaristas republicanos por semear a discórdia no partido. Mesmo publicações como a New Yorker e o Time já deram espaço para a direita alternativa.

"Fico muito feliz que Trump esteja aproveitando esse sentimento instintivo que os americanos brancos têm de que estão perdendo seu país", disse Jared Taylor, fundador da American Renaissance, uma usina de ideias que promove racismo científico, ou, como Taylor gosta de chamar, "realismo de raça". Taylor vem organizando conferências e publicando estudos de genética sobre as diferenças entre as raças desde o começo dos anos 90, fornecendo a base para a ideologia separatista branca da direita alternativa hoje.

Apesar de não apoiar publicamente Trump como Spencer, Taylor acha que o magnata imobiliário é o único candidato presidencial que compartilha suas visões sobre raça nos EUA. "Acho que Donald Trump, como muitos americanos, está irritado por ter que 'discar um para inglês' quando faz uma ligação, ou entrar numa loja de conveniência e ser a única pessoa branca lá — a única pessoa falando inglês", ele disse. "A maioria dos brancos não gosta da ideia de ter crescido nos EUA e acabar seus dias num posto avançado da Guatemala ou Haiti."

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"Por que os brancos devem querer se tornar uma minoria?", acrescentou Taylor. "Donald Trump nunca [fez essa pergunta], mas, de todos os candidatos, ele é o único que consigo imaginar dizendo essas palavras um dia."

Claro, Trump não é o primeiro político republicano a galvanizar eleitores apelando para a ideia de identidade branca. O GOP vem empregando essa tática desde pelo menos os anos 60, quando os líderes do partido perceberam que poderiam tirar votos da classe trabalhadora branca do Partido Democrata explorando a ascensão da ansiedade racial. A tática, empregada pela primeira vez pelo candidato republicano antistablishment Barry Goldwater na campanha presidencial de 1964, acabou se tornando conhecida como a "estratégia sulista" do GOP.

"Conservadores desde os anos Goldwater vêm manipulando essas pessoas", disse Haney-Lopez, o professor da UC Berkeley que escreveu Dog Whistle Politics: How Coded Racial Appeals Have Reinvented Racism and Wrecked the Middle Class. "Eles supõem que sempre poderão controlá-los. Mas no processo que observamos, os republicanos são cada vez mais arrastados para a direita, para posições cada vez mais extremas, porque essa base de brancos descontentes será sempre mobilizada pelo próximo demagogo.

"E isso que acho que Donald Trump simboliza", ele acrescentou. "[Que] conservadores não conseguem mais controlar essas forças."

Mas enquanto essa isca foi sendo usada pelos republicanos nos últimos 50 anos, ela geralmente ficava abaixo da superfície, manifestada em referências sutilmente veladas a um "estado de direito"; aqueles que aceitavam versões mais públicas de nacionalismo branco e política de identidade branca eram empurrados para a margem. Mas nos últimos 15 anos, esses eleitores reemergiram como parte dos soldados rasos do GOP, sob a bandeira da direita alternativa, gradualmente drenando o establishment do partido de sua influência e poder.

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"O conservadorismo era um tipo de política de identidade branca que não ousava dizer seu nome", Spencer disse. "A maioria das pessoas que votam no Partido Republicano são brancas. Mas se você mencionar isso para grande parte dos conservadores, eles vão corar e negar, dizendo 'Ah, isso não é sobre identidade ou raça'."

"Um objetivo de médio prazo que realmente podemos alcançar, um que acho que estarei vivo para ver", ele continuou, "é a formação de uma política de identidade, uma política étnica, para pessoas brancas nos EUA".

Um aspecto fascinante da direita alternativa é que apesar de carregar a tocha da política de identidade branca, eles fizeram isso quase sem cair em nenhuma armadilha clássica da supremacia branca nos EUA. Apesar de sites como o Daily Stormer e Right Stuff usarem epítetos como "nigger" e "faggot" nas manchetes, e espalharem memes negando o Holocausto, os líderes da direita alternativa como Spencer conseguiram, na maior parte, colocar um verniz mais urbano na política branca. Spencer largou a Universidade Duke quando fazia doutorado, é retratado em fotos com um corte de cabelo descolado estilo barman do Brooklyn, e seu site Radix Journal fala tanto sobre cultura pop como sobre política.

Essa pegada hipster é proposital, visando separar os que se identificam como direita alternativa dos caipiras de lençol branco e os brutamontes com tatuagem de suástica. Na verdade, muitos dos caras que se identificam como direita alternativa hesitam em usar o termo "supremacia". Em vez de racismo descarado, Taylor maliciosamente argumenta que "os brancos só querem ser deixados em paz, seguir seu próprio destino sem a intromissão de pessoas diferentes deles, que chegam em grandes número para mudar sua cultura e a textura da vida para eles".

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O desejo de "ser deixado em paz", cuja expressão definitiva é a ideia de Spencer do estado étnico, é impulsionada pela ideia de que raça é mais que apenas uma construção social. A direita alternativa vê raça como algo enraizado na genética, criando populações que são inerentemente diferentes em coisas que vão do QI até propensão à violência; segundo as teorias da direita alternativa, essas diferenças raciais baseadas em genética têm um papel muito maior em determinar o comportamento dos indivíduos do que coisas como socioeconomia, status, educação e opressão institucional. E assim a direita alternativa vê o crescimento das minorias nos EUA como uma espécie de ameaça existencial para a prosperidade dos EUA, porque esses indivíduos negros e pardos são percebidos como geneticamente — portanto irrevogavelmente — inferiores aos brancos que eles estão rapidamente superando em números.

"Desculpe, Sr. Trump, mas você não pode tornar a América grande de novo com uma população de terceiro mundo — você fica preso ao que sua população pode fazer", disse Taylor. "Se isso continuar, talvez daqui uns cinquenta anos, vamos ver uma ruptura catastrófica. Se os EUA tivesse mantido a população 90% branca que tinha nos anos 60, não estaríamos enfrentando nada disso. Estaríamos vivendo numa sociedade muitos mais feliz, igualitária, rica e pacífica em que todos se sentiriam em casa."

Nem preciso dizer que esse tipo de racismo científico é descartado pela comunidade científica internacional como apenas uma racionalização para ideologia racista. Mas Haney-Lopez aponta que é isso que torna a ascensão da direita alternativa tão perigosa, particularmente num momento de virada política no país.

"Estamos mudando demograficamente, estamos mudando racialmente — estamos nos tornando uma sociedade realmente multirracial. No contexto dessa mudança, sempre precisamos nos defender contra o apelo de nos tornarmos piores", ele disse. "O risco do movimento da direita alternativa e Donald Trump é que no meio dessa transformação social que, claro, gera ansiedade, estamos caminhando numa direção que nos encoraja a encontrar um tipo de prazer perverso em diminuir e desumanizar outras pessoas."

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