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Música

Adeus Gato Preto, do grupo A Família

Morto a tiros numa emboscada, o rapper e cronista Altino Jesus do Sacramento deixou para o hip hop um legado de intervenções e poesia de resistência. Ele tinha 37 anos.

Foto via: Facebook A Família

"Sou o príncipe do gueto, só quem é desce, sobe, a ladeira. Sou o príncipe do gueto, meu castelo é de madeira". Aqueles que viveram embrenhados no rap do começo dos anos 2000 ficaram com esses versos entalhados na memória. A melodia, intensa por si só, cresce com a força da letra. "Castelo de Madeira" é um manifesto realista e apaixonado sobre a vida na periferia dos centros urbanos. Bate forte: a autoria pertence a alguém que escreveu com conhecimento da causa. Um cara que cresceu como um menino de rua, abandonado, sem destino, em Ilhéus, na Bahia.

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Altino Jesus do Sacramento, chamava-se. No rap, conhecido como Gato Preto, vocalista do grupo A Família, com o qual lançou este clássico do hip hop nacional. Ironicamente, Gato Preto morreu, no dia 1º deste mês, vítima do mesmo quadro social que ele criticava no papo da famosa música. Estava com 37 anos quando foi baleado perto de onde morava, em São Paulo, na Rua das Goiabeiras, Vila Sônia, às 21h43. Ele foi atingido por oito tiros disparados de dentro de um carro vermelho. O irmão dele, um empresário de 34 anos, que o acompanhava, também foi baleado, mas sobreviveu.

Gato Preto chegou em São Paulo em 1992 para tentar uma vida nova e foi acolhido pelo hip hop. Logo nos primeiros anos de seu envolvimento com o rap, se destacou por sua veia poética e pela militância no movimento negro. Integrou o coletivo Posse S.U.AT. (Sindicato Urbano de Atitude) e os grupos Extremamente e QG Nordestino. Em 2000, montou A Família, e seu nome ganhou força no rolê. Nessas, virou camaradão do GOG, que lhe deu respaldo para erguer a cabeça e transpor obstáculos. "A poesia dele o levou a cantar com o GOG, e isso proporcionou vivências pra gente, oportunidade de mostrar o trabalho. Ele me levava junto pras paradas e a coisa foi toda acontecendo", revela Duguetto Shabazz, parceiro do Gato Preto no grupo de rap Extremamente e nas intervenções do Cordel Urbano.

Daí pra frente ele passou a investir pesado na literatura marginal, e as coisas começaram a virar. Logo no álbum de estreia d’A Família, que na primeira formação contava com Crônica Mendes, Denis Preto Realista e DJ Bira, sua poesia foi bem recebida pelo hip hop local. Cantando com a Alma veio em 2004, com mais de 20 mil cópias vendidas. “Faveláfrica”, uma das faixas de maior sucesso do disco, nasceu como um poema dentro do projeto editorial “Literatura Marginal”, da Caros Amigos. “Miscigenação forçada, mãe África estuprada / Nunca descobridores, invasores, só canalhas / Torturaram minhas raízes e nos deram marquises / Agora surge o revide, Gato Preto te agride”, diz um trecho do texto, que deixa clara a razão pela qual ele era chamado de “o incendiário”.

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O termo “o incendiário” é coisa do rapper GOG, com quem o Altino estreitou relações no segundo álbum d’A Família. Mais Romântico (2008) contou com as participações de GOG, Edi Rock (Racionais MC’s) e Júnior (Sampa Crew). Procurado pelo Noisey,com certa insistência,a fim de comentar este e outros fatos de sua convivência com ele, GOG infelizmente recusou-se a dar declarações.Masnão é difícil imaginar que talqualidade lhe tenha sido atribuída em referência ao seu espírito combativo. É que o Altino não parava na música e na poesia. Ele sabia que palavras são valiosas, porém que ações falam mais do que palavras. Lutava pelo movimento negro com inserção social e mostrando a cara. Em sua trajetória, participou de oficinas educativas em FEBEMs, escolas e shows comunitários e organizou ações para a arrecadação de livros e alimentos para a comunidade do Jd. Colombo.

“A maior contribuição dele pro rap nacional foi ter evidenciado a coisa do spoken word, a poesia falada, dentro do nosso cenário”, avalia o camarada Duguetto Shabazz. “Hoje tem os campeonatos, os slams de poesia, mas ele foi o precursor dessa parada toda. Ele criou um bagulho chamado Cordel Urbano, e a gente recitava no meio dos shows de rap, shows do GOG, do Código Fatal, de uma porrada de gente. Ele foi precursor dessa nova cena de poesia periférica. Quando a Cooperifa chegou, ele já estava fazendo a poesia dele”.

Duguetto ilustra o espírito inflamado do amigo com a lembrança da vez em que o Gato Preto fez uma intervenção poética na Assembleia Legislativa, em São Paulo, diante de dezenas de pessoas. Políticos, autoridades, gestores de cultura, artistas… O ano era 2002. “E ele fez uma intervenção inesperada lá”, conta, “num momento em que se votavam questões relacionadas ao fomento para grupos culturais. Ele estava batalhando pra ter uma cota de recurso da união do Estado pra cultura, que não existia. Hoje, as políticas públicas que existem voltadas pro hip hop têm a ver com a luta de pessoas como o Gato Preto”.

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Se é verdade que os felinos têm sete vidas, dá pra dizer que Gato Preto arriscou a pele e a alma em todas elas. Foi preso e os caraio, por tretas que não cabem ser escarafunchadas aqui. Da última emboscada, drasticamente, não passou ileso. Pouco mais de uma semana após a execução do artista e ativista, a investigação da DHPP (Delegacia Estadual de Homicídios e Proteção à Pessoa) não divulgou uma hipótese sobre o que teria motivado o crime.

Há quem classifique o acontecido como um produto da “brutalidade do poder do Estado de extermínio”, nas palavras de Dennis de Oliveira, da coluna “Quilombo”, da revista Fórum. Duguetto Shabazz traça um paralelo com as mortes do Sabotage e do DJ Lah. “Acho que a disputa do rap brasileiro é mais do que uma disputa de mercado com a classe rica, que tem nesse momento o rap como o bibelô da vez. Pra gente é uma disputa por vidas. Por vários Sabotages, vários DJs Lah, vários Preto Ghóez e vários Gato Preto”, diz.

Encerramos com outros depoimentos e um poema do GOG para Altino Jesus do Sacramento:

“Hoje é um dia muito triste. Perdi um amigo, um dos caras mais inteligentes que conheci. Um nordestino em São Paulo com quem pude contar quando precisei. Um artista nato e guerrilheiro. E um dos maiores entusiastas da minha carreira desde o Costa a Costa. Talvez o último bom malandro em atividade. Morreu defendendo a esquina que ele amava. Na favela que ele amava. E que ele cuidou como pôde, pelos seus próprios meios. Que meu chapa esteja em paz. Como ele dizia: ‘em liberdade no sentido mais pleno de sua palavra’”]. [Don L]

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“O Gato Preto de talento nato, um rebelde, sobrevivente, o incendiário. Trazia nos olhos a dor da vida bruta, nas palavras as armas pra labuta, um cavalo sem dono selvagem, um guerreiro dos nossos, e infelizmente uma grande perca nossa também. Somente Deus por testemunha, somente Deus pra segurar tua família, e que Deus também lhe receba em teus braços. O pouco que lhe fui útil, foi de coração é todo sentimento bom, mas infelizmente não foi suficiente para lhe guiar nesta longa estrada da vida, me perdoe amigo. Não lamento a morte do artista, mas sim a morte de Altino Jesus do Sacramento, o pai de família… Em meu nome e em nome de minha família, descanse em paz”. [Crônica Mendes]

“O Gato Preto era um dos sujeitos mais fascinantes que eu conheci ao longo dos meus 33 anos de vida. Foi ele quem chegou no meu portão quando eu morava na favela do Jd. Jaqueline, lá no Morro da Fumaça. Chegou dizendo que tinha ouvido falar que ali na quebrada tinha um cara que cantava um rap. E ele foi perguntando até me achar. A gente fez uma amizade forte, uma parceria cheia de sinergia, e fomos pra cima do som, pra tentar realizar uma carreira de rap. O cara era um gênio da escrita, tinha muito estudo. Batalhador na vida, mesmo, tá ligado? O bagulho tá sendo muito difícil”. [Duguetto Shabazz]

“O Incendiário”
[GOG]

[Fala] Pra mim foi difícil. Foi preciso me libertar e
derrotar o senhor do fracasso, dos pensamentos
limitados, depois disso, no pódio da vida brilhava
sozinho: o incendiário. Textos, textos e mais textos escritos.
Livros lidos, relidos e devolvidos,
distribuídos adiante, avante discípulos!
Não era uma pedra, mas estilhaçava vidros. Despertou o menino!
O fogo que quando queima,
desperta quem tava dormindo.
O fogo se alastra, o caçador vira caça,
A chama da consciência briga, alivia, devasta, Ela geme, lareira, fogueira,
Fogo na madeira, fumaça,
Distorce o contexto, arruma pretexto,
Fecha o cerco, ameaça. Sou carro pro racha, sou burro, sou caixa,
Sou bala, sou brasa, o microfone que rasga o verbo e
embala a fala,
Já fui lança, espada, fui flecha, fui faca, fui clave
d'água,
atual e primata, de Zumbi a Zapata, de ponta a ponta,
o que conta o mapa? Chão onde perversos criaram impérios e farsas,
Explorando, levando minérios, basta!
Aos dreads, à pele, ao carvão, ao rasta,
O RAP uma nação em construção, uma casa,
Comunhão entre os irmãos, sim, fim do medo!
De tanto brincar, quebrou o brinquedo! O conto das ruas, o sol ou a lua, as lendas
libertárias,
Engrossam e reforçam as veias coronárias
E o sangue frio, pulsa, fervilha,
O incendiário tem QG em Brasília. O incendiário, o incendiário:
Eu sou o cobrador, o terror, em forma de gente!
O incendiário, o incendiário:
Eu sou o cobrador, o terror, em forma de gente! Meu nome é Altino Jesus do Sacramento,
Criado nas ruas de Ilhéus como indigente,
Desprezado, largado, Mas fui recolhido pelo QG,
recebido
E me deram o nome de: O incendiário. Cavalo sem dono, selvagem,
Não aceita rédeas,
Aqui na lei da selva,
vida certa é minha regra. Eu vim em prol da plebe,
40 graus de febre,
É pata de monstro
na cabeça dos vermes. Acordei, despertei,
Levantei desde cedo.
Eu me livrei da dor,
Da fome, do pesadelo. Minha fé, minha mente
Resistente não dá falha,
Me livra da vala,
Da maldita navalha. Sou a volta
Da revolta de quem tava adormecido,
Sou a volta
Da revolta do moleque oprimido. Ação sempre pensada,
Na calma de um monge,
Pois um ato impensado,
Corrompe, mata o homem. Sou pelo povo pobre
Na favela dos estados,
No ataque predatório
No farol fechado. A cobrança sendo feita,
Avante proletário,
Quem não deve, não trema, não tremas,
Justiça é meu lema. Dizia Sabotage:
"gato preto é ladrão de cena",
Sou problema, compreenda,
Gladiando na arena. Meu ataque é direto e reto,
Ódio e amor mesclado,
O amor é pelo meu povo,
Dose de ódio pros carrascos. Família GOG,
Se liga pro plano de atitudes:
Guerreiros da Nova Ordem,
Só Leão que ruge. Invadindo as faculdades,
Sedes para debates,
Ações, reuniões,
Convocando a comunidade A sra. da lavoura,
O idoso com a marmita,
A menina no lixão,
Num barraco palafita. Eu sou por todos nós
Um guerreiro Legionário,
Aqui fala um rebelde,
Gato-preto, incendiário. É… eu tive oportunidade
De ser mais um entulho
No lixão da humanidade…
Reagi, me reciclei, não foi fácil. E me tornei
Defensor do proletário,
Aí vai o depoimento
Do incendiário: A cor da pele, a cabeça raspada,
O crime, a cara feia,
O retrato falado,
Parece comigo, mas não fui eu, já era! Periferia vamos juntos pra guerra,
100% pro arrebento,
Mil graus,
Sem dar trégua.

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