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Documentos secretos mostram como a China manda muçulmanos para campos de 'reeducação' – e espiona suas famílias

A maioria das pessoas é presa por comportamentos mundanos como usar hijab, ter “barba grossa”, visitar um site estrangeiro ou pedir um passaporte.
Foto tirada em 2 de junho de 2019 dos prédios do Centro de Serviços de Treinamento Vocacional da cidade de Artux, que seria um campo de reeducação onde minorias muçulmanas são detidas, ao norte da cidade de Kashgar na China, região de Xinjiang. (Foto Gree

Istambul – Quando a família de Rozinisa Memet Tohti parou de responder suas ligações três anos atrás, ela temeu pelo pior. Mas nada podia prepará-la para ver uma base de dados vazada do governo chinês sobre uigures visados para internação.

Ali, na linha 358, ela encontrou o número de identidade e o nome completo da irmã mais nova: Patem Memet Tohti. O documento dizia que ela tinha sido mandada para o “campo de reeducação” nº 4, no condado de Karakax, em 7 de março de 2018.

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Rozinisa começou a chorar. “De todos meus familiares, meus pais, sinto mais falta da minha irmã”, ela disse a VICE News.

A família de Rozinisa é muçulmana uigure morando no noroeste da China, onde um milhão de muçulmanos foram presos em campos de “reeducação” desde 2017. Rozinisia mudou da China para Istambul, Turquia, em 2003 para estudar; agora ela recebeu a notícia que todo uigure morando fora da China mais teme. O documento de 137 páginas é intitulado “Pessoas cujos parentes mudaram para o exterior e nunca voltaram”.

Agora ela sabe que sua presença na Turquia pode ter colocado o resto da família em perigo.

O objetivo dos chamados campos de reeducação da China na região de Xinjiang é assimilar minorias muçulmanas há tempos marginalizadas, principalmente uigures e cazaques, na cultura chinesa Han. O governo diz que os centros expandiram o desenvolvimento e ajudam a prevenir terrorismo. Mas relatos dos presos ali vistos pela VICE News revelam que a maioria das pessoas mandadas para esses campos são presas por comportamentos mundanos e legais, como usar hijab, ter “barba grossa”, visitar um site estrangeiro, pedir um passaporte, viajar para um “país sensível” ou ter parentes morando em um, ou ser parte de uma “família religiosa”.

Nos campos, os internados são mantidos atrás de portas trancadas, vigiados 24 horas, recebem notas com base em seu comportamento, têm pouco ou nenhum contato com o mundo exterior, e são doutrinados na linha do Partido Comunista, segundo um guia sobre como administrar esses campos, revisado pela VICE News. Eles são mantidos ali por pelo menos um ano. Muitos muçulmanos que ficaram presos lá e depois saíram do país também falam sobre tortura física e psicológica.

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A família de Rozinisa parou de atender suas ligações em 2016, enquanto o Partido Comunista chinês começava a cercar os muçulmanos chineses em Xinjiang. Foi a última resposta do governo para o descontentamento com o governo Han na região, uma tensão que já gerou violência na última década. Pequim diz que os distúrbios em Xinjiang são culpa de extremismo islâmico e separatismo étnico.

Rozinisa e Patem eram próximas. “Ela era um ano e meio mais nova que eu, mas éramos como melhores amigas. Algumas pessoas achavam que éramos gêmeas.” Rozinisa diz que a irmã era “travessa”, e que quando eram mais novas, às vezes elas brigavam por causa de roupas.

Quando Rozinisa tinha 18 anos, ela mudou para a Turquia para estudar. “Quando fui embora naquela noite, minha irmã foi quem mais chorou. Ela não queria me deixar ir.”

Rozinisa ligava para Patem várias vezes por semana, e elas conversavam sobre o que estava acontecendo na família, o que tinham comido e sobre moda. Aí, um dia no começo de junho de 2016, o telefone da irmã dela foi desligado. Ela não teve mais notícias de Patem, nem de ninguém da família, desde então.

Mas enquanto as notícias do que tinha acontecido com os uigures em sua terra natal começaram a se espalhar, Rozinisa nunca suspeitou que a irmão pudesse ser um deles. Ela nunca tinha feito nada de errado, simplesmente vivia pacificamente comandando uma pequena padaria com o marido e cuidado dos quatro filhos, disse Rozinisa.

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O vazamento

A VICE News recebeu um documento em novembro de 2019 que iria partir o coração de Rozinisa.

A lista contém registros detalhados de 311 indivíduos, todos do condado Karakaz no sul de Xinjiang, principalmente uigures. Todos na lista foram encarcerados em quatro campos de doutrinação na área. Ela revela pela primeira vez as razões específicas para esses indivíduos terem sido detidos, e a informação coletada para determinar se eles podiam ser liberados.

A Lista Karakax foi vazada para a VICE News e vários outros meios de comunicação, pela mesma fonte que vazou os documentos do governo conhecidos como Cabos da China, que emergiram em novembro. O ministro de relações exteriores de Pequim já tinha condenado vazamentos anteriores. O embaixador da China no Reino Unido, Liu Xiaoming, disse aos repórteres ano passado para “Não acreditar em fake news”, quando questionado sobre a autenticidade dos documentos secretos. O Ministério de Relações Exteriores não respondeu os pedidos de comentário da VICE News.

Adrian Zenz, pesquisador líder sobre os programas de reeducação em Xinjiang e membro de estudos chineses da Victims of Communism Memorial Foundation, uma organização sem fins lucrativos de Washington, DC, passou várias semanas revisando o documento, confirmando sua autenticidade e analisando os dados. Ele corroborou os detalhes com relatórios passados e checou os números de identidade dos indivíduos em sua base de dados. Ele compartilhou suas descobertas com a VICE News e outros jornalistas.

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“O documento nos mostra a autonomia dos internamentos.”

“O documento nos mostra a autonomia dos internamentos. É a primeira vez que temos um documento que nos diz por que as pessoas são internadas e por que são liberadas ou não”, ele disse.

A China alega que seus “centros de treinamento vocacionais” fornecem educação e treinamento muito necessários para uma região politicamente instável e economicamente desfavorecida. Mas desde o final de 2019, vários documentos secretos vazados da China contradizem a narrativa de Pequim. Memorandos oficiais do governo, discursos e um manual de como gerenciar campos de reeducação expuseram diretrizes para a campanha de internação. O último vazamento, a Lista Karakax, mostra o funcionamento interno da campanha de reeducação.

Cada linha do documento é sobre uma pessoa e serve como um caso de estudo de como os indivíduos são pegos na rede da China. Como um todo, a lista também revela como governos locais estão coletando detalhes perturbadores de indivíduos uigures, sugerindo que todos eles são tratados com suspeita e desconfiança.

“Podemos comparar isso com o coronavírus. Eles podem deter alguém porque a família foi infectada. Eles veem a religião dessas pessoas como uma doença.”

Em uma coluna, a lista detalha por que cada indivíduo foi mandado para “treinamento”. Alguns são acusados de pensamentos ou comportamentos extremistas. Mas a maioria é presa por comportamentos bem mais inócuos. Isso combina com o que ex-detidos agora morando no exterior nos disseram sobre as razões tênues pelas quais eles foram mandados para os campos.

As categorias mais comuns para internação são violar a política de apenas um filho da China, comportamento religioso, ter qualquer ligação com o “exterior”, ou simplesmente ser rotulado como uma pessoa “indigna de confiança”.

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Outra coluna contém informações sobre parentes, círculos sociais e herança religiosa. Três gerações de familiares são nomeadas meticulosamente, assim como seu paradeiro atual, ocupação e comportamento – incluindo conhecidos em treinamento, ne prisão ou morando no exterior. Há anotações sobre se os familiares obedecem oficiais da comunidade e seu comportamento atual.

Uighur

A irmã de Rozinisa Memet Tohnti aparece na Lista Karakax.

Um trecho, que é típico de todo o documento, diz que a esposa e irmão mais novo de uma pessoa internada também foram mandados para treinamento. Aí eles listam o filho mais velho, nora, segundo filho, filha mais velha e segunda filha, com número de identidade, emprego e “comportamento OK” ou “bom comportamento”. Eles até incluíram a neta, uma menina na pré-escola que mostra “bom comportamento”.

“Círculos sociais” incluem vizinhos e colegas de trabalho, enquanto “herança religiosa” inclui detalhes como se a pessoa ora ou frequenta a mesquita, e quem deu educação religiosa para a pessoa.

Em seu relatório, Zenz compara isso como uma caça às bruxas, e argumenta que a lista “revela uma mentalidade cuja característica mais notável é círculos viciosos de suspeita por associação”.

Mais de 3 mil uigures são nomeados e descritos no documento. E esse é apenas um subconjunto de dados, organizado por internados que têm parentes morando no exterior e com endereços registrados em uma área. A lista revela o investimento do governo em mapear redes de família e conexões sociais entre a população uigure.

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Todas essas informações são consideradas na última coluna, uma “avaliação” de cada pessoa e um veredito sobre e elegibilidade para soltura. Alguns são aprovados para várias formas de liberação ou “formatura”, para seus vilarejos natais ou controle comunitário, enquanto outros “precisam de mais treinamento”. Em outros casos, a pessoa já foi liberada mas ainda está sendo monitorada de perto.

“Nenhuma grande questão foi encontrada no caso de [indivíduo], além do fato que a esposa dele cobre o rosto… [ele] não representa ameaça para a sociedade. Portanto está aprovado que ele deve ser entregue para oficiais locais para futuro gerenciamento, depois de completar o treinamento e deixar o campo”, diz a avaliação de um homem.

Em outra avaliação individual, eles dizem: “Muitos membros da família dele estão detidos ou presos. Sua transformação ideológica não é algo bom. Ele precisa se arrepender mais profundamente. O conselho é que ele continue seu treinamento”.

Notas sobre o círculo familiar são repetidas na avaliação. Para aqueles que ainda não foram liberados, o comportamento dos parentes é um fator para seu veredito de soltura em 67% dos casos. Esse documento confirma que o que muitos uigures no exterior relataram e temem – que as pessoas estão sendo punidas pelas ações de parentes. Os registros mostram as mecânicas de como dinâmicas familiares são registradas sistematicamente e analisadas com detalhes minuciosos.

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“Podemos comparar isso com o coronavírus. Eles podem deter alguém porque a família foi infectada. Eles veem a religião dessas pessoas como uma doença”, disse Zenz. “É como uma mentalidade de vírus. Algo que é perigoso e contagioso só pode ser contido levando todos que tem o vírus.”

“Acho que é tortura”

No caso da irmã de Rozinisa, Patem, o documento diz que ela foi detida por violar a política de filho único. Rozinisa me disse que teme que o marido de Patem também tenha sido detido, deixando os quatro filhos deles, de idades entre 7 e 13 anos, sem ninguém que cuide deles.

Mas na época da avaliação de Patem, o marido e filhos dela estavam listados como morando em sua cidade natal, um vilarejo rural a cerca de 30 minutos ao norte do campo. O documento diz que os pais e irmãos mais velhos de Rozinisa também estão morando na cidade e que eles “mostram bom comportamento”. A irmã mais velha dela aparece mais adiante no documento. Ele diz que ela completou seu “treinamento” mas ainda está sendo monitorada, e que ela “atende chamados de presença no horário todas as noites na comunidade, depois que sai do trabalho”.

“Até ouvir a voz dela no telefone, não vou acreditar que os chineses libertaram minha irmã.”

Rozinisa é mencionada no registro de Patem, sob círculo familiar e novamente na avaliação. O documento diz que ela se mudou para a Turquia (que é considerado um dos 26 “países sensíveis”), mas também diz que ela não tem contato com a família há um tempo. Isso parece ser algo positivo para a família dela na China, já que contato com pessoas no exterior muitas vezes é considerado uma marca ruim. É possível que Patem e sua família tenham notado isso e cortado o contato.

“Acho que é tortura, o que os chineses estão fazendo conosco e nossos pais. Eles dizem que como você se mudou para a Turquia, eles vão torturar nossos pais e os oprimir. Acho que isso só pode ser opressão”, disse Rozinisa. Ela nunca teria deixado o país se soubesse que seus movimentos teriam um impacto em sua família, ela acrescentou.

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Não fica claro no documento por que uma lista de detidos com parentes no exterior foi criada. A VICE News falou com vários uigures na Turquia com familiares listados no documento. Eles expressaram raiva, tristeza e culpa por terem sido usados para oprimir seus parentes.

Testemunhos desse ex-detidos geraram manchetes fora da China, e esses relatos assombram Rozinisa. Muitos descreveram os campos como lugares de abuso físico, psicológico e às vezes sexual. Rozinisa teme que a personalidade de Patem e a tendência dela falar o que pensa tenham rendido problemas, e ela imagina se a irmã pode ter sido espancada para obedecer.

Segundo a avaliação, o oficial da comunidade de Patem diz que “seus parentes obedecem os oficiais do vilarejo”. E depois diz que Patem “também mostrou bom comportamento e não representa ameaça”. Eles recomendam que ela seja entregue para o “controle comunitário local”. Esse é um termo que aparece frequentemente nos registros sem mais explicação. Inicialmente, Rozinisa ficou feliz em ver essa parte do registro, mas rapidamente conteve suas expectativas.

“Até ouvir a voz da minha irmão, um telefonema ou uma foto, uma foto da condição atual dela, ou até ouvir a voz dela no telefone, não vou acreditar que os chineses libertaram minha irmã”, ela diz.

Referências cruzadas da identidade de Patem com a base de dados de Zenz revelam mais pistas sobre seu tempo no campo. Ela aparece numa lista de participantes em treinamento vocacional. Segundo o documento, em dezembro de 2018, Patem começou três meses de um suposto treinamento profissional em limpeza de casas na mesma instalação. Depois disso, o documento diz que Patem foi empregada “nas proximidades”. Mas não encontramos mais registros do paradeiro de Patem depois de fevereiro de 2019.

Os vereditos finais de quase 75% dos casos no documento, como o de Patem, sugerem algum tipo de soltura, muitas vezes ligada com um emprego. Mas ser liberado da reeducação não quer dizer necessariamente liberdade.

Segundo os Cabos da China, aqueles que completam a reeducação então são “incluídos” em treinamento vocacional por 3 a 6 meses, e depois disso, “eles não deixam de ser monitorados por um ano”. Relatórios recentes sugerem que os campos estão funcionando para canalizar os detidos muçulmanos da doutrinação ideológica para trabalho forçado.

Quando Rozinisa descobriu que Patem tinha sido mandada para “treinamento vocacional”, ela disse que era difícil imaginar a irmã fazendo trabalho de limpeza. Ela lembra como Patem odiava cozinhar e limpar quando elas eram mais novas. Apesar disso, Rozinisa sentiu principalmente alívio. “Eu estava muito preocupada com ela ultimamente, imaginando se ela estava viva. Se ela realmente teve treinamento, posso pelo menos acreditar que ela está viva.”

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