FYI.

This story is over 5 years old.

Filme

Muito além de Cannes, o longa “Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos” é uma complexa ficção indígena

Filme luso-brasileiro contracenado por índios da etnia Krahô percorreu mais de 50 festivais internacionais e já ganhou mais de uma dezena de prêmios.
Still 07 Chuva
Foto: Divulgação.

Dirigido pela cineasta brasileira Renée Nader Messora e pelo português João Salaviza, Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos ganhou notoriedade após levar para casa o prêmio do júri da mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes em 2018. Na ocasião, a equipe que participou na produção do longa levantou placas vermelhas no tapete vermelho do festival pedindo o fim do genocídio indígena e pela demarcação de terras no Brasil. Após ser aplaudido e premiado em mais de uma dezena de festivais de cinema, o longa finalmente estreia nesta quinta-feira (18) nos cinemas brasileiros.

Publicidade

O filme Chuva É Cantoria na Terra dos Mortos possui um ritmo muito particular. Ele é lento, incerto e tenso ao acompanhar o dilema de Ihjãc, um jovem pai da etnia Krahô, sobre seu futuro. O mundo também não parece ser leniente com Ihjãc. Os bichos da selva gritam para ele, a chuva castiga sua caminhada e as instituições brancas querem a todo custo expulsá-lo da cidade quando este busca um abrigo. “Aqui não é seu lugar,” diz uma voz sem rosto em um posto de saúde. Todavia, Ihjãc não parece ser vítima ao mundo que se desdobra na sua frente. Ele bate o pé, aponta a ignorância dos brancos quanto ao seu destino e faz o que acha melhor para ele e sua família.

“Eu não quero virar pajé,” diz o jovem Ihjãc a um dos velhos da aldeia, localizada no estado do Tocantins. Após a morte do seu pai, Ihjãc recebe a visita do patriarca no meio da noite pedindo que o filho faça uma festa para o fim do luto para que ele possa finalmente ir para a aldeia dos mortos. Sob o som ensurdecedor da selva, Ihjãc confidencia à sua mulher, Koto, que não contou a ninguém sobre a visita do seu pai. Ele teme que outros membros da aldeia achem que ele quer virar pajé. Fugindo do dever, o jovem busca refúgio na cidade dos brancos.

Passando pela longa bateria de entrevistas sobre o filme, Renée e João parecem um pouco cansados de terem que mencionar a passagem por Cannes. “Acho que já deu de falar disso,” diz Renee à VICE. Muito além do tapete vermelho, a história da cineasta brasileira com o povo Krahô começou em 2009 após ela começar um projeto de introduzir o audiovisual na aldeia Pedra Branca dos Krahô no Tocantins.

Publicidade
1555595781579-Still-06-chuva

Foto: Divulgação.

Apresentando câmeras e equipamentos de filmagem aos membros da aldeia, foi criado um coletivo de cineastas indígenas chamado grupo Mentuwajê Guardiões da Cultura que passou a fazer produções próprias sobre a etnia. No curso desses dez anos, os membros da aldeia Pedra Branca passaram a criar por conta própria curtas, reportagens em vídeo e registros dos costumes da própria tribo.

“Teve momentos nesse projeto que foram talvez um pouco frustrantes porque a nossa expectativa era que as coisas acontecessem de acordo com as nossas expectativas. Por exemplo, a questão do equipamento. Eu sempre achava que iria embora da aldeia e o equipamento iria se perder. De fato, algumas coisas se perderam, mas é porque na aldeia existe uma troca de coisas muito intensa. Essa ideia de guardar e acumular coisas não é algo que existe entre eles”, explica Nader. “Os Krahô têm mecanismos muito desenvolvidos de impedir a acumulação.”

A introdução de equipamentos para captação de imagens chegou até a ser visto como problemática para quem observa de fora o projeto."Nós fomos muitos criticados de estar acelerando um contato cultural ou de interferir na cultura deles. Na verdade, o que é interessante é que a introdução de tecnologias não se sobrepõem à mitologia e a cosmogonia deles, pelo contrário, foram subvertidas e transformadas em outra coisa. (…) Os pen drives, por exemplo, contém músicas de cantores Krahô que estão circulando por todas as aldeias," diz João.

Publicidade

De fato, rapidamente os Krahô perceberam que através da captação de imagens eles poderiam eternizar histórias contadas pelos velhos, registrar a maneira correta de fazer uma festa ou denunciar problemas como o alcoolismo e falta de água nas aldeias. Antes do filme, o coletivo produziu um curta chamado Tudo Por Um Litro contando a história de um índio krahô que perde a namorada por causa do alcoolismo. O curta passou a ter uma grande circulação entre aldeias, inclusive de outras etnias, e foi uma forma eficaz de falar sobre um problema que persiste entre muitas comunidades indígenas.

Já a ideia do filme foi se construindo mais tardiamente, de forma natural, quando um dos membros do coletivo passou uma história parecida com a de Ihjãc. “O pai não tinha morrido, mas ele sofreu um feitiço e achou que se ficasse na aldeia iria morrer. Ele vai para cidade e fica um ano morando na casa do Victor, que fez o som do nosso filme,” conta Nader. “Enfim, eu acho que isso foi um ponto de partida, mas realmente não sei dizer que houve um clique e decidimos fazer um filme. (…) Essa história foi surgindo pra gente. É que nem o Krahô fala que tudo acontece pra eles. Nada acontece espontaneamente.”

João, Renée e a equipe de filmagem passaram sete meses filmando o longa contracenados por membros da aldeia. “Esse desejo de fazer o filme foi sempre acontecendo em paralelo com esse trabalho que iam sendo feitos com o grupo. Nós só paramos de fazer durante a rodagem do Chuva e os membros do coletivo foram seguindo com as suas produções autônomas”, diz João.

Ao contrário de exemplos cansativos do cinema brasileiro, o longa não cai em armadilhas atraentes ao retratar o jovem indígena como um pobre personagem sem agência das suas vontades e seu destino. É uma ficção pensada pelos próprios krahôs, que não necessariamente atende à obrigação de retratar a etnia como um todo através de um só personagem ou obrigatoriamente contar didaticamente cada problema social que povos indígenas passam no Brasil.

Chuva É Cantoria da Aldeia dos Mortos estreia nesta quinta-feira, 18 de abril, nos cinemas brasileiros após percorrer mais de cinquenta festivais internacionais e obter 11 prêmios.

Siga a VICE Brasil no Facebook, Twitter, Instagram e YouTube.