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Fotos pela autora.
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Por dentro do Thrash Zone, um bar de metal no Japão que só vende 'cerveja extrema'

Em 2006, não existia um lugar no Japão pra ouvir riffs de estourar os tímpanos bebendo cerveja com gosto da água de bong do inferno. Aí Koichi Katsuki entrou no jogo.
Hilary Pollack
Los Angeles, US
MS
Traduzido por Marina Schnoor

Aquele tipo de moleque procurando emoção pode encontrar catarse para sua angústia adolescente nas primeiras notas do disco Ride the Lightning de 1984 do Metallica. Koich Katsuki encontrou um sentido pra sua vida.

Como muitos adolescentes nos anos 1980, Koichi se interessou por heavy metal quando os amigos começaram a emprestar álbuns com capas de esqueletos, pregos, couro e mullets. No Japão, onde Koichi cresceu, você podia alugar discos em locadoras por 200 ou 300 ienes cada – um décimo do custo de comprar um. Enquanto as baladas tristes de Yosui Inoue e o rock jazz de Akira Terao ficavam no topo das paradas japoneses, ele ouvia Killers do Iron Maiden e Screaming for Vengeance do Judas Priest, aí ele começou a mergulhar fundo nas prateleiras atrás de riffs mais pesados, berros mais profundos e histórias mais épicas de inferno, monstros e guerra.

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“Eu precisava de algo mais, ah… intenso”, lembra Koichi, enquanto nos sentamos no Thrash Zone, sua cervejaria e bar em Yokohama, uma cidade portuária ao sul de Tóquio. “Mais rápido, mais pesado. Aí finalmente conheci o Metallica.”

O gosto musical de Koichi combina com seu gosto em cerveja. O slogan do Thrash Zone diz tudo: APENAS CERVEJA EXTREMA. É um tanto complicado achar o bar, um buraco numa parede na área residencial da cidade, marcado apenas com uma pequena placa pendurada e um amplificador Marshall na porta.

Batizado com o nome do seminal álbum de 1989 do D.R.I., o Thrash Zone é um bar de cerveja, mas também um santuário do metal. Uma das paredes é coberta de filipetas xerocadas de shows de punk e metal, e as fontes e imagens nos cartazes, copos e porta-copos foram tiradas do Black Flag e Bad Brains. A parede no fundo parece uma pilha de amplificadores; as estantes têm centenas de discos e DVDs como American Hardcore e Slayer: Live in Montreux. Como um gesso gigante virado do avesso, o interior do bar é cheio de mensagens e desenhos deixados pelas bandas em turnê que pararam aqui para tomar uma breja, ouvir um som ou ambos – além de tags de cervejarias importantes como Ballast Point e Coronado. (Exemplo: “PUTA CERVEJA BOA. CONTINUE INDEPENDENTE”, escrita por Barney Greenway do Napalm Death.)

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O Thrash Zone não serve qualquer cerveja; aqui é o altar para as cervas mais amargas e brutais do mundo. Os sabores podem ser maltados e ricos como uma colherada de cacau em pó puro, com tanto lúpulo que parece que você fumou um beck, ou tão azedos quanto mascar uma folha de um limoeiro.

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Quando passei lá, eles tinham 14 cervejas nas torneiras; oito eram do próprio Thrash Zone, com nomes como Speed Kills, Hop Slave e World Downfall Stout. Elas são feitas numa cervejaria próxima e só são vendidas aqui (e em outro bar Thrash Zone, a alguns quilômetros daqui, onde eles também servem almôndegas). A maioria tem de 7 a 10% ABV; uma barley wine, Aru-Chu Ale, tem 13%. As pilsens japonesas têm cerca de 5%, então uma pint dessas cervejas vai te deixar de duas a três vezes mais bêbado que uma latinha de Sapporo. E enquanto as India pale ales normalmente têm 60 IBUs, ou International Bitterness Units, a maioria das servidas por Koichi tem mais de 100.

Pode parecer uma história simples: garoto escuta metal; garoto se apaixona pelo metal; garoto vira homem; homem descobre que também curte cerveja; homem abre uma cervejaria heavy metal. Mas o caminho de Koichi até o Thrash Zone só pode se manifestar através de verdadeira obsessão. Uma das delas, como você já percebeu, é metal pesado no talo. A outra é cervejas bizarras. E para fazer o Thrash Zone virar realidade, Koichi teve que fazer sacrifícios e abrir caminhos que antes não existiam.

Nos EUA, por exemplo, cervejarias voltadas para o punk rock não são difíceis de encontrar. Mas pelos padrões japoneses, Koichi não está exagerando quando chama suas cervejas de extremas; cervejas artesanais são relativamente um nicho no Japão, com as vendas representando apenas 2% do mercado em 2018. Bares de cerveja artesanal estão se tornando mais comuns no país agora, mas são poucos e distantes mesmo em grandes cidades como Tóquio; quando Koichi abriu o Thrash Zone em 2006, cervejas desse tipo era quase impossíveis de encontrar.

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“Na época, nos 80 [quase 90], esse tipo de cultura era obviamente para os fora da lei, ou para os antimainstream”, ele explicou. “Outsider. Raivoso.”

Usando uma blusa de gola rolê, óculos de aro fino e uma touca de tricô – sem jaqueta de couro ou moicano, apesar de seu cabelo comprido entregar uma tendência alternativa – ele parece um cara maduro e educado, profissional e relaxado, quase tímido. É difícil imaginar que esse cara tocou numa banda punk chamada Ministry of Ignorance por 10 anos. (Ele também tocou no Dictator, e atualmente é parte do Marubellmen.) Enquanto eu bebia uma ale vermelha com gosto de cardamomo e cheiro do papel de parede da casa da minha vó fumante compulsiva (de um jeito bom), Koichi me contou seu caminho até o Thrash Zone.

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Quando entrou na universidade, Koichi começou a tocar em bandas punk. Isso foi no começo dos anos 90, muito antes de bandas japonesas de rock experimental como Boris, Merzbow e Boredoms entrarem para a consciência cultural coletiva, e ele logo percebeu que sobreviver tocando música pesada era quase impossível. “Na época, nos 80 [quase 90], esse tipo de cultura era obviamente para os fora da lei, ou para os antimainstream”, ele explicou. “Outsider. Raivoso.”

Em 1995, Koichi se viu arrastado para a cultura do salaryman do Japão, com sua ética de trabalho tediosa de terno e gravata. Tirado de sua grande paixão por pressão de ter sucesso financeiro, ele aceitou um emprego na Nippon Oil, uma empresa petroleira “grande, grande” e “muito conservadora” na cidade costeira de Osaka, e logo percebeu que curtir riffs bombásticos não seria algo útil para colocar no CV. “O papel não era o meu verdadeiro eu”, ele suspirou. “Como um segredo.”

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Enquanto seus 11 anos na empresa lhe renderam pouco gratificação, tinha um ponto positivo no trabalho: ele ficava perto de um bar de cerveja. Como por destino, esse não era qualquer bar onde empresários relaxavam tomando algumas rodadas de Asahi. Era o Minoh, uma cervejaria pioneira de cena de cervejas artesanais do Japão.

No Japão, quase 95% das cervejas vendidas são lagers. The Big Four reinam supremas, e as políticas do governo permitem que elas mantenham grande controle do mercado. Microcevejarias eram até proibidas no Japão até 1994, e o primeiro boom de cervejas artesanais sofreu para superar o processo bizantino de licenciamento e um público muito mente fechada. Os sabores amargos das cervejas artesanais tão populares nos EUA há anos, eram considerados desafiadores para quem só bebia as pilsens familiares. Minoh, que abriu em 1997, resolveu investir em variedades encorpadas como dark lagers e stouts. O bar também era comandado por uma mestre cervejeira, uma raridade no Japão até hoje.

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Em 2006, Koichi largou seu emprego para correr atrás do sonho de abrir seu próprio bar. Desde a concepção, a ideia era servir cerveja artesanal – nada daquele lixo mainstream. Ele escolheu Yokohama porque apesar de ser a segunda maior cidade do Japão, com uma população de quase 4 milhões de pessoas, não havia nenhum bar de cerveja artesanal na cidade.

Andrew Balmuth é o fundador e COO da Nagano Trading Company, uma das primeiras distribuidoras a ajudar Koichi a importar cervejas americanas “extremas” para o Japão, e depois para o Thrash Zone. Eles se conheceram em 2006, um pouco depois que Koichi largou a vida de salaryman, e trabalham juntos há mais de uma década. Foi Balmuth que ajudou Koichi a encontrar as cervejas saborosas e diferentes que ele queria servir (e, claro, beber).

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“Tudo nas cervejas dele é como sua música, então suas cervejas precisavam ser IPAs extremas.”

“Essas IPAs intensas, de alto sabor e alto teor alcoólico eram muito, muito raras no mercado”, me disse Balmuth por telefone de seu escritório em Yokohama. “Tudo nas cervejas dele é como sua música, então suas cervejas precisavam ser IPAs extremas.”

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Nos primeiros anos, o Thrash Zone serviu qualquer cerveja “extrema” em que Koichi conseguisse colocar as mãos. Mas logo ele pegou o vírus cervejeiro. Esperar cervejas importadas se mostrou tedioso; a jornada entre EUA e Japão é feita de navio, e leva semanas. “Achei que precisávamos de algo mais fresco e de mais alto nível. Ao mesmo tempo, posso ajustar o sabor”, ele diz. “Foi por isso que comecei a fazer minha própria cerveja.”

Com um pouco de criatividade – Koichi comprou seus tanques de metal num leilão de peças de segunda mão, e construiu boa parte do equipamento sozinho – ele criou um kit próprio pela metade do valor gasto pela maioria dos produtores. “Na época, o custo médio para abrir uma cervejaria era por volta de 100 milhões de ienes ($1 milhão). Mas enquanto eu estudava sobre produção, notei que um sistema simples era suficiente para construir uma cervejaria de pequena escala”, ele diz. Em 2009, ele se inscreveu para ter a licença de produtor, e finalmente a recebeu dois anos depois.

Enquanto esperava, ele cruzou o oceano para o mundo de Oz da cerveja experimental: Califórnia. Ele visitou cervejarias artesanais que estavam surgindo como mato lá: Sierra Nevada, Bear Republic, Coronado, Ballast Point; ele pesquisou a costa e rodou por Bay Area, San Diego e Portland experimentando todas as cervejas que encontrava. Suas favoritas eram as super-amargas de lúpulo – as pale ales e double pale ales, cervejas um pouco mais difíceis de beber comparadas com aquelas que seus amigos cresceram bebendo.

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O sensação que Koichi teve bebendo as IPAs da Costa Oeste o lembraram de sua reação a outra exportação da Califórnia: Metallica.

“É isso! Igual o Metallica!”, ele lembra de pensar. “A cerveja do Metallica. O Metallica das cervejas.”

Quando ele finalmente recebeu sinal verde para começar a produzir sua própria cerveja em 2011, era essa ousadia que ele queria emular. Ry Beville – fundador e editor da Japan Beer Times, uma revista sobre cerveja bimestral e bilíngue – lembra da infância do Thrash Zone, e do estilo de produção de Koichi, como subversivos e emocionantes.

“Estávamos nos primórdios da cerveja artesanal no Japão”, Beville me disse de sua casa atual na Califórnia. “Ele pensava muito fora da caixa, tanto na época como agora. Seu lugar era ser famoso como um dos únicos lugares onde você podia beber essas cervejas.”

A primeira cerveja de Koichi foi a Hop Slave, uma Imperial double IPA e uma colaboração com uma cervejaria chamada Atsugi. Como Koichi disse uma vez a JBT: “Fazer double IPA como sua primeira cerveja é como aprender death metal na sua primeira aula de guitarra”. A Hop Slave já foi descrita como “resinosa” e com “toques de pinho” – como “uma incrível bomba de lúpulo e citrus” ou um soco de marmelada com resina.

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A cerveja que Koichi estava fazendo não se destacava só por ser lupulada e amarga; também era uma referência ao boom de IPA da Costa Oeste americana dos anos 90. “Era meio como um retorno para 15, 20 anos atrás – elas pareciam old school, mas deu certo”, disse Beville. “Mesmo outros cervejeiros dos EUA que visitam o bar dizem 'Isso é loucura… e é incrível!' Não conheço outra cervejaria como a dele no Japão. Tem algo muito punk no estilo de produção dele.”

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O Thrash Zone não é pra todo mundo. Músicos em turnê e connoisseurs de cerveja são os visitantes mais frequentes, e funcionários de escritório não são incomuns nas noites de semana – locais, diz a regra, são os clientes mais importantes.

“Se meu estilo de vida é antimainstream, o sacrifício será o dinheiro”, explicou Koichi, dando de ombros.

Mas o que Koichi realmente quer é que seu bar seja um ponto de encontro para nerds de música e obcecados por cerveja, gente que precisa de um paraíso para ouvir os deuses das guitarras e beber cervejas tão lupuladas que têm gosto de café velho e fósforo molhado, ou tão amargas que lembrem suco de abacaxi com vinagre caro. Se quiser participar, você tem que seguir as regras do Thrash Zone, que você encontra nas paredes do local e em inglês no site, que atualmente está fora do ar. (Koichi está tentando colocar o site de volta no ar, mas diz que não é “muito bom nesse tipo de coisa”.)

1) FAÇA VOCÊ MESMO = D.I.Y.

2) ATITUDE ANTIMAINSTREAM

3) POLÍTICA DE PRIORIDADE DOS LOCAIS

Koichi vê muitos paralelos entre o punk rock e fazer cerveja: a camaradagem entre cervejeiros, parecida com a de bandas em turnê; o forte etos DIY; o respeito pelos outros no jogo. E há a ênfase compartilhada na arte acima do lucro. Koichi mantém seus preços baixos – quase chocantemente baixos, considerando as grandes quantidades de lúpulo e malte exigidas em seu processo de fabricação. Balmuth também aponta porque Koichi nunca acrescenta cervejas nas suas torneiras porque acha que vão vender bem: “Ele escolhe as cervejas com base em seus próprios critérios tácitos, do jeito dele”.

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Koichi pode ser um cavalheiro, mas não faz concessões. “Se meu estilo de vida é antimainstream, o sacrifício será o dinheiro”, explicou Koichi, dando de ombros. Mas ele fez outros sacrifícios também. Como muitas pessoas no Japão, Koichi, agora com quase 50 anos, não caiu nas armadilhas tradicionais da vida adulta – casamento, filhos – para focar em sua paixão. Segundo o CIA World Factbook, a meia idade no Japão é 46 anos, e o ministério de bem-estar social japonês prevê que em 2035, mais de um quarto da população masculina do país terá renunciado ao casamento em sua idade fértil.

Mas para alguém que escuta heavy metal e hardcore o dia inteiro, Koichi parece zen pra caralho. (A cerveja deve ajudar.) Mas tem uma coisa que claramente o irrita: mesmo idolatrando a cena de cerveja artesanal da Costa Oeste, ele não curte como cerveja artesanal se tornou um grande negócio nos EUA, e ressente como alguns cervejeiros transformaram a contracultura em lucro.

“Cerveja pertence à cena de contracultura”, ele me disse enfaticamente. “A música, a cerveja – cerveja é contracultura. Eles estão fazendo isso, como se diz… só pelo dinheiro? Ou, sei lá, 'Ah, isso é chique?'”

“Ah, os posers”, respondi.

“Posers! Sim!”, gritou Koichi, rindo alto.

Recentemente, ele teve uma grande conquista colaborando com o supergrupo de powerviolence temático de cerveja Trappist para um “turnê de cerveja e punk hardcore”, para qual o Thrash Zone fez uma cerveja especial (chamada Shout at the Duvel) para servir nos shows da banda no Japão. “Pra mim, foi uma grande experiência”, ele disse num e-mail recente. “Como realizar meus sonhos.”

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Koichi, o Trappist e a equipe do Minoh. Foto cortesia de Chris Dodge.

Chris Dodge, vocalista e baixista do Trappist, também tem uma coluna sobre cerveja no Decibel (chamada “No Corporate Beer”) e já tocou em bandas lendárias de hardcore como Spazz e Infest. Ele também vê Koichi como uma figura única – profundamente apreciado pelo pessoal do circuito internacional de cerveja.

“[Koichi] é um pioneiro”, Dodge me disse por telefone. Segundo Dodge, o cruzamento entre cerveja artesanal e a cena de música pesada é natural. “[O Thrash Zone] me mostrou que há pessoas como eu, empolgadas com música extrema e boa cerveja. Koichi é um cara muito legal e pé no chão, e ele gosta mesmo de conhecer pessoas com a mesma mentalidade – muito DIY, muito de base.”

Enquanto seu bar continua escondido e despretensioso, não há dúvida sobre a influência de Koichi no mundo da cerveja artesanal japonês. Depois que o Thrash Zone abriu em 2006 e começou a importar e depois produzir ales altamente lupuladas e cervejas da Costa Oeste americana, Koichi se tornou o cara para procurar para outros bares de cerveja artesanal tentando seguir seu exemplo. Um relatório da USDA do ano passado mostra que enquanto o consumo de cerveja no geral está declinando no Japão, o mercado de cerveja artesanal quase quadruplicou.

“Andrew Belmuth sempre aproximou o pessoal da cerveja lá, e de lá, a popularidade vai se espalhando. Acho mesmo que ele influenciou o início dos bares de cerveja artesanal, e encorajou outros a sentir que podiam fazer isso”, disse Beville. “Eles viram o Thrash Zone e pensaram 'Tenho uma chance'.”

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Koichi está feliz em cuidar de seu pequeno bar. Balmuth disse que já passou algumas vezes lá quando o Thrash Zone estava vazio, e o encontrou ensaiando com sua guitarra, tocando riff pesados pras paredes.

“De certa maneira, essa é a igreja dele. Sua casa”, Balmuth disse sobre a experiência do Thrash Zone. “E ele quer que continue assim.”

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