O Novo ‘Deus Ex’ É a Melhor Obra a Tratar do Papel dos Ciborgues na Sociedade
Crédito: Deus Ex: Mankind Divided/Eidos Montréal

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Tecnologia

O Novo ‘Deus Ex’ É a Melhor Obra a Tratar do Papel dos Ciborgues na Sociedade

O novo shooter ciberpunk da Eidos explora nosso medo e nosso otimismo quanto aos implantes cibernéticos.

Lá pela metade da demonstração que assisti de Deus Ex: Mankind Divided, implantes cibernéticos de um personagem entram em curto-circuito. O homem se contorce em agonia diante de mim. Seus músculos artificiais saltam de seu peito e pescoço, como se tentassem escapar de seu hospedeiro. As peças então caem aos meus pés, raivosas.

A cena remonta velhos pesadelos de escritores de ficção científica: invasões e falhas em dispositivos implantados. Mas não se trata apenas de distopia. O novo jogo da Eidos Montreal oferece uma fantasia ciborgue similar a de filmes como Ghost in the Shell; dá para se divertir ao sair feito louco como um cara que tem tasers no lugar dos nós dos dedos, visão que atravessa paredes e um smartphone dentro do crânio.

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Com o cenário se desenrolando há poucas décadas no futuro, Mankind Divided explora as maravilhas e horrores de um mundo em que tal tecnologia é onipresente. O game se deleita nas capacidades de um corpo em parte mecanizado, mas também mostra como um temor oculto daqueles com implantes pode polarizar a sociedade.

Com lançamento marcado para este ano, o game mais recente da série Deus Ex tem mais uma vez Adam Jensen como protagonista. Ele é um chefe de segurança corporativa que assume o papel de agente contraterrorista e seu acesso a uma série de implantes é de fazer chorar. No desenrolar do modo história, você pode escolher que características de Jensen quer melhorar — próteses de retina, por exemplo, analisam a linguagem corporal da outra pessoa e ajudam a decifrar diálogos com outro personagens; já a epiderme artificial gera uma camada de plástico à prova de balas.

Ok, sistemas de desenvolvimento de personagens como esse não são novidade em games — comparações podem ser feitas a títulos distantes como Skyrim e Mass Effect —, mas talvez Mankind Divided seja o que dispõe de relação mais rica com a ficção ao seu redor. O enredo se passa depois de um surto psicótico em implantes desencadeado por um sinal de áudio transmitido ao final de Deus Ex: Human Revolution, de 2011. O game retrata uma espécie de "apartheid mecânico" em que ciborgues são mantidos em guetos pelo governo para acalmar uma população paranoica.

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Crédito: Deus Ex: Mankind Divided/Eidos Montréal

Isso é pouco mais que especulação: é a reflexão de ansiedades presentes sobre o papel do ciborgue dentro da sociedade. Como muito se comenta, "organismos cibernéticos" de todos os tipos estão ao nosso redor há décadas: de iPads à bengalas com marca-passos, nossas vidas são permeadas e alimentadas por dispositivos eletrônico a tal ponto que é compreensível que ninguém perceba a influência até que algo dê errado. Processamos as implicações sociais e políticas de uma vida inseparável e dependente das operações de uma máquina.

O game representa os ciborgues como seres altamente vulneráveis

A ideia de uma ruptura violenta entre humanos comuns e melhorados é perturbadora e bem plausível. O professor e autoproclamado "primeiro ciborgue do mundo" Kevin Warwick, da Universidade de Reading, na Inglaterra, me disse via e-mail que implantes mais triviais como chips de identificação por rádio não afetarão drasticamente nosso mundo, mas se mostrou incomodado com a possibilidade de discórdia por causa de modificações cerebrais que melhorem o intelecto ou permitam a comunicação direta de pensamentos via internet.

Crédito: Deus Ex: Mankind Divided/Eidos Montréal

Michael Cook, pesquisador do departamento de computação da Goldsmith, também na Inglaterra, comentou que as novas tecnologias tendem a reforçar as divisões econômicas existentes. Ele adicionou que a indústria tecnológica "está menos interessada onde fica o ponto de partida para todos".

No mundo de Mankind Divided, porém, a preocupação não é que os ricos e poderosos usem os implantes para aumentarem seu controle sobre o status quo. O game representa os ciborgues como seres altamente vulneráveis — dependentes do mercado e seus padrinhos políticos para ter acesso a medicamentos que previnam a rejeição de implantes sujeitos à hacks comportamentais por meio de conexões sem fio.

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Crédito: Deus Ex: Mankind Divided/Eidos Montréal

Mais uma vez, é mais do que simples fantasia. Adam Wood, desenvolvedor de software que ajuda na manutenção do blog Stop The Cyborgs, argumenta que "é um erro pensar que os ciborgues necessariamente serão mais poderosos que os humanos comuns". Ele destaca que os ciborgues correm o risco de perder o controle sobre seus corpos ao implantarem dispositivos sujeitos à patentes restritas de fabricantes e que possam ser ligados à redes expostas a algum tipo de vigilância ou sujeitos à alterações.

Certamente é crível que um governo tente infringir as liberdades de um cidadão-ciborgue. Observemos o caso de Neil Harbisson, artista com raro problema ocular que usa um "olho ciborgue" capaz de traduzir ondas de luz em sons, o que lhe permite "ouvir" as cores. Durante um protesto em 2011, o Sr. Harbisson foi surpreendido pela polícia que confundiu o dispositivo com uma câmera, como o próprio comentou com a BBC, posteriormente.

Crédito: Deus Ex: Mankind Divided/Eidos Montréal

Os games são feitos para relatar a ascensão dos ciborgues porque eles também podem ser chamados de peças de tecnologia cibernética.

Obras como Deus Ex não são substitutos para a revisão de políticas, mas são uma forma de se começar um diálogo sobre mudanças culturais problemáticas. O tema do transhumanismo surge com frequência em Mankind Divided, mas seu verdadeiro triunfo talvez esteja em tratar tal tensão na sua arquitetura e no seu design. Ao conversar comigo após a demonstração, o diretor de arte Martin Dubeau falou sobre como a estética do game reflete tanto o otimismo quanto o temor em torno das modificações cibernéticas.

Por um lado existem designs divertidos, belos e atenuados de uma suposta "ciber-Renascença" —há uma série de tubos de luz que evocam as asas de Ícaro, herói mitológico grego e ciborgue primordial. Por outro, há as estruturas enormes, funcionais e com jeito de fortaleza de um "feudalismo corporativo" opressor e amedrontador. "Sempre temos este confronto", comentou Dubeau. "Diria que 90% do game é feito com base nos dois estilos. Há sempre elementos de um ou outro."

Crédito: Deus Ex: Mankind Divided/Eidos Montréal

Os games são feitos para relatar a ascensão dos ciborgues porque eles também podem ser chamados de peças de tecnologia cibernética. Dispositivos ou interfaces como controles, HUDs e óculos de realidade virtual são extensão de nossos corpos que permitem que tarefas sejam desempenhadas no reino digital. Como exercícios recreativos, porém, os games raramente nos encorajam a pensar sobre onde uma proximidade cada vez maior entre organismo e mecanismo nos levará. Precisamos de mais ficções como a de Deus Ex —uma franquia com raízes nos anos 2000, mas que nunca pareceu tão relevante — para preencher o panorama.

Tradução: Thiago "Índio" Silva