​As Campanhas Antitabagismo Podem Fazer Você Fumar Mais
Crédito: Kênia Castro/Flickr

FYI.

This story is over 5 years old.

Tecnologia

​As Campanhas Antitabagismo Podem Fazer Você Fumar Mais

Quem afirma é um psiquiatra brasileiro que revisou mais de 600 artigos relacionados aos fumantes.

O grande mérito das campanhas antitabagismo é ajudar as pessoas a parar de fumar, certo? Não necessariamente. Na real, elas podem causar efeito contrário em muitos que buscam largar o vício, segundo um artigo publicado há pouco no jornal Social Science & Medicine.

Numa revisão e análise de mais de 600 artigos relacionados ao tabagismo e à marginalização dos fumantes, um grupo de acadêmicos dos EUA, Brasil e Alemanha investigou até que ponto quem fuma está consciente dos estereótipos negativos do hábito – e o quanto os aplica para si.

Publicidade

Os resultados indicam que, em alguns casos, as políticas de saúde pública direcionadas aos fumantes podem tornar mais difícil o processo de largar o tabaco, causando sentimentos de raiva e baixa auto-estima nessas pessoas. Em outras palavras: o tiro das campanhas antitabagistas pode sair pela culatra.

Segundo a análise, as propagandas reforçam um estigma em torno dos fumantes que gera consequências negativas como recaídas, maior resistência a desistir, isolamento social e níveis de estresse maiores. E o pior: o medo de ser julgado de forma pejorativa pode levar os indivíduos a evitar tratamentos para sua condição de fumante e a sentir vergonha de fumar em público.

Um dos estudos incluídos na revisão mostra que 30-40% dos fumantes sentem altos níveis de desaprovação da família e rejeição social do meio em que vive, e 27% se sente tratado de forma diferente pelo fato de fumar. Outra pesquisa diz que 39% dos fumantes acreditam que as pessoas fazem pouco deles.

"Alguns países estão aceitando mais o hábito de fumar Cannabis do que de fumar tabaco"

Enquanto há algumas décadas o fumante era considerado "descolado" e "misterioso" (como a imagem do "Marlboro Man"), os atuais tabagistas usaram palavras como "leproso", "má pessoa" e "patético" para descrever seu próprio comportamento.

Para entender melhor como se dá o processo de efeito reverso das campanhas anti-fumo e o estigma em torno dos fumantes, conversamos com o um dos idealizadores da revisão, o psiquiatra e professor afiliado da Faculdade de Medicina do ABC, João Mauricio Castaldelli-Maia.

Publicidade

MOTHERBOARD: Você fez uma análise gigantesca sobre preconceitos contra fumantes. Uma curiosidade para o começo da nossa conversa: você fuma?

João Mauricio Castaldelli-Maia: Sou ex-fumante. Hoje tenho 36 anos, mas fui fumante diário dos 16 aos 24 anos. Particularmente não vivi essa pressão para parar de fumar. O que mais me motivou a parar foi a faculdade de Medicina. Vi muita doença lá por conta do cigarro, isso me pegou muito. Parei entre o 4º e 5º de curso.

E o que motivou você a fazer essa análise?

Bem, desenhei junto com a Sara E. Evans-Lacko, a outra autora, o estudo que, na verdade, foi uma revisão. A ideia era pesquisar o auto-estigma dos fumantes na literatura científica. Tínhamos uma hipotese de que esse tipo de estigma poderia não ser benéfico para o fumante. O estigma, em grande parte das vezes, não é benéfico mesmo, mas, no tabagismo, você tem uma pressão muito grande da mídia, desde 1964 nos EUA, para as pessoas pararem de fumar. Ela é bem justificada, as pessoas tem que ser alertadas do malefício do cigarro, porém, a nossa questão é o fato de muitas pessoas não conseguirem parar e, bombardeadas pelas campanhas, começarem a ter um sentimento interno de culpa, de baixa auto eficácia. Elas começam a se sentir estigmatizadas pela sociedade.

Qual seria exatamente o estigma dos fumantes?

Para explicar, você tem algumas divisões dos tipos de estigma. Um é o estigma que chama percebido, em que a pessoa percebe que as outras pessoas estão a segregando. O outro seria o auto-estigma, que é do tipo: "eu imagino que as pessoas estão me segregando, que as pessoas não gostam de mim, da minha presença". Eles são diferentes, pois uma coisa é você notar que realmente está tendo um preconceito, outra coisa é você antecipar isso na sua cabeça. E, no nosso caso, trabalhamos com esse preconceito antecipado em decorrência da pressão para se parar de fumar. A questão do banimento do tabaco em locais públicos, por exemplo, é uma tática boa, mas vai gerando, aos poucos, uma segregação. É uma questão problemática, já que tem o lado positivo da campanha, da pressão. Muitas pessoas param de fumar por causa disso…

Publicidade

Então as campanhas antitabagismo podem ser eficazes?

Sim, sem dúvida. Mas existe uma outra parte que é como se fosse um resto. São pessoas que talvez tenham mais dificuldade em parar, que possuem maior nivel de dependência ou que, por outro determinante, vão ficando com sentimentos negativos. Isso é muito marcante nos lugares onde há a pressão para parar de fumar. Tem países que aderiram mais esse pacote da OMS (Organização Mundial de Saúde) que prevê a implementação de uma série de medidas para não fumar em locais públicos.

O Brasil é um dos países que adota mais ou menos essas medidas?

O Brasil adota bem. O Brasil recebeu até um prêmio da Fundação Bloomberg por ter as ações contra o tabagismo e disponibilizar medicações e serviços para as pessoas pararem de fumar. No Brasil, a gente tem hoje uma prevalência de tabagismo até baixa comparado a outros países. Fica em torno de 13% enquanto a Argentina está em 20%. Estamos bem nisso aí, mas a maior parte dos dados que a gente pegou foi de países desenvolvidos, porque a maioria dos estudos sobre estigma e auto-estigma foi feita em países desenvolvidos.

Uma das primeiras coisas que pensei quando li os dados da pesquisa foi: se as campanhas despertam sentimentos negativos nos fumantes, o sentimentos dos não-fumantes são ainda piores. Procede?

É muito interessante essa sua pergunta. No caso do tabagismo, há uma mudança de percepção, de cultura social. A mídia bombardeia com essas questões do malefício e, principalmente, do fumo passivo. Isso é um ponto que pega porque a pessoa que fuma faz mal para si mesma e para os outros, o que gera uma revolta do não-fumante ou do ex-fumante – temos que lembrar que em torno de 50% da nossa população já experimentou cigarro alguma vez. Agora, o que eu tento remeter é que as pessoas têm que entender que o fumante é um produto também social do século passado.

Publicidade

Como assim?

A gente teve um movimento totalmente contrário a esse que está rolando agora. Em 1910 e 1920, a gente tem as grandes campanhas de propaganda para comprar cigarro. Ele vira um produto industrializado no começo do século e as campanhas se tornam bem agressivas no cinema, com atores, Hollywood, muitos filmes patrocinados pela indústria do tabaco. Cria-se uma geração de fumantes. A gente chegou a ter, por exemplo, nos EUA, mais fumantes do que não-fumantes. Então, a pessoa que nasceu e foi criada depois de 1910 ficou exposta a uma campanha agressiva pra fumar. E depois de 1964, 1970, 80, aí começa o movimento inverso. Só que tem esse grande grupo de pessoas que nasceu nessa época. A sociedade também não pode esquecer isso e começar a segregar.

O que a sociedade pode fazer para evitar essa segregação?

A nossa pressão é contra o tabagismo, não é contra o tabagista. É muito diferente. É contra o hábito de fumar, mas a gente não pode transformar isso num preconceito, temos que entender o que é o tabagismo na sociedade, como ele aconteceu. As pessoas não fumam à toa. As campanhas de marketing foram muito agressivas, a questão do cinema é uma questão sérissima e ela só acabou em 1998, quando teve o acordo entre promotores de tirar do cinema. Até 98, você poderia pagar para algum personagem do cinema fumar determinada marca.

Eu sou fumante. Sinto que, quando vou a qualquer balada ou bar, cada vez mais a gente vai sendo marginalizado. Agora, ficamos quase num chiqueirinho pra fumar.

Publicidade

E existe um exagero que é, por exemplo, você começar a deixar um espaço muito reduzido, sem ventilação para pessoa fumar. Aí começa a lembrar mais um claustro do que propriamente um local pra você poder fumar sem afetar os outros. O problema maior é esse, pois fumar dentro de uma balada realmente faz mal pros outros, mas você pode ter um espaço aberto pra pessoa fumar. Tem locais tipo o aeroporto, que o fumódromo é uma sala fechada, estranho. Aí começa a complicar.

Na revisão, vocês chegam à conclusão de que esse estigma do fumante gera raiva e outros sentimentos negativos…

Sim, porque é igual pegar um adolescente e falar muito pra ele não fazer alguma coisa. A gente tem mecanismos psíquicos que geram a força contrária. Quando insistimos muito para que a pessoa faça alguma coisa que a gente não quer, isso gera uma força contrária. E na pressão para não fumar, às vezes o fumante é tratado como uma pessoa marginal.

A nossa pressão é contra o tabagismo, não é contra o tabagista.

Em que lugar essa marginalização é mais prejudicial?

O fumante, por muitas vezes, se sente segregado no ambiente de saúde. Uma das pesquisas que estão na revisão mostra que as pessoas têm muita vergonha de falar pro médico que é fumante. Isso é terrível. Por que as pessoas não falam que fumam? Elas têm medo de qual vai ser a resposta e de qual vai ser a reação, já muitos médicos foram incentivados com essa coisa agressiva antitabagismo. Tem um lado bom, mas as pessoas não estão se sentindo mais à vontade para falar. Esse é um outro problema seríssimo, pois você perde a chance de orientar de uma forma calma a pessoa, de dizer as opções que ela tem. É igual a questão da dieta, a diferença é que é mais visual. Você tem que orientar a dieta de uma forma educada, sem agressividade. Só que as pessoas nem sempre vão fazer só o que é saudável ou só o que é certo. Muitas coisas que a gente faz são não-saudáveis.

Publicidade

Dá para dizer que existe uma desumanização do fumante?

Sim, muitos fumantes sentem isso. De novo: claro que tem um ponto positivo nas campanhas. Muitas pessoas param de fumar por causa disso. Mas o outro ponto é a questão da qualidade de vida psíquica do fumante. Não que você tenha que deixar de orientar, mas a gente precisa pensar um pouco melhor, entender o fumante como um indivíduo parte da sociedade e ir junto com ele. Isso não significa você fumar ou permitir que fume em locais fechados. É orientar com calma, dar locais decentes pras pessoas fumarem. Daí a pessoa tem a opção. As pessoas têm direitos na vida. Um dos direitos é fumar, é um ato legal. Aliás, com relação ao consumo de drogas e ilegalidade, questiono muito isso. Ainda mais no caso do tabaco. Se voce compra, você tem direito de usar em algum local.

Quando li o artigo, a primeira coisa que me veio à cabeça foi relacionar com o estigma do uso das drogas ilegais…

Você sabe que a maconha, nos estudos de percepção social que têm começado a aparecer, está empatada, mas vai passar o tabaco em termos de aceitação social em alguns países. Alguns lugares estão aceitando mais o hábito de fumar Cannabis do que de fumar tabaco. As coisas dependem muito do momento em que vivemos. Agora a gente vive essa coisa meio liberal em relação à Cannabis, o que eu também acho que tem um lado positivo, mas tem um negativo, pois a gente não sabe muito onde isso vai dar do ponto de vista de doenças físicas. Não sabemos exatamente o que a maconha causa no ser humano a longo prazo. Mas isso pode ser outra reportagem.

Publicidade

O quão eficazes são as campanhas antifumo com imagens de doenças?

Os achados especificamente pra essa questão são mistos. Têm achados que mostram efeitos positivos, outros que dizem que não têm efeito. Mas isso até foi uma questão que as próprias organizações têm reavaliado. Por que se for só pra gerar mal estar, não adianta. Se for algo que realmente motiva as pessoas, aí até pode ser, mas tem que ver o mal estar que se está criando. É igual você fazer um exame para detectar que a pessoa tem uma doença. Se der positivo, tem alguma coisa pra fazer? Tem. Então ok, é ótimo. Mas às vezes não tem o que fazer, então a pessoa só vai saber e não vai fazer nada, só gera mal estar. A crítica é: será que é positivo isso? O resultado é misto, tem locais que mostram que é positivo, outros negativos, mas tem que ficar de olho no mal estar que a gente gera.

Se tem tanto esse estigma com relação ao fumante, por que as pessoas ainda começam a fumar?

Isso depende do local. Tem um paper grande que saiu no jornal da Associação Médica Americana que mostra a prevalência do tabagismo do mundo inteiro – os locais em que as crianças estão começando a fumar, os locais que fumam menos. No Brasil, a gente tem colhido bons resultados. Os jovens têm começado menos a fumar. Maconha eles têm experimentado mais. Tabaco tem diminuido, maconha tem aumentado. Sempre tem uma parcela que experimenta. E essa parcela que experimenta não tem a percepção de vício do tabaco. Essa coisa do cancer de pulmão, pé preto, isso é muito distante do adolescente. Porque realmente é isso são desfechos que vão acontecer na vida do adulto pleno e idoso. Tem sempre aquilo "não vou ficar viciado, vou parar antes" e, na verdade, o cigarro é muito viciante, só perde pros opióides, que é heroína, morfina. Mas das pessoas que experimentam cigarro, em torno de um terço fica dependente. No Brasil, 90% da população experimenta álcool e a gente tem atualmente em torno de 10% de dependentes. No caso do tabaco, 45% mais ou menos experimentam e em torno de 14% são dependentes. Ou seja, é uma relação de 1 pra 3 do tabaco e 1 pra 9 do álcool. O potencial de dependência do cigarro é bem alto. Então as pessoas experimentam nessa visão de que não vão ficar dependentes, de que vão parar.

Na sua opinião, o que é mais eficaz dentre as campanhas?

Uma das coisas que realmente é interessante é a questão do preço do cigarro. Quanto mais alto o preço do cigarro, maior a taxa de pessoas que param de fumar nesse local. Então isso é uma coisa que, apesar de ser uma campanha um pouco questionável do ponto de vista de quem tem mais dinheiro não vai ser tão afetado, é uma das táticas que dá mais resultado. E não mexe tanto com o psicológico. Sim, tem o contraponto de que as pessoas começam a comprar aqueles cigarros contrabandeados, mas dá resultado. E outra solução é disponibilizar serviço de atendimento médico especializado pras pessoas poderem parar, porque, felizmente, a dependência de tabaco tem tratamento, tem remédio, tem terapia específica. Então é muito melhor do que outras dependências.