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Viagem

De Bicicleta Até Chernobyl

O Bjørn Harvig é um dinamarquês que vai de bicicleta pra todo lugar. E quando falamos “pra todo lugar”, não queremos dizer pra casa dos pais ou pro trampo. Estamos falando de viagens de Copenhague até lugares como o Irã, Mongólia ou o Uzbequistão.
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O Bjørn Harvig é um dinamarquês que vai de bicicleta pra todo lugar. E quando falamos “pra todo lugar”, não queremos dizer pra casa dos pais ou pro trampo. Estamos falando de viagens de Copenhague até lugares como o Irã, Mongólia ou o Uzbequistão. Recentemente ele nos mandou sua história de uma viagem que ele fez até Chernobyl e arredores, onde achou umas coisas assustadoras sobre móveis radioativos que tinham sido vendidos por toda a Ucrânia e, mais, os riscos de um desastre maior e iminente que poderia espalhar 35 toneladas de pó radioativo por todo o mundo em instantes.

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Antes de sair de Copenhague, visitei Viktoria e seu marido. Eles são originalmente de Kiev, mas se mudaram pra Dinamarca em 1987. A Viktoria me disse que nunca esqueceria de 26 de abril de 1986. Ela estava com alguns amigos e eles estavam voltando pra casa quando alguns ônibus militares lotados de pessoas passaram por eles na estrada. A priori ela pensava que era um bando de pessoas a caminho de uma festa, ou um casamento, então ela e seus amigos acenaram para eles. Mas os ônibus continuavam a vir. Centenas deles passaram. Milhares de pessoas amontoadas e passando rápido ao lado deles sem expressão. Viktoria tinha certeza que alguma guerra havia começado em algum lugar na União Soviética. Foi na noite que o quarto reator de Chernobyl havia explodido, lançando ao ar material radioativo 90 vezes maior que a quantidade na bomba de Hiroshima.

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Antes de me decidir por visitar a área em volta da usina, muitos ucranianos me perguntaram o que eu queria fazer por lá. Todo ucraniano sentiu as consequências da explosão de uma forma ou de outra, e a maioria prefere deixar o assunto morrer. Talvez seja porque o desastre não tenha afetado a minha vida, mas sinto que é importante não esquecer. Sinto que visitar o lugar me ajudaria a entender o que realmente aconteceu naquela noite de abril – queria entender um acontecimento que era fodido além da compreensão. No livro Chernobyl, 20 Years – 20 Lives do Mads Eskesen, ele pergunta o quanto uma explosão pode durar. Ela cessa quando a última detonação acabar? Quando as últimas chamas são apagadas? Quando a mídia não se importa mais em falar sobre o local da devastação. Queria ver isso pessoalmente.

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Viajando para Chernobyl, passei por vilarejos com casinhas simples e gastas, onde senhoras de idade cuidavam de seus pomares – o tipo de vilarejo que parece ter apenas pessoas mais velhas e crianças o habitando. Logo depois do êxtase rural, expressões concretas de cinco andares de temores provincianos permaneciam arranhando os céus. Algumas roupas penduradas ou algumas flores em um parapeito eram as únicas indicações de que ali tinham pessoas morando atrás das janelas fechadas. As famílias nas pequenas cidades vivem ali sem água quente ou aquecimento por todo o inverno rigoroso da Ucrânia.

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Tive uma sensação estranha no meu estômago quando vi a primeira placa de trânsito para a cidade de Chernobyl. Depois de ler tanto sobre a região, parecia até mesmo um déjà vu. Quanto mais próximo eu chegava, mais abandonados eram os vilarejos. Era como se estivesse entrando em uma zona de guerra.

Depois do desastre, o governo soviético demorou vários dias para informar a população – tanto local quanto internacional – que uma catástrofe havia ocorrido. Alguns cientistas suecos contataram o governo de seu país depois de terem registrado um aumento excepcional nos níveis de radioatividade no ar do norte da Suécia. O governo não sabia de nada sobre o ocorrido, então eles começaram a prestar atenção no seu vizinho gigante ao leste. Nesse momento, o vazamento em Chernobyl já havia gerado uma nuvem que havia tomado a Europa. Li que os territórios ao norte de Chernobyl – hoje conhecidos como a República da Bielorrússia – sofreram com chuvas radioativas nos dias seguintes à explosão. O governo soviético, ignorante quanto às pessoas que sofriam com as chuvas tóxicas, lançou produtos químicos no ar para dissolver as nuvens altamente radioativas, tentando contê-las antes de atingirem grandes cidades soviéticas.

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Fixei minha barraca a 2km fora da área proibida – um espaço do tamanho próximo de Luxemburgo. Aproximadamente 300 habitantes voltaram para casa, apesar da desaprovação do governo. A maioria das pessoas que voltaram eram de idade, moraram em seu vilarejo por toda a vida e não podem comprar uma casa nova.

A área foi cuidadosamente isolada com arame farpado, e militares checam os documentos de todos que passam por ali. As opiniões sobre os danos à saúde de quem visita Chernobyl variam muito. Alguns acham que existe um risco grande de se desenvolver câncer, enquanto outros dizem que não tem mais radiação no local do que uma viagem de avião de Nova York para Londres. Talvez estivesse me enganando, mas pra mim a floresta tinha um cheiro estranho e o solo em volta da minha barraca estava morto.

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Acordei cedo, ansioso e um pouco nervoso. Saber que você vai ficar cara-a-cara com algo que causou uma destruição incalculável é enervante.

Não dá para entrar na área sozinho como turista, então parei minha bicicleta no primeiro posto militar e dei ao oficial mais velho uma garrafa de vodca para que ele ficasse “de olho”. Então fui encontrar o meu guia, Dennis, e nosso motorista, o Boris.

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Assim que entrei no carro, o Boris me perguntou quando tomaríamos vodca, uma cena que resume bem meus companheiros de viagem. Expliquei para o Dennis que não estava terrivelmente interessado em Chernobyl em si, e que queria passar mais tempo na cidade de Pripyat. Pripyat fica a alguns quilômetros de distância da usina e era residência de 60.000 pessoas antes do acidente -- a maioria trabalhava na usina.

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A cidade de trabalhadores de Pripyat me tirou o ar e me fez ficar enjoado. É fascinante testemunhar em o que uma cidade se transforma quando não existe nenhuma pessoa mais ali. Pripyat foi evacuada pelo governo soviético duas horas depois de Chernobyl ter explodido, e as pessoas de lá foram instruídas a apenas levar seus pertences mais necessários. Prometeram-lhes que poderiam retornar para buscar o resto de seus pertences depois, mas a radiação era – e ainda é – tão poderosa que ninguém poderia retornar.

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Nos dias seguintes à explosão, pessoas de Kiev se dirigiram a Pripyat, que foi deixada sem vigilância, e saquearam todas as casas. Materiais de isolamento, assentos de privada, lâmpadas – tudo que tivesse valor foi roubado e vendido em mercados ucranianos aleatórios, e os itens contaminados se espalharam como ondas n’água em toda União Soviética.

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Não existem carros em Pripyat. Nem barulho. Existe apenas a paisagem de uma vegetação que surge onde o asfalto quebra. Havia árvores saindo da escadaria de concreto na praça principal da cidade.

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Fui a um teatro, a um centro de lazer, uma escola, e apartamentos abandonados. Em um apartamento vi um relógio que havia parado às 13h23, o exato momento da explosão. Nos berçários vi bonecas assustadoras cobertas de pó em camas enferrujadas de criança.

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Chernobyl era enorme e feia. É muito louco pensar que a usina não estava completamente selada de verdade até 2001, ou que o sarcófago em seu entorno, construído depois do acidente, começou a cair em 2004. No entanto, um novo sarcófago está sendo construído, como Dennis explica: “Se isso sucumbir completamente, as 35 toneladas de pó radioativo guardados dentro do reator vão se espalhar por todo o mundo rapidamente, e teremos um desastre pior do que aquele em 1986”. O Dennis me contou que quatro mil pessoas trabalham agora na usina, e uma vez que a radiação é tão pesada em algumas áreas, eles trabalham apenas em turnos de 45 minutos.

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Quando Chernobyl explodiu, havia apenas quatro reatores, mas o quinto e o sexto estavam a semanas para serem entregues, e planos para mais quatro serem construídos estavam em andamento. Nessa época, Chernobyl tinha uma das maiores usina nucleares na União Soviética, e, de acordo com Dennis, ainda existem duas usinas em operação na Rússia hoje que foram construídas no mesmo molde da de Chernobyl. Uma dessas usinas fica há poucas horas de distância ao sul de São Petersburgo.

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No meu caminho de volta a Kieve, parei em um mercadinho em Priborsk, 10km de Chernobyl. Depois de um café e várias tentativas de falar com os habitantes locais, fui parar na casa de Tanya e seu marido Mikhali. Eles vivem em uma casa de tijolos escuros, perto da estrada principal, e tivemos que passar por um campo grande e arenoso antes de chegar na porta da sua casa. Um cachorro preso latia para mim e um rádio de carro tocava música pop russa. Em outro canto ficava um banheiro externo com uma janelinha feita na própria porta em formato de coração.

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Tive que andar por um jardim para chegar na entrada de sua casa, e assim que entrei, estava em uma pequena cozinha, adjunta à sala de estar. O chão da sala estava coberto com carpetes coloridos e cortinas com padrões florais na janela. A Tanya tinha um olhar que lembrava uma vida que havia sido vivida. Um olhar de dor e memórias terríveis. Seu marido, Mikhali, passava o tempo tragando diretamente de uma garrafa de goró.

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Sentei no sofá com álbuns de fotografia no meu colo. Eles tinham montes de fotos velhas de duas crianças em um país muito distante de onde estávamos, e demorei um tempo até entender que aqueles eram os dois filhos de Tanya e Mikhali. Foi naquele momento que entendi de onde vinha o olhar de Tanya.

Quando Chernobyl explodiu, seu filho mais velho, Sasha (Alexander), tinha um ano de idade e Tanya já estava grávida de Vasia (Vasily). Para conseguir um futuro melhor para os filhos, os dois garotos foram mandados para serem criados por uma família adotiva na Suíça. Muitas das tais “crianças de Chernobyl” foram mandadas pra fora nos anos seguintes após o desastre. “Nós devemos nossas vidas a eles”, disse Mikhali quando perguntei sobre a família adotiva. Pelo o que entendi, eles não viam seus filhos havia 14 anos e as fotos não lhe traziam muito conforto. Sasha voltou para casa há uns anos e agora mora em Kiev, mas eles sentem falta de suas crianças.

Tanya e Mikhali me deixaram acordado boa parte da noite. Sentamos todos na cama do quarto de hóspedes ouvindo um som enquanto eles me perguntavam sobre a minha viagem de bicicleta. Em dado momento, as barreiras da língua se tornaram inexistentes, apesar de eu falar pouco russo ou ucraniano e eles não falarem inglês algum.

Na manhã seguinte, Mikhali se ofereceu pra me levar de volta a Kiev, mas tive que explicar que preferia voltar de bicicleta, pelo princípio da coisa. Na verdade, já achava que eles tinham feito demais por mim. Eles convidaram um estranho ao seu lar e me deram tudo. Fiquei emocionado quando disse adeus. Olhei para trás algumas vezes. Eles continuaram ali, acenando, até que finalmente fossem apenas um par de pontos escuros, e então eles desapareceram.

TEXTO E FOTOS POR BJØRN HARVIG VICE DK
TRADUÇÃO PARA INGLÊS POR HENRIK SALTZSTEIN VICE DK
TRADUÇÃO PARA PORTUGUÊS POR EQUIPE VICE BR

Se fala dinamarquês, você pode ler mais no livro Igors Æblehave do Bjørn.