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A Plantation Continua Aqui: por Dentro de “Negrogothic, A Manifesto”, de M. Lamar

Tivemos uma conversa com o artista sobre sexualidade, racismo, história, o controle sobre o corpo dos homens negros e todos os outros temas abordados na sua primeira exposição.

Discipline 2. Todas as imagens e vídeos cortesia do artista. 

“A plantation continua aqui. O navio negreiro continua aqui. Só que, hoje, isso são as prisões. Meu trabalho faz essas conexões.” É assim que o artista, músico e performer M. Lamar explica sua provocativa exposição Negrogothic, a Manifesto: The Aesthetics of M. Lamar, em exibição na Participant Inc., Nova York.

Cheia de imagens de chicotes, sadomasoquismo, algodoeiros e uma guilhotina de pênis, Negrogothic, que vai até 12 de outubro, retrata o multifacetado exame de Lamar das contínuas ressonâncias sociais, políticas e sexuais desses traumas históricos. Talvez mais conhecido na cultura pop como o irmão gêmeo de Laverne Cox, que fez a personagem dela, “Sophia”, antes da transição em Orange Is The New Black, ele é um contralto altamente treinado. Com sua música, ele comenta os legados da escravidão, Jim Crow, navios negreiros e linchamentos. Tudo resumido numa destilação calma e bela de influências tão variadas quanto ópera, spiritual, blues e black metal.

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Usando a música como meio de investigação das representações contemporâneas da negritude, masculinidade negra e desejo inter-racial,

apresenta dois vídeos surreais em preto e branco: Badass Nigga, the Charlie Looker of Psalm Zero Remixe Surveillance Punishment and the Black Psyche, Part 2, the Overseer, que mostram Lamar como uma figura negra fantasmagórica, colocando chicotes nas bundas de homens brancos enquanto canta uma canção de amor para um feitor. Além de stills dos vídeos impressos em grandes telas alinhadas nas paredes da galeria, a exposição também inclui vários adereços desconcertantes, vestígios assombrados das filmagens dos vídeos. Além disso, o artista apresentou um novo réquiem intitulado “Tree of Blood”, uma peça narrativa combinando suas músicas sobre linchamentos, no dia 5 de outubro.

Tocando em tópicos que vão do seu desdém por Beyoncé até a hipererotização do corpo negro no filme Django Livre, de Quentin Tarantino – e com muitas citações da icônica feminista negra bell hooks (ou Gloria Jean Watkin), que Lamar chama de “minha Estrela do Norte” –, minha conversa com ele foi esclarecedora e estimulante, principalmente devido à sua coragem absoluta em discutir questões envolvendo raça e sexualidade.

Numa sala nos fundos da Participant Inc., Lamar me disse que batizou a exposição, sua primeira exibição solo, com um termo que ele criou para descrever seu próprio trabalho.

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“Comecei a usar o termo Negrogothic porque estava lendo sobre romances góticos em que há uma mistura de romance e terror. Isso parecia ser o que eu estava fazendo no meu trabalho há muito tempo. E uma coisa mais óbvia: eu sou um garoto gótico. Sou muito investido nas subculturas gótica, do metal e do punk, e as levo comigo.”

Apesar de ser fã da música gótica e de ter tocado em algumas bandas antes de começar sua carreira solo, o artista também sentia uma atração por ópera, particularmente por sopranos negras como Leontyne Price, Jessye Norman e Marian Anderson. “O que elas faziam com a voz era quase ficção científica para mim”, lembra Lamar. “Elas estavam nessa forma muito europeia, mas você conseguia ver que elas tinham vindo da tradição gospel.”

Na concepção de Lamar, o momento definidor de sua habilidade em articular uma crítica social radical, através de um estilo operístico, veio depois de ouvir o álbum Plague Mass, de Diamanda Galás. Ele conheceu o trabalho de Galás através de seu colega de quarto no San Francisco Art Institute. “Foi nesse momento que tudo se juntou para mim: minha raiva desde que eu era criança e a urgência de dizer alguma coisa sobre injustiça numa forma operística”.

Com músicas como “Swinging Low” e “In the Belly of the Ship”, que se referem aos horrores dos linchamentos e da Middle Passage, a música de Lamar revela histórias ocultas ainda presentes na cultura norte-americana, um tema devastador e significativo que se mantém na dianteira de Negrogothic. Apontando Toni Morrison, cujo romance Beloved aparece em Badass Nigga, como uma inspiração para seu próprio trabalho de mineração do doloroso passado norte-americano, ele observou: “Sempre li muito de história e sempre fiquei perturbado com a falta de contribuições de negros, que é uma forma de violência. Sempre quis criar essas narrativas da maneira como Toni Morrison escreve nas margens do que não está escrito na história – todas essas coisas esquecidas”.

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Lamar também se preocupa em expor os aspectos políticos do desejo – particularmente do inter-racial. Usando como exemplo os milhões de resultados para a busca pornô “big black cock”, narradores de basquete que chamam os jogadores de “garanhões negros” e a aparição de Jamie Foxx nu em Django Livre, Lamar afirma: “Sempre digo que os homens brancos têm uma obsessão por corpos negros e pênis negros. Acho que a maneira como os pênis negros operam na imaginação branca é uma ficção. É essa coisa construída com um lugar mítico. Acho que esse é o outro lado da moeda dos homens negros sendo mortos nas ruas, esse tipo de coisa na imaginação dos policiais brancos ou das pessoas brancas no geral. E os negros internalizaram essa ficção do homem negro hiperssexualizado”.

Através de cenas recorrentes de sadomasoquismos e subjugação em seus vídeos e impressões em tela, frequentemente usando o chicote como um símbolo do pênis negro, Lamar mostra como a prática sexual ecoa esses estereótipos, histórias e construções de desejo inter-racial. Ele se identifica como um “homossexual praticante” – rejeitando os aspectos amplamente “burgueses e brancos” do termo gay – e tem um relacionamento feliz de longa data com um homem branco.

“Estive no reino sexual e tenho estado em cenários onde as pessoas estão vivendo várias coisas que ainda não foram discutidas”, explica. “Como um primeiro passo – e ainda estamos, infelizmente, no primeiro passo sobre falar de todas essas coisas –, talvez possamos arranjar um lugar diferente para isso. As pessoas tentam tornar o desejo apolítico. Você não pode controlar quem você ama, mas você pode analisar o porquê.”

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Central para Negrogothic, e talvez o exemplo mais complexo e ilustrativo do exame detalhado do artista sobre a psiquê norte-americana, é seu vídeo Surveillance Punishment and the Black Psyche, Part 2, the Overseer. Segunda parte do que ele espera transformar em um longa-metragem, o vídeo teve origem em seu interesse em combinar as ideias do panóptico de Michel Foucault ao entendimento de Frantz Fanon de racismo internalizado mais o olhar branco. No entanto, o filme ganhou uma abordagem mais concreta quando Lamar descobriu a história trágica de Willie Francis, um adolescente negro sentenciado à morte na cadeira elétrica duas vezes, em 1946 e 1947.

“A primeira tentativa de executar Willie Francis falhou, porque o policial que estava operando a cadeira elétrica estava bêbado”, conta Lamar. “Se ela tivesse funcionado, provavelmente nunca conheceríamos o nome dele. Foi uma punição cruel e incomum. O caso foi para a Suprema Corte e o juiz disse: 'Vá em frente, tente de novo!'. O NAACP  (a Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor dos EUA) começou a conversar com ele e descobriu que o garoto tinha um relacionamento sexual com o homem que era acusado de matar, um cara de 53 anos que tinha uma farmácia. Foi essa história concreta que levou ao desenvolvimento da exposição.”

Fascinado pelo caso, Lamar tentou pesquisar as possibilidades históricas da homossexualidade nas plantations. Encontrando pouquíssima informação sobre o assunto, decidiu criar um reino fictício de desejo histórico em seu vídeo.

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“Meu trabalho investe na ficção”, ele relata. “Não gosto muito de trabalhos documentais. Estou interessado nisso como gênero, mas tem alguma coisa na noção de realidade que acho muito limitadora. Para mim, isso tem muito a ver com a imaginação e o reino imaginário.”

Através dessas dinâmicas imaginadas de desejo e sexualidade, Lamar claramente faz referência às controversas e censuradas fotografias de BDSM de Robert Mapplethorpe, X-Portfolio, particularmente a memorável Self-Portrait With Whip, que retrata Mapplethorpe com um chicote na bunda. Ele admite que é obcecado por comentar a fotografia sadomasoquista de Mapplethorpe, além de suas imagens erotizadas de homens negros em The Black Book. “O uso que [Mapplethorpe] faz do chicote o ecoa como uma pessoa profundamente investida nas noções supremacistas brancas de negritude”, diz Lamar. “Não há evidência, pelo menos pela biografia dele ou considerando seu trabalho, de que ele tenha tido uma relação muito humana com negros ou homens negros, especificamente. Era tudo uma questão de choque.”

Embora outros artistas como Glenn Ligon já tenham abordado anteriormente as fotografias de homens negros de Mapplethorpe, Lamar leva sua crítica um passo adiante, se recusando a reutilizar e reproduzir as imagens problemáticas de Mapplethorpe.

“Nunca quis dar aos espectadores o corpo negro que eles esperam”, destaca. “Mesmo na minha vida, mesmo me identificando como homem, nunca fiz a masculinidade da maneira tradicional. Mas, em termos de trabalho, eu queria que as figuras nesses vídeos e nas imagens quase não fossem atingíveis ou tangíveis – quase como uma figura fantasmagórica. Em 12 Anos de Escravidão ou Django Livre, há todos esses corpos negros nus e esse momento pornográfico que os espectadores conseguem. Eu não queria dar aos espectadores esse tipo de coisa.”

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Outro momento inesperado, mas provocador, em Surveillance Punishment é a aparição de Jamie Foxx durante seu discurso no Oscar de 2004 em que ele agradece sua avó por mantê-lo na linha quando criança, dizendo “E quando eu agia como um idiota, ela me batia”.

“Aqui você tem um momento de grande sucesso para esse homem negro e imediatamente tem a imagem dele apanhando”, afirma Lamar. “Como se houvesse alguma coisa inerentemente errada com as crianças negras, como se elas precisassem apanhar e ser colocadas em seu lugar para ter sucesso.”

Num momento quase chocante de realidade nesse vídeo surreal e atmosférico, a inclusão do discurso de Foxx cimenta ainda mais a tese do artista sobre as conexões inescapáveis entre traumas do passado e a transmissão desses legados históricos. O avô de Lamar cresceu numa fazendo arrendada e estava sempre apanhando, o que o levou a se tornar violento e abusivo com a mãe e a avó do performer.

“Há todo esse transtorno de estresse pós-traumático na vida negra que não é comentado”, acredita. “Eu diria que estamos todos lutando com isso. Acho que há a necessidade de espaços públicos e discursos públicos reais sobre TEPT e suas feridas duradouras.”

“Gosto de pensar que há um senso de grande perda e luto”, acrescenta. “Não conseguimos nem lamentar o suficiente pelos corpos perdidos, os espíritos perdidos, as almas perdidas; bell hooks fala sobre os assassinatos de Malcom X, Martin Luther King Jr. e até Kennedy como essas figuras representassem possibilidades de liberdade. Os níveis de devastação e perda são quase inexplicáveis. Penso na perda particular de possibilidades com essas figuras, as perdas contínuas e as perdas anteriores – todos aqueles que morreram perseguindo a liberdade. E no meu Negrogoticismo, isso será sempre uma grande parte do meu trabalho.”

Negrogothic, A Manifesto: The Aesthetics of M. Lamarfica em exposição na Participant Inc. em Nova York até 12 de outubro de 2014.

Emily Colucci é uma jornalista que vive em Nova York. Ela é cofundadora do Filthy Dreams, um blog que analisa a cultura através de uma perspectiva queer. Siga-a no Twitter.

Tradução: Marina Schnoor