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Entretenimento

Um Trecho Inédito do livro Brasil em Movimento

Um trecho substancial do artigo Purgatório, que o escritor André SantAnna fez pro livro Brasil em Movimento.

Recentemente fizemos uma entrevista com o escritor André Sant'Anna por aqui. Por cortesia da editora Rocco, hoje temos a honra de publicar um trecho substancial do artigo que ele fez pro livro Brasil em Movimento, que é lançado hoje. É uma coletânea de textos, entrevistas e trabalhos artísticos que pretende fazer uma reflexão sobre o país a partir das ​Jornadas de Junho, e conta com autores como Tunga, João Pedro Stédile (MST), do historiador e deputado estadual Marcelo Freixo, entre outras feras. A organização é de Maria Borba, Natasha Felizi e João Paulo Reys.

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Ah, se você está no Rio de Janeiro, o lançamento por lá é hoje às 19h na Livraria da Travessa no Leblon. 

Purgatório

André Sant'Anna

Escritor

2/9/2013

Todo mundo, lá, pensando em dinheiro.

Naquela angústia das novas classes, a nova classe média, a nova classe, a Classe Baixa Alta. A Classe Baixa Alta com alto poder de compra comprando tudo o tempo todo, comprando aqueles iogurtes que ajudam as mulheres com mais de 40 anos a evacuarem regularmente e a não ficar com acúmulo no intestino e umas batatas fritas chips no saquinho prateado e comprando aquelas ideias, na televisão, no jornal da televisão, nas mídias, nos sistemas eletrônicos e virtuais de distribuição de ideias, no programa da igreja da televisão, o Bispo Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus, na televisão, em superclose, dizendo ao povo de fé que Deus, Jesus, não queria que o fiel sofresse na Terra, que não era necessário fazer qualquer sacrifício durante a vida terrena, que Deus, Jesus, julgaria o fiel levando em conta apenas a oferta do fiel, a quantidade de dinheiro ofertada a Deus, através da conta bancária da Igreja Universal do Reino de Deus, cujo número aparecia na televisão, assim debaixo do rosto em superclose do Bispo Edir Macedo. E Deus, Jesus, lá no Céu, esfregando as mãos, contando dinheiro, pensando em como ganhar cada vez mais dinheiro, ficar cada vez mais rico, milionário, batendo recordes e mais recordes de faturamento, alta lucratividade, o mercado financeiro, essas parada, Deus, lá, pensando em dinheiro e Jesus, o do Evangelho, lá, na Montanha, fazendo o Sermão da Montanha, falando sobre desapego aos bens materiais, sobre desapego à necessidade de se ganhar dinheiro, de ficar trabalhando para juntar dinheiro para comprar roupas mais bonitas, Jesus falando que os Lírios do Campo não pensavam em dinheiro, não pensavam na roupa que vestiriam. Os Lírios do Campo não tinham essa noção pequeno-burguesa de bom gosto e mesmo assim, Ele, Deus, sempre cuidava para que os Lírios do Campo estivessem sempre bem vestidos, lindos, e para que os passarinhos estivessem sempre assoviando, sem se preocuparem demais com coisa nenhuma. Eram coisas desse tipo que Jesus falava, contra a riqueza, aquela história do camelo e da agulha, a favor do perdão irrestrito, a fraternidade geral, contra a hipocrisia dos que apedrejam adúlteras e prostitutas, Jesus, lá, transformando água em vinho, que era para o pessoal, lá, ficar meio alegre, de porre, meio feliz, com a percepção alterada, percebendo que a realidade é uma ilusão, que nem Sidarta, o Buda, tinha dito. Jesus, lá, mendigo, com as prostitutas e os leprosos. Jesus assoviando. Amor e essas coisas.

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Tudo começou com Adão e Eva. (Riocorrente etc.)

O Adão e a Eva, lá, pelados, provando o Fruto Proibido da Árvore do Conhecimento e ganhando rapidamente o poder de perceberem a si mesmos, a própria miséria, os restos de excrementos ainda grudados em suas bundas e também na parte interior das coxas e de perceberem o céu cheio de estrelas e as maravilhas cósmicas, nuvens de poeira cósmica colorida, as partículas do átomo, combinações de sons formando música, o Adão e a Eva passando a distinguir o Bem do Mal, sentindo inquietações filosóficas, dúvidas existenciais, a arte, a morte, a política, revolução, o Fogo das Paixões Revolucionárias do Tarcísio Meira Cryzto em A idade da Terra, aquele filme do Glauber Rocha, o último filme do Glauber Rocha, quando confundiram a lucidez de Glauber Rocha com a loucura de Glauber Rocha. Esses caras sempre confundindo tudo pensando em dinheiro e o Glauber Rocha dizia que A Revolução É uma Eztétyka.

O Presidente da República falando aquelas coisas todas para o Povo, com uma linguagem, uma eztétyka do Povo, para o Povo, dizendo que as mulheres com mais de 40 anos do Povo, também, agora, poderiam tomar iogurte para baixar diariamente o acúmulo do intestino e que os machos do Povo, agora, também poderiam dirigir por aí os seus próprios carros, automóveis de Primeiro Mundo, aquela conversa do Collor, por aí, pelos acostamentos, na volta do feriado, nervosos, suados, barrigudos, orgulhosos dos próprios arrotos com odor de picanha com alho e que o Povo também passaria a voar de avião e que as Elites Dominantes teriam de suportar a falta de educação do Povo, da nova Classe Baixa Alta andando de avião e as Elites Dominantes, lá, também arrotando picanha com alho, se comportando mal no avião, na praia, sujando tudo, cagando tudo, fodendo com tudo, sonegando impostos, subornando o Parlamento, se comportando muito mal junto com a Classe Baixa Alta, comendo batata chips, se comportando muito mal na fila do banco, na fila do supermercado, na Faixa de Pedestres, aquele cara que berra naquele programa de tarde, na televisão, gritando aquelas coisas todas para o Povo, gritando que é preciso botar na cadeia e dar umas porradas em pessoas com menos de 18 anos de idade que botam fogo em pessoas vivas e arrastam, de carro roubado, carro de Primeiro Mundo, pelo asfalto, por ruas de terra e pedras, vários metros, bebês que ficam em carne viva, arrebentados, o cara da televisão berrando meio histérico, com a voz meio aguda, pouco viril, dizendo que quem mata alguém tem de ser morto também, pela Sociedade, que deve tratar um assassino psicopata da mesma forma como um assassino psicopata trata uma pessoa que não é um assassino psicopata da sociedade que não é assassina e psicopata, mas que deve se comportar como assassina psicopata, segundo o cara berrando de tarde, na televisão, que não é um assassino psicopata, na hora de condenar à morte um assassino psicopata. O assassino psicopata, lá, na cadeira elétrica, estrebuchando, com fumacinha saindo pela orelha e a família da vítima achando legal, porque, agora sim justiça foi feita, com aquele bafo de picanha com alho. E aquela cantora Gospel, na televisão, cantando aquela musiquinha que manda as criancinhas juntarem umas moedinhas no cofrinho de porquinho para ofertar a Deus, já que Deus, Jesus, gosta muito de dinheiro e pensa em dinheiro o tempo todo e uma criancinha dar um monte de moedinhas para Deus é um gesto espiritual, que pode garantir à criancinha, que dá dinheiro para Deus, um monte de moedinhas, uma vaga no Céu, aquele lugar cheio de dinheiro, onde Jesus e todos aqueles que deram bastante dinheiro para Deus, durante a vida terrena, ficam o tempo todo pensando em dinheiro, falando em dinheiro, trocando dinheiro uns com os outros, e Deus nadando em uma piscina de dinheiro igual à do Tio Patinhas. QUAC!

O Brasil, lá, cheio de dinheiro, se tornando uma potência do dinheiro, o Brasil, lá, crescendo sem parar naquela angústia agradável, a Classe Baixa Alta cada vez mais alta, superando a nossa velha Classe Média em poder de compra, em picanha com alho, em iogurte contra acúmulo no intestino, e o Presidente da República falando o tempo todo, falando em dinheiro, para a Classe Baixa Alta, que ela, a Classe Baixa Alta, era boa, que ela, a Classe Baixa Alta precisava comprar muitos carros e muitos iogurtes de fazer cocô, que, assim, o Brasil iria crescer, crescer muito, ganhar muito dinheiro, porque nós, os brasileiros, que não desistimos – nunca! – somos bons, somos o troço mais sensacional que existe entre as Nações, muito respeitados no exterior pela nossa economia vencedora, pela nossa virada a nível de dinheiro, mas, pô, não é uma vergonha um país assim tão rico ter tanta criança na rua, uns filhotinhos de pretos sendo torturados, estuprados, escravizados, maltratados por toda essa gente pensando em dinheiro o tempo todo, inclusive pelas autoridades policiais e judiciais, uns animais primitivos, cuja atividade profissional, cuja prestação de serviço público é espancar menores, esses menores que o cara berrando na televisão do Bispo Edir Macedo, cujo Deus só pensa em dinheiro, quer botar na cadeia logo, que é para o cidadão de bem poder comer batatinhas chips croc croc em paz, poder dirigir pelo acostamento, em paz, na volta do feriado, a privada da casa que ele alugou no feriado toda entupida, o acúmulo todo lá, enquanto o Brasil vai crescendo, crescendo, crescendo, crescendo sem parar?

(continua…)