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As trabalhadoras sexuais sul-africanas que estão lutando contra a violência policial

Grupos jurídicos formados por mulheres que já se prostituiram travam uma batalha legal para levar aos tribunais casos corriqueiros como espancamentos, ataque com spray de pimenta e violência sexual.
Max Daly
London, GB

Uma mulher no protesto comemorando o Dia Internacional dos Direitos dos Trabalhadores Sexuais na Cidade do Cabo. (AP Photo/Schalk van Zuydam)

Esta matéria foi originalmente publicada na VICE UK.

Um policial da Cidade do Cabo, na Áfrixa do Sul, é notório entre as trabalhadoras sexuais da cidade. O cara aparentemente devota a maior parte do seu tempo em fazer da vida delas um inferno. No início de julho último, no subúrbio de Woodstock, ele e outros colegas policiais encurralaram um grupo de oito trabalhadoras sexuais e as colocaram na traseira do camburão. Eles dirigiram até o principal rio da cidade. Lá os policiais teriam dado a elas três opções: ou jogamos vocês no rio, ou vocês chupam nossos paus, ou vamos prender e estuprar vocês.

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Esse estilo pouco convencional de policiamento é o segredinho sujo da capital sul-africana. Isso demonstra uma maré de abuso sistêmico — incluindo chantagem, espancamentos e estupros — contra trabalhadoras sexuais, uma seção da sociedade vista como subumana. É tudo uma questão de poder. As trabalhadoras sexuais raramente dão queixa de incidentes assim, porque sabem que se pedirem ajuda serão ignoradas e talvez até punidas, especialmente se os perpetradores são os próprios policiais.

Ainda assim, naquela ocasião, uma das mulheres jogadas no rio fez uma ligação. Ela falou com as únicas pessoas em quem confiava para conseguir justiça: uma equipe de cinco ex-trabalhadoras sexuais que se tornaram assistentes jurídicas. Sua missão: estar na linha de frente para proteger as colegas dessa onda de ódio e brutalidade.

"Na Cidade do Cabo, a polícia e os clientes acham que podem fazer qualquer coisa, sem medo da lei", explicou a assistente jurídica Eunice Griffith April, em frente ao escritório local da SWEAT (Sex Workers and Advocacy Task Force), uma organização que reúne projetos para trabalhadoras sexuais na África do Sul. "Nosso trabalho é divulgar a notícia de que as trabalhadoras sexuais podem conseguir ajuda, que elas podem nos chamar. Oferecemos um ombro para chorar, nas ruas, em casa e no tribunal. Como ex-trabalhadoras sexuais, também passamos por isso. Nós entendemos."

A equipe de assistentes jurídicas, parte do Women's Legal Centre, está preparando uma queixa formal sobre o incidente no rio com o ministro da polícia e uma unidade independente de investigação policial. Elas pedem a demissão do oficial em questão, que tem um histórico tóxico de abuso e violência contra trabalhadoras sexuais que começa em 2012, incluindo acusações de estupro e tentativa de assassinato.

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Outra assistente jurídica é Lisa Gladile, que trabalhou por 15 anos na indústria do sexo antes de conseguir esse emprego. "Decidi me tornar uma assistente jurídica porque vi como trabalhadoras sexuais sofrem. Essas coisas também aconteceram comigo", diz Lisa. "Então pensei 'Se eu conseguir esse emprego, vou fazer o possível para ajudá-las."

Como Eunice, ela se divide entre turnos matinais e noturnos fazendo contatos e ajudando com pedidos de fiança, multas e aparições em tribunais. Atualmente ela está ajudando num caso envolvendo o suposto estupro de uma trabalhadora sexual por um policial em 2012, que só chegou ao tribunal depois que o Women's Legal Centre pressionou implacavelmente a promotoria pública local. A equipe também está investigando a morte de uma trabalhadora sexual chamada Lerato em 2012. Ela morreu de problemas respiratórios depois que a polícia usou spray de pimenta contra ela e a trancou num camburão por 10 horas.

A polícia não facilita a vida das assistentes. "Somos assediadas pela polícia porque alguns deles não gostam do que estamos fazendo. Eles nos ameaçam e dizem coisas como: 'Vocês não são advogadas de verdade'", diz Eunice.

LEIA: "'Cada parte de mim mudou nas mãos deles': a história de uma ex-escrava sexual do ISIS"

A maior parte da violência contra trabalhadoras sexuais é cometida por clientes, mas a polícia não fica muito atrás. A violência e assédio policial, incluindo prisões ilegais, chantagem e estupro coletivo, é um "um tema onipresente" na vida das trabalhadoras sexuais, diz uma pesquisa. Outro estudo, realizado pela Women's Legal Centre com 300 trabalhadoras sexuais na Cidade do Cabo, descobriu que 70% delas já tinha sofrido abuso policial: espancamentos, ataque com spray de pimenta e violência sexual. Prisões arbitrárias de trabalhadoras sexuais são comuns, apesar de a Suprema Corte ter proibido isso em 2009.

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Stacey-Leigh Manoek, advogada do Women's Legal Centre, me disse: "Os policiais agem com impunidade porque podem". O centro já registrou depoimentos de trabalhadoras sexuais contando que a polícia destruiu propriedade delas; roubou e queimou seus pertences; as obrigou a comer camisinhas; além de estupros e mortes.

O SWEAT, o Women's Legal Centre e a organização Asijika estão pedindo a descriminalização do trabalho sexual na África do Sul. Eles acham que uma mudança na lei é o único jeito das trabalhadoras sexuais se protegerem contra clientes, a polícia e a discriminação enraizada. Um caso que mostra essa realidade: Tim Osrin, treinador de natação, foi julgado em 2014 por espancar uma empregada doméstica numa rua da Cidade do Cabo. Sua justificativa foi que ele achou que ela era uma trabalhadora sexual.

As assistentes jurídicas atuam numa paisagem mortal. Em agosto de 2014, uma assistente da equipe, Anita Mambumba, de 38 anos, foi encontrada morta com um ferimento na cabeça, provavelmente causado por uma pedra. Ninguém foi formalmente acusado pela morte dela.

Não há estatística oficial sobre trabalhadores sexuais mortos no país. Segundo a SWEAT, 10 trabalhadoras sexuais foram mortas na Cidade do Cabo este ano, quase o dobro da taxa do Reino Unido, que tem uma população 65% maior que a cidade. Duas foram baleadas e uma foi estrangulada e esfaqueada apenas em fevereiro.

Mas isso não é incomum. No verão de 2014, por exemplo, cinco trabalhadoras sexuais foram mortas em incidentes separados durante cinco semanas; baleadas, esfaqueadas ou espancadas, seus corpos desovados em ruas, terrenos baldios ou embaixo de pontes. Dos assassinatos que chegaram às manchetes, parece que o sistema judicial da África do Sul não se incomodou muito em investigar e punir os suspeitos.

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Em abril de 2013, a trabalhadora sexual de 23 anos Nokuphila Kumalo foi espancada até a morte em Woodstock. O caso teve destaque porque o principal suspeito era o fotógrafo sul-africano internacionalmente renomado Zwelethu Mthethwa. O artista se declarou inocente.

Uma vez, quando perguntaram por que ele fotografava pessoas marginalizadas, ele respondeu: "Para retratar essas pessoas sob uma luz diferente… como seres humanos decentes. Pessoas como todas as outras". Mthethwa, cujo trabalho já foi exposto no mundo todo e faz parte da coleção do Guggenheim de Nova York, foi acusado de "chutar e pisotear a mulher repetidas vezes usando botas pesadas".

Ainda assim, três anos depois, apesar de uma filmagem de câmera de segurança supostamente mostrando o ataque e indicações de que o carro dele estava na cena do crime, Mthethwa não foi julgado ainda por causa de vários atrasos burocráticos.

Esse tipo de atraso em trazer o suspeito à justiça por assassinar trabalhadoras sexuais não é novidade. Em 2008, Johannes de Jager foi preso logo depois de matar a trabalhadora sexual Hultina Alexander. Nada aconteceu por cinco anos, até que ele matou uma garota de 16 anos em 2013. Só então ele foi julgado e condenado pelos dois assassinatos.

Duduziem, uma trabalhadora sexual que conheci no escritório da SWEAT, disse que conhecia pessoalmente 20 trabalhadoras sexuais mortas na Cidade do Cabo em seus 10 anos de serviço. Ela diz que poucos casos foram abordados pela mídia. Quando pergunto se ela já foi estuprada, ela diz que sim: "Isso é o pão com manteiga desse trabalho".

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Trabalhadoras sexuais interrompem a Conferência Internacional sobre a Aids.

Um relatório sobre os benefícios de descriminalizar o trabalho sexual está juntando poeira na gaveta do governo sul-africano desde 2009. No dia 18 de julho, centenas de trabalhadoras sexuais interromperam o discurso do ministro da Justiça na 21ª Conferência Internacional sobre a Aids em Durban, para protestar contra o estigma e a violência, e pedir a descriminalização.

Na conferência, Chris Beyer, presidente da Sociedade Internacional da AIDS, disse: "Pesquisas já mostraram que intervenções para reduzir a violência contra trabalhadores sexuais têm um grande impacto na redução do risco de pegar HIV. Essa é uma das razões porque descriminalizar o trabalho sexual é um dos métodos mais eficientes de reduzir a contaminação. Para poder receber pílulas de prevenção de HIV [profilaxia pré-exposição ou PrEP] você precisa revelar que é um trabalhador sexual, o que é difícil se isso significa admitir um ato ilegal".

Nesse meio tempo, enquanto o governo sul-africano faz vista grossa, Duduziem e suas colegas fazem o que podem para combater a violência. Elas se reúnem em lugares seguros e carregam apitos. Quem tem celular pode acessar um grupo especial no WhatsApp, no qual os membros postam sobre clientes e policiais violentos, placas de carro "ruins", caminhos perigosos e detalhes de ataques.

Pergunto do que ela tem mais medo. O que ela responde vai além da cova. "Tenho medo de que meu corpo nunca seja encontrado. Que se me matarem, vou ser enterrada e eles nunca serão punidos."

Saiba mais sobre o trabalho do SWEAT no site deles.

@Narcomania

Tradução: Marina Schnoor

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