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Os Senhores da Guerra do Afeganistão Não Podem Silenciar Malalai Joya

Ex-membro do parlamento do país, hoje ela vive escondida e não viaja sem uma escolta armada.

Recentemente, a invasão norte-americana no Afeganistão completou seu 12° ano. Essa guerra, ainda em curso, a mais longa da história dos EUA, foi empurrada para o fundo da consciência do público. Os EUA mudaram o foco, que estava nos frontes iniciais da guerra ao terror — o Afeganistão e, subsequentemente, o Iraque — para novos campos de batalha na Líbia, Iêmen, Paquistão e Síria. Mas para os afegãos, cujo país permanece dividido entre comandos talibãs e um governo ainda comprometido com os senhores da guerra apoiados pelos EUA e OTAN, a violência continua sendo uma realidade cotidiana.

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Sexta-feira passada, eu me encontrei com Malalai Joya, uma ativista afegã pelos direitos das mulheres e ex-membro do parlamento do país. Malalai foi expulsa de seu posto em 2007 por criticar seus colegas parlamentares, levantando alegações de corrupção contra eles e os chamado de “ovelhas e asnos”. Eles disseram que ela podia retornar caso se desculpasse. Em vez de disso, ela afirmou que deveria se desculpar com os animais, por compará-los aos legisladores afegãos.

Como resultado de sua oposição pública ao Talibã e ao regime afegão apoiado pelos Estados Unidos, Malalai enfrentou vários atentados contra sua vida. Atualmente, ela vive escondida e não viaja sem uma escolta armada. Ela continua a ser uma figura popular e polêmica, amada por alguns e odiada por outros. Malalai está nos Estados Unidos numa turnê de palestras que marca o aniversário da guerra no Afeganistão e promove seu livro, Woman Among Warlords (Uma Mulher Entre Senhores da Guerra), um relato autobiográfico sobre a resistência à ocupação e organização de classes e clínicas secretas para mulheres e garotas sob o regime talibã. Nessa entrevista, discutimos a retirada iminente das tropas norte-americanas, o comércio de ópio no Afeganistão, educação, direitos das mulheres, e o que é viver sob as botas dos senhores da guerra. Ela também falou sobre a Síria, o último objeto da intervenção norte-americana.

VICE: Como é viver com o medo da morte no dia a dia, precisar de guarda-costas quando você vai para qualquer lugar?
Malalai Joya: É difícil, especialmente para uma ativista, viver num país em poder dos senhores da guerra. Infelizmente, tenho que trabalhar escondida por razões de segurança. De outra maneira, seria muito fácil me tornar um alvo. Essa é minha opção. Não vou me comprometer nem me calar. Recebi ameaças de morte e tenho que me mudar constantemente. Já foram sete atentados contra minha vida.

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Uma vez, eles colocaram uma bomba numa ponte. Tivemos sorte e nosso carro passou um pouco antes da bomba explodir. Em outra ocasião, eles abriram fogo contra a casa onde eu estava ficando. Pedi para meus guarda-costas atirarem para o ar ou nos pés deles, tentar não matar ninguém, aí eles fugiram.

Temos um ditado no Afeganistão: “O rato está sempre no muro”. As pessoas estão sempre escutando e às vezes estamos expostos e temos que fugir, mas entendo os riscos. Não tenho medo da morte. Temo o silêncio diante da injustiça. Não tenho magoa em relação a meu povo. Eles sofrem com a pobreza, a insegurança, a corrupção e o desemprego.

As pessoas que querem silenciar você são talibãs ou os senhores da guerra patrocinados pelos Estados Unidos — quem são eles?
Se acontecer qualquer coisa comigo, tanto os talibãs quanto esses generais ficarão felizes. É fácil para o Talibã ficar com o crédito e dizer: “Nós fizemos isso”, e fingir que são mais poderosos do que são. Mas não são somente os talibãs. No parlamento, recebi ameaças cara a cara.

Você chegou a descrever o ópio como algo ainda mais perigoso para o Afeganistão, e para as mulheres afegãs em particular, do que o Talibã os o senhores da guerra. Você poderia explicar?
É possível combater o terrorismo, mas é difícil escapar do ópio. Isso destrói a vida das mulheres e garotas viciadas nele. O governo diz aos fazendeiros: “Parem de cultivar ópio”. Mas os governadores das províncias e o ministro do combate aos narcóticos são conhecidos traficantes de drogas.

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Temos muitas terras. Não precisamos de ópio. Na província de Farah, onde nasci, é possível cultivar trigo suficiente para ser distribuído por todo o Afeganistão, isso se o governo ajudasse com os projetos de irrigação.

Você critica os Estados Unidos e o regime que ele apoia, mas li recentemente que 40% das garotas afegãs estão indo para a escola, sendo que o número antes da ocupação era zero. Sei que as vitórias para os direitos das mulheres estão concentradas principalmente na capital, mas isso já não é uma melhora?
Seria bom se o que a mídia diz fosse verdade. Mas centenas de escolas foram fechadas por falta de segurança e professores têm sido sequestrados, estuprados e até decapitados. Em Cabul, muitos professores não recebem seus salários há meses e há uma greve de fome acontecendo na universidade. Nas províncias do norte, várias garotas foram envenenadas. Há muitos exemplos de garotas que tiveram o rosto queimado com ácido ou que foram sequestradas e estupradas no caminho para a escola, mas isso nunca é noticiado. Quando somos governados por misóginos e senhores da guerra, como podemos esperar que a educação para as garotas melhore? Eles sabem que mulheres educadas têm sua própria identidade.

Temos uma situação estranha no Afeganistão. Vinte e cinco por cento das cadeiras do parlamento são ocupadas por mulheres e temos mulheres dirigindo diversas ONGs. Mas essas mulheres são senhoras de ONGs. Elas ganharam fama e fortuna por essa ocupação, que veio desse regime marionete da máfia.

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Muito do dinheiro destinado à educação vai para o bolso de saqueadores. Ainda assim, as pessoas colocam suas esperanças na educação. Recentemente, fui para a província de Herat conhecer uma escola sob uma tenda onde as garotas estudam. Mas essas pequenas mudanças positivas estão sendo usadas para justificar a ocupação, enquanto nas áreas rurais a situação é a mesma. Algumas pessoas dizem que agora é pior do que quando o Talibã estava no poder. Isso dobrou a miséria. Antes era só o Talibã bombardeando e matando. Agora são os talibãs e os senhores da guerra.

Você teme que quando os EUA se retirar, uma guerra civil comece? E por quais meios as mulheres afegãs podem se defender e ganhar direitos civis?
Por trás dos rumores sobre guerra civil está a mão da propaganda dos EUA e OTAN. Eles querem que as pessoas aceitem suas bases militares por proteção. Mas acredito que essa futura guerra civil de que eles estão falando não será pior do que a guera civil acontecendo atualmente em meu país. Se os Estados Unidos realmente pararem de apoiar esses senhores da guerra impostos a nós, sob a máscara da democracia, as pessoas vão se levantar e pedir por justiça. Elas vão lutar.

Você acredita que as pessoas vão se mobilizar?
Sim. Dia a dia temos testemunhando mais protestos. A mídia fala sobre resistência do Talibã à ocupação americana. Mas há uma grande diferença entre a resistência do Talibã e a resistência dos afegãos que querem a paz. As pessoas estão cansadas. Elas não têm o suficiente para comer. Algumas venderiam seus bebês por dez dólares. Elas não têm muita educação. Isso vai levar tempo. Mas as pessoas estão resistindo. É por isso que não vou deixar o Afeganistão. Só nós mesmos podemos nos libertar, por meio da autodeterminação. Temos uma história de orgulho e nunca aceitamos ocupações. Enquanto a brutalidade dos EUA e dos fundamentalistas aumenta, cada vez mais pessoas vão se levantar contra eles.

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O que você acha das negociações de paz em andamento agora? Você criticou os planos de convidar o Talibã para a mesa de negociação. Mas o Talibã controla boa parte do sul do Afeganistão. Não é necessário para a paz incluí-los num governo de coalizão?
Em alguns países devastados pela guerra, depois dos conflitos, é uma boa ideia convidar terroristas para a mesa redonda, para conversar e tentar uma reconciliação. Mas num país como o Afeganistão, onde um grupo de terroristas está no poder, convidar outro grupo de terroristas para tentar trazer a paz é ridículo. É uma piada dolorosa. O resultado vai ser mais derramamento de sangue, mais violência. Isso vai unir os assassinos. Paz sem justiça, sem independência, é insignificante. Essa paz seria para os Estados Unidos e os heróis seriam criminosos. Se queremos paz, primeiro temos que perguntar às pessoas que tipo de paz elas querem. Elas querem perseguir esses criminosos.

Nos Estados Unidos, muitas pessoas não sabem muito bem por que estamos no Afeganistão. Nosso governo diz que estamos combatendo o terrorismo, mas você considera nossos motivos sinistros.
O Afeganistão está no coração da Ásia. Por meio do Afeganistão, eles podem controlar outros poderes asiáticos — China, Irã, Rússia… Eles têm acesso fácil ao petróleo dessas repúblicas centro-asiáticas e podem explorar nossos recursos naturais — cobre, urânio e lítio. O 11 de setembro deu aos Estados Unidos uma desculpa para invadir. Agora, somos parte de sua estratégia geopolítica de longo prazo. A mesma coisa está acontecendo novamente. Sob o guarda-chuva da ONU, eles foram para a Líbia. Eles estão interferindo na Síria. Eles estão travando guerras por seus próprios interesses.

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Há um grande debate nos Estados Unidos agora sobre a intervenção na Síria, sobre um possível ataque com mísseis. Alguns legisladores querem até uma invasão. Do ponto de vista de uma pessoa cujo país sofreu intervenção norte-americana, o que você pensa sobre a situação ali?
Quando assisto notícias sobre a Síria, tudo me lembra o Afeganistão. Senhores da guerra estão saqueando o país, reduzindo isso a cinzas. E agora os EUA está dando armas a esses fundamentalistas. Os Estados Unidos quer trazer seus marionetes ao poder, exatamente como no Afeganistão. Na água lamacenta da Síria, eles querem pescar peixes para si mesmos. As pessoas na Síria, infelizmente, têm dias escuros pela frente. Mas só o povo da síria pode libertar a si mesmo.

O que te dá esperanças para seu país?
Em qualquer país onde há crueldade e opressão, também há resistência. Devemos seguir o exemplo de Samad Behrangi, que disse: “A morte pode vir facilmente a qualquer momento, mas não serei aquele a procurá-la. Se ela vier, não vai importar. O que importa é se minha vida ou morte teve um impacto na vida dos outros”. Sei que estou seguindo na direção certa quando recebo o apoio de pessoas famintas, pessoas que estão sofrendo. Os senhores da guerra podem destruir todas as flores, mas não podem impedir a primavera. Um dia iremos vencer.

@JohnReedsTomb

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