Fomos cobaias num experimento fracassado de dieta que começou décadas atrás

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Saúde

Fomos cobaias num experimento fracassado de dieta que começou décadas atrás

Gordura nunca foi o bicho-papão que as autoridades de saúde pintavam, enquanto alimentos vendidos em saquinho como “leves” e de “baixa gordura” ´têm sido um desastre para a saúde pública.

Esta matéria foi originalmente publicada na VICE US .

Vamos dizer que você quer perdeu um pouco de peso. Quais desses alimentos você escolheria: um latte com leite desnatado ou a mesma bebida com leite integral? Uma barra de alta caloria ou um bife com ovos? Uma salada com molho leve ou a mesma salada com molho ranch?

Como a maioria das pessoas, ou você não sabe o que responder ou tem muita certeza — mas está errado. E não é culpa sua. A culpa, segundo especialistas, é de décadas de conselhos nutricionais falhos ou equívocos, conselhos que nunca foram baseados em ciência de verdade.

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O Departamento de Agricultura dos EUA, junto com uma agência chamada hoje de Health and Human Services, lançou um conjunto de diretrizes alimentarem nos anos 80. O livreto de 20 páginas focava principalmente em três vilões da saúde: gordura, gordura saturada e colesterol.

Ainda assim pesquisas recentes dizem que gordura e colesterol na verdade são uma adição benigna, e não prejudicial à sua dieta. E parece que a gordura saturada pode receber o mesmo perdão.

"A ciência em que essas diretrizes se baseavam estava errada", disse à VICE Robert Lustig, um neuroendocrinologista da Universidade da Califórnia, São Francisco. Principalmente a ideia de que cortar gordura da dieta trazia algum benefício para a saúde nunca foi apoiada por nenhuma evidência real, segundo Lustig.

Em setembro, colegas de Lustig da UCSF divulgaram um relatório incendiário revelando que nos anos 60, o lobby da indústria de açúcar financiou uma pesquisa que ligava doenças do coração à gordura e colesterol, enquanto minimizava evidências de que o açúcar era o verdadeiro vilão nessa história.

Nina Teicholz, uma jornalista de ciência e autora de The Big Fat Surprise, disse que muito da pressão contra a gordura veio da Associação Norte-Americana do Coração (AHA em inglês), que baseava seu caso no fato que a gordura é duas vezes mais calórica que proteína e carboidratos.

"Esse conselho para evitar gordura permitiu que a indústria alimentícia promovesse loucamente alimentos de baixa gordura e alto carboidrato como 'leves' ou 'saudáveis', e isso tem sido um desastre para a saúde pública."— Robert Lustig

"[A AHA] não tinha dados clínicos para mostrar que uma dieta de alta gordura sozinha provocava obesidade ou doenças cardíacas", disse Teicholz. Mas como a gordura é altamente calórica, eles adotaram uma posição antigordura, e o governo seguiu o exemplo. E claro, a pesquisa dos anos 60 comprada pela Associação do Açúcar, que foi publicada no prestigiado New England Journal of Medicine, pôs ainda mais lenha na fogueira do nosso medo coletivo de engordar.

Nos anos 90, quando, segundo Teicholz, dados epidemiológicos começaram aparecer mostrando que uma dieta de baixa gordura e alto carboidrato não ajudava a perder peso ou evitar doenças do coração, o estrago já estava feito. O público norte-americano tinha mergulhado de cabeça no que os especialistas em nutrição chamam de "fenômeno Snackwell" — uma devoção a alimentos processados de baixa caloria e baixa gordura, aqueles que as pessoas compram em saquinho porque acham que são saudáveis.

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"Esse conselho para evitar gordura permitiu que a indústria alimentícia promovesse loucamente alimentos de baixa gordura e alto carboidrato como 'leves' ou 'saudáveis', e isso tem sido um desastre para a saúde pública", disse Lustig.

E as estatísticas apoiam essa afirmação. Desde que o governo norte-americano publicou as diretrizes nutricionais nos anos 80, as taxas de obesidade e doenças relacionadas ao peso como diabetes mais que dobraram nos EUA. "A diabete infantil era quase desconhecida, agora é uma epidemia", disse Lustig.

No exterior, as autoridades de saúde seguiram o exemplo dos EUA e condenaram a gordura. Os resultados são similarmente sombrios. No começo de 2016, a organização sem fins lucrativos do Reino Unido National Obesity Forum (NOF) publicou uma condenação intensa das políticas dietárias e de nutrição do governo inglês.

Nesse relatório, a NOF argumenta que o conselho de cortar a gordura e o colesterol é "a raiz" das taxas crescentes de obesidade e diabetes na Inglaterra. Falando depois da publicação, Aseem Malhotra, um cardiologista britânico que fez a consultoria para o relatório do NOF, disse: "A mudança nos conselhos dietários para promover alimentos de baixa gordura talvez seja o maior erro da história médica moderna".

Além de rasgar as "políticas fracassadas", o relatório do NOF pede uma "revisão completa dos conselhos dietários e mensagens de saúde pública".

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Num editorial recente do British Journal of Sports Medicine, a pesquisadora Zoe Harcombe da Universidade do Oeste da Escócia explica que as taxas de obesidade entre mulheres e homens britânicos subiram de 2,7% em 1972 para 23% e 26%, respectivamente, em 1999.

"Há apenas três macronutrientes", Harcombe disse à VICE, "proteína, gordura e carboidratos". Quase tudo que você come ou bebe contém um ou mais desses elementos. E se você seguia o conselho do governo de comer menos gordura, inevitavelmente seu consumo de carboidratos disparava, ela disse.

Que foi o que aconteceu com a população em geral durante os anos 80 e 90.

"Toda uma geração de profissionais de saúde aceitava — e passava para seus pacientes — o guia do governo que dizia para evitar gordura e colesterol. Muitos ainda passam." — Nina Teicholz

Para dar o devido crédito: a última versão das diretrizes dietárias do governo norte-americano não aponta que é preciso restringir o consumo total de gordura e colesterol. Mas essa omissão é mais um passo atrás furtivo do que um reconhecimento público do erro, disse Teicholz. Pior: "Quando você observa o modelo nutricional atual que o governo usa para informar os programas de alimentação, como o programa de almoço das escolas públicas, ele ainda se baseia em baixa gordura", ela disse.

Outro exemplo da cruzada persistente do governo norte-americano contra a gordura: O 2015 Dietary Guidelines for Americans diz que leite desnatado é melhor que integral — uma recomendação que as últimas pesquisas não apoiam.

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"Estudos não mostram benefícios dos laticínios desnatados sobre integrais na perda de peso, especialmente se as calorias da gordura são substituídas por açúcar", disse Walter Willett, presidente de nutrição da Harvard School of Public Health, a VICE. "Na verdade as evidências mostram o contrário."

Willet é rápido em acrescentar que não considera leite e queijo integrais "alimentos saudáveis". Nozes, por exemplo, são uma fonte saudável de gordura, ele disse. Mas se você vai beber leite ou tomar um iogurte, as evidências sugerem que sua cintura pode se sair melhor com a coisa integral — provavelmente porque é mais satisfatória e evita que você coma demais.

Techolz disse que é difícil exagerar os efeitos internacionais da posição pró-carboidratos e antigordura das autoridades de saúde. Toda uma geração de profissionais de saúde aceitava — e passava para seus pacientes — o guia do governo que dizia para evitar gordura e colesterol. Muitos ainda passam.

"A credibilidade profissional e institucional está em jogo", ela disse quando perguntei por que mais médicos e legisladores não estão fazendo barulho sobre os danos causados pelas diretrizes alimentares do governo. Ela também mencionou os interesses da indústria alimentícia, a brecha para "grandes processos coletivos" e a vergonha de lidar com quase meio século de conselhos ruins como impedimentos para que o USDA e outras autoridades de saúde admitam que estavam errados.

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No Reino Unido, a desconexão entre a ciência nutricional e as políticas alimentares do governo abriu fendas na comunidade de saúde pública. Desde a publicação do relatório, o National Obesity Forum perdeu quatro membros sênior, e o resultado iniciou um debate nacional entre médicos, cientistas de nutrição e legisladores sobre que tipo de alimento pertence a uma dieta realmente saudável.

"Nossos relatórios anteriores chamaram pouca atenção, não sabíamos que esse rodaria o mundo", disse David Haslam, presidente do National Obesity Forum e professor de ciência da obesidade da Universidade Robert Gordon.

Repetindo o conselho dado pelo relatório de sua organização, Haslam disse que acredita firmemente que a saúde pública melhoraria muito se todos comessem menos carboidratos refinados — coisas como produtos assados, salgadinhos, cereais matinais e outro alimentos industrializados e o açúcar — e comessem mais "alimentos naturais" independentemente de seu macronutriente principal.

Esse último ponto — que deveríamos prestar menos atenção ao nutriente que compõe nossa comida — é muito importante. Willet, professor de Harvard, disse que focar apenas em um conteúdo macro ou micro dos alimentos é confuso, uma maneira ruim de avaliar o impacto de um item na saúde.

Mas o que uma pessoa confusa de dieta deveria fazer então?

Jenny Knight, 30 anos, é uma terapeuta e mãe de dois filhos em Norman, Oklahoma, nos EUA. "Luto com meu peso desde os oito anos de idade", disse ela. Com 1,77 metro e perto dos 110 quilos, ela é obesa por qualquer definição.

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Como muitos gordos norte-americanos, Knight já experimentou centenas de dietas que, resumindo, defendiam cortar a gordura ou calorias para perder peso. Cedo ou tarde, todas fracassaram. "Mesmo quando funcionavam, era tudo uma questão de força de vontade", disse. "Eu ficava com tanta fome que tremia, e acabava não conseguindo mais continuar e ganhava todo o peso de volta."

Mas desde fevereiro, Knight faz uma dieta baseada em gordura defendida por David Ludwig, professor de nutrição da Harvard.

Falando para a VICE, Ludwig disse que cortar a gordura da dieta em favor de carboidratos processados pode desencadear uma cascata de mudanças metabólicas prejudiciais, que abastecem doenças como diabetes e fazem as células de gordura do corpo trancarem — em vez de liberarem — sua energia. Tudo isso resulta numa fome "fora de controle", ele disse. Cortar mais calorias da sua dieta é como jogar mais gasolina no fogo.

Seu plano, que ele detalhe no livro Always Hungry?, defende se afastar de alimentos com muito carboidrato processado em favor de uma dieta rica em gordura de nozes, laticínios integrais, óleos naturais e outros alimentos integrais.

Até agora, Knight já perdeu 14 quilos com o plano de Ludwig. Mas não é apenas a perda de peso que a mantém otimista. "Essa é a única dieta que já experimentei que parece sem sofrimento — ela não exige força de vontade", ela disse. "Honestamente, parece meio decadente comer coisas como chocolate amargo, manteiga de amendoim ou leite de coco, e não tenho mais fome como costumava."

A dieta de Ludwig pode ou não ser a resposta para todas as suas orações de emagrecimento. Mas uma coisa é certa: gordura nunca foi o bicho-papão que as autoridades de saúde pintavam.

"Acho que todo mundo estaria 90% no caminho de uma dieta realmente saudável se cortássemos os alimentos processados", disse Lustig, da UCDF. "Não precisaríamos de diretrizes de dieta se comêssemos comida de verdade."

Tradução: Marina Schnoor

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