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Fui assistir ao balé do Noam Chomsky

O dançarino belga Sidi Larbi Cherkaoui desenvolveu um espetáculo de dança no qual passa a mensagem de “Consenso Fabricado”, livro de 1988 do linguista norte-americano.

Fractus V por Sidi Larbi Cherkaoui.

Esta matéria foi originalmente publicada na VICE UK.

Você já viu um careca de 40 e poucos anos fazendo uma competição de flamenco com outro cara de meia idade, os dois usando sapatos de salto de flamenco e visual todo jeans? Bom, não fica devendo nada àquela pegadinha da dança do cara inglês. É um negócio tão cheio de pungência desconfortável que chega a ser expansivo.

Um desses carecas é Sidi Larbi Cherkaoui — um famoso dançarino e coreógrafo belga que, segundo o Guardian, consegue se contorcer "como um limpador de canos", e que agora está tentando transformar o trabalho político do filósofo Noam Chomsky numa espetáculo de balé intitulado Fractus V.

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Hoje Cherkaoui é um cara de 44 anos que encabeça uma companhia de cinco bailarinos, todos carecas como ele e usando jeans da cabeça aos pés. Eles parecem saídos de uma comédia dramática dos anos 80 sobre homens tentando lidar com a perda da virilidade.

Junto com a dança, Chomsky também é traduzido por meio de citações no espetáculo, principalmente numa recitação sobre controle das mentes pelas corporações. Cherkaoui então lida com as ideias das citações de jeitos sutis e também muito óbvios. Por exemplo, a melhor parte do show: num lado do palco, ele está sentado numa cadeira vendo TV, com uma máscara, mostrando o dedo do meio e rindo como o OTÁRIO consumista que ele e todos nós somos. Enquanto isso, do outro lado do palco, um cara tem seus sete sinos arrancados em forma de dança. Depois da surra de dança, o cara finalmente desmaia em vários triângulos de plástico brancos, que caem como um dominó em volta do palco, derrubando Cherkaoui no público — é tipo um clipe do OK Go sobre a guerra no Iêmen.

Tem um monte desses triângulos brancos no palco e os dançarinos ficam mudando eles de lugar, como se estivessem montando um móvel bizarro da IKEA sem conseguir alinha-los direito. Várias vezes eles pegam esses triângulos e tentam colocá-los numa forma mais agradável. Eles fazem aquela coisa Shiva com os braços para ilustrar a complexidade da sobrecarga de informação. Em outra parte, um homem atira várias vezes num tipo de troca de tiros em balé, o que parece um pouco com as cenas em câmera lenta do Matrix.

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Se você quer ver política hardcore sobre a guerra de classes, o espetáculo é totalmente 'Os Miseráveis'.

Lembra como aquela sequência em câmera lenta parecia revolucionária na época? Assim como o Chomsky. Os dois apareceram praticamente na mesma época — a era dourada de Ralph Nader e No Logo, quando Michael Moore parecia mais um profeta viciado em Twinkie que o chato oficial do planeta.

Na verdade, o senso de "por que isso agora?" é palpável durante todo o espetáculo. Não é difícil entender por que alguém faria Chomsky virar um balé; todo mundo adora ver sua economia política radical através de dança interpretativa. Mas é mais difícil entender por que alguém faria isso em 2016.

A grande ideia de Chomsky era que o mundo é controlado por canais de informação que nos alimentam com notícias recortadas sem nutrientes, que a verdade — ou, geralmente, o contexto — do que nos dizem não pode ser verificada. Então a menos que você chegue em casa do trabalho é vá abrir um almanaque de pesquisa, não tem como o indivíduo ultrapassar a máquina da mídia, que, ele garante, é construída para reforçar a oligarquia presente, ou seja, O Sistema.

Fractus V por Sidi Larbi Cherkaoiu.

A solução de Chomsky, como descrita em Consenso Fabricado de 1988 e recontada no palco, é que os cidadãos devem se associar — eles devem consumir mídia alternativa e se juntar a outros para discutir. Os indivíduos, sugere Chomsky, são alimentados com a mentira de que não têm poder e estão sozinhos. E lá, sozinhos em suas casas, assistindo TV, sendo alimentados com conta gotas pela mídia corporativa, eles são mesmo.

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A tese de Chomsky, em outras palavras, é que a TV do final dos anos 80 era uma bosta. E eu concordo. Mas estamos em 2016. A TV é ótima agora. Você não assistiu The Crown? Black Mirror? Aquele documentário da Foxy Knoxy? Mas como nos melhores episódios de Black Mirror, já estamos vivendo no futuro que Chomsky estava prevendo. Um futuro onde os cidadãos podem se juntar e conseguir informação alternativa: Indymedia, Wikileaks, Medium, o YouTuber polêmico de sua preferência.

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O fato de ele estar vivo para ver esse futuro é incomum — é como se Marx tivesse aparecido em Moscou em 1928. E a verdade é que Chomsky estava absolutamente certo e totalmente errado. Nossos canais alternativos de notícia já derrubaram ícones; tivemos a Praça Tahrir e o escândalo Trafigura. Ao mesmo tempo, esses canais nos centrifugaram em Trumpinistas vs Black Lives Matter, deixando tudo nas margens do The Canary ou Breitbart. Se tem alguma coisa faltando, é o centro que ele denuncia: o jornalismo investigativo financiado pelos jornais que decai enquanto "o poder" (ou seja, "o dinheiro") é tirado dele.

Todas as vezes que Chomsky foi chamado para comentar o fomento nos EUA no mundo este ano, ele soou mais ou menos como a maioria dos comentaristas — como todo mundo, ele apontou que há um desconforto com a globalização, uma anomalia na cidadania, que estamos mais isolados, oprimidos e chateados que nunca. Isso significa que ele estava certo o tempo todo e simplesmente o alcançamos? Ou que, conforme o mundo andou, suas ideias foram absorvidas, perderam a energia ou se fundiram na banalidade?

Pelo menos o lado da dança da obra de Chomsky continua novo — Fractus V recebeu aplausos de pé. Se você quer uma festa extravagante de dança masculina, é só se servir. Se você quer política hardcore sobre a guerra de classes, o espetáculo é totalmente Os Miseráveis.

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Tradução: Marina Schnoor

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