Lições dos vigaristas da FIFA sobre como ser um criminoso

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Lições dos vigaristas da FIFA sobre como ser um criminoso

Lavar dinheiro não é tão difícil assim. Mas os executivos da FIFA conseguiram o troféu de método mais preguiçoso.

Chuck Blazer e Joseph Blatter dando risadinha. Foto: EPA

Em maio, quando vi as notícias que o Departamento de Justiça dos Estados Unidos indiciou nove dirigentes da FIFA e cinco parceiros de comunicação por extorsão, lavagem de dinheiro e fraudes em transações, a primeira coisa que me veio à mente foi um taxista que conheci em Buenos Aires, na Argentina, quase um ano antes, quando cobri a Copa do Mundo. Lembro-me de perguntar o que ele achava da FIFA, que, na época, era apenas suspeita de corrupção. A barreira de línguas entre nós era significativa, mas ele listou três organizações sem quaisquer explicações: Coca-Cola, Vaticano e FIFA. A acusação dos dirigentes da FIFA e o drama que sucedeu, incluindo a queda de Sepp Blatter e a retirada do Comitê Executivo, abalou a estatura global da organização. A FIFA, dona do acrônimo mais famoso do mundo, foi confrontada pelo melhor promotor americano antimáfias. A operação de uma máfia depende de sua capacidade de lavar dinheiro sujo. Mas a FIFA não serviu a esse propósito; os indivíduos (supostamente) criminosos tiveram que lavar o dinheiro com as próprias mãos. A acusação mais recente e mais detalhada emitida pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos contra os dirigentes da FIFA e seus parceiros de marketing por empreender, durante 24 anos, um "esquema para enriquecerem a si próprios por meio da corrupção do futebol internacional", realizada em dezembro, é um tomo parrudo de 240 páginas e cerca de 50 mil palavras — aproximadamente 45 vezes maior que este artigo — que detalha precisamente como tentaram cobrir os rastros.

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Mas a parte chocante da acusação não é a extensão da corrupção da FIFA. É a preguiça descarada dos participantes ao realizá-la. Leia mais: A NBA está para chegar na Rocinha Jeff Sklar, especialista contra lavagem de dinheiro do grupo de consultoria SHC, disse que os caras da FIFA pisaram feio na bola. "Deveriam ter criado um esquema melhor, em vez de colocar o dinheiro na própria conta bancária e depois dizer: Surpresa! Aqui está o dinheiro!" Sklar não recomenda propinas e lavagem de dinheiro — a VICE Sports também não —, mas, às vezes, as pessoas não se seguram. E se você resolver fazer isso, pelo menos trace um plano. Veja o caso da FIFA, por exemplo. Alguns dirigentes da FIFA não mandaram bem no (suposto) roubo de dinheiro. As propinas (supostamente) foram transferidas direto para as suas próprias contas, sob seus próprios nomes, ou sob nomes de familiares; eles (supostamente) usaram contas bancárias americanas; e não pareciam muito interessados em cobrir rastros. Nos últimos dez anos, em particular, a corrupção a longo prazo acalmou os (supostos) criminosos e os ninou em um senso de complacência, ao passo que eles (supostamente) solicitaram propinas na cara dura e mal tentaram ocultá-las. Foi por isso que liguei para Sklar. Eu queria entender como funciona a detecção de lavagem de dinheiro do ponto de vista das autoridades. E queria entender se os dirigentes da FIFA foram mesmo pegos por causa da preguiça e da falta de criatividade criminosa. Antes de adentrarmos as especificidades do caso da FIFA, é importante saber como funcionam as investigações de extorsão e lavagem de dinheiro. Cinquenta anos atrás, disse Sklar, as coisas eram diferentes. Se você abrisse contas em diversos países e movimentasse dinheiro entre elas, provavelmente lograria. Mas um dos países mais comuns para guardar dinheiro de lavagem, as ilhas Cayman — onde vários executivos da FIFA realizavam transferências bancárias —, adotou uma postura mais vigilante acerca de crimes financeiros, assim como outros santuários de lavagem de dinheiro. Nos Estados Unidos, os bancos emitem Relatórios de Atividade Suspeita (SARs) quando notam um aumento drástico de transferências eletrônicas, transações com dinheiro vivo ou outros comportamentos anômalos no histórico da conta. Um SAR, sozinho, dificilmente engatilha uma investigação, mas três ou quatro na mesma conta chamam atenção. O banco — ou a polícia — pode fazer uma pesquisa independente sobre o indivíduo ou empresa em questão para ver se as quantias em questão fazem sentido, dado o giro de caixa do suspeito. Por exemplo: se eu, um modesto jornalista de uma empresa de internet, de repente começar a receber transferências eletrônicas de 10 mil dólares toda semana, somadas aos meus depósitos quinzenais (bem menores), isso seria considerado uma atividade altamente suspeita.

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Assim como uma cebola, um bom esquema de lavagem de dinheiro tem diversas camadas. O esquema de Jack Warner não tinha. Foto: EPA

Para evitar alertas de atividade suspeita, um criminoso cuidadoso simplesmente não larga a grana na própria conta. Em vez disso, ele usa um processo chamado estratificação, que é apenas um termo pomposo para a tentativa de encobrir a origem do dinheiro. A estratificação nem sempre é "sofisticada", como exemplifica a acusação do Departamento da Justiça dos Estados Unidos a respeito dos esforços dos dirigentes da FIFA. Volta e meia, o Departamento da Justiça se refere às tentativas de estratificação como medíocres, segundo Sklar. A prática não impede um investigador de rastrear subornos ou outras atividades impróprias — entre venda de drogas e círculos de prostituição, por exemplo — de volta à fonte. No entanto, o procedimento pode fazer com que os investigadores desistam da investigação, caso três, quatro ou cinco pistas não levem a lugar algum e eles ainda tenham 30 outros SARs à espera na mesa de trabalho. Os policiais federais americanos já estão de mãos cheias com redes de financiamento de terrorismo, sem contar todos os outros crimes de colarinho branco. As unidades de crimes financeiros vivem ocupadas e, quanto mais difícil for rastrear um esquema específico de lavagem, menos provável de pegarem os bandidos. Ou, como Sklar colocou, "que criminoso é mais fácil pegar: o cara que está fugindo ou o cara que diz 'tá bom, eu desisto'?" Sklar comentou que, se fosse um "bandido" — ele não é, e não aconselhamos você a ser, leitor —, primeiro ele abriria uma empresa; depois, uma conta bancária de pessoa jurídica, desconectada de seu próprio nome. Para ser mais cuidadoso ainda, ele abriria diversas empresas para movimentar o dinheiro entre elas. Assim, poderia utilizar as contas comerciais para pagar tudo diretamente, sem sujar as finanças pessoais. Não foi bem assim que os dirigentes da FIFA agiram. Alguns deles, por exemplo, abriram contas jurídicas, mas não usaram mais do que uma ou duas camadas de separação. E parece que chegaram a misturar contas pessoais e comerciais. Veja, por exemplo, o parágrafo 148 da acusação:

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[148. José Hawilla fez com que o suborno de US$ 1.000.000,00 fosse pago para o réu RAFAEL ESQUIVEL de forma a ocultar a fonte e a natureza do pagamento. No dia ou aproximadamente no dia 22 de julho de 2011, sob a direção de executivos da Traffic, cerca de US$ 1.000.000,00 foi transferido de uma conta mantida no nome do Co-Conspirador #10, um intermediário, no Banco Itaú, no Brasil, para uma conta mantida no nome da empresa de investimentos do Co-Conspirador #10 ("empresa de investimentos A"), cuja identidade é de conhecimento do grande júri, no Banco Itaú de Miami, Flórida. No mesmo dia, os fundos foram transferidos da última conta para uma conta no UBS em Miami mantida no nome de uma entidade controlada por Esquivel. ] Os co-conspiradores 10 e 6 parecem ter sido usados como intermediários durante as transferências eletrônicas: as empresas de comunicação transferiam o dinheiro para os co-conspiradores, que, por sua vez, transferiam o montante para os executivos da FIFA. O procedimento parece comum, no caso: os dirigentes da FIFA tendiam a usar uma camada de separação, o que geralmente não basta para deter um investigador.

Outros foram menos inventivos ainda:

[295. No dia ou aproximadamente no dia 28 de abril de 2011, US$ 363.537,98 foram transferidos de uma conta controlada pelo Co-Conspirador #8 para uma conta mantida sob o nome de CFU e controlada pelo réu JACK WARNER no Republic Bank, em Trinidade e Tobago. Os fundos foram transmitidos para Trinidade e Tobago através de uma conta no Bank of America, em Nova York, Nova York.]

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Ou:

[303. No dia ou aproximadamente no dia 14 de julho de 2011, depois do esquema ser descoberto e depois do réu JACK WARNER deixar seus cargos relacionados a futebol, o Co-Conspirador #8 fez com que US$ 1.211.980,00 fossem transferidos de uma conta que ele controlava no Doha Bank, no Qatar, para uma conta correspondente no Citibank, para colocar crédito em uma conta mantida em nome de WARNER no Intercommercial Bank, em Trindade e Tobago. Antes de receber os fundos nessa conta, WARNER tentou transferi-los, no lugar, para contas de dois membros de sua família, incluindo Daryan Warner, e um membro de sua equipe, mas o banco responsável pelas contas se recusou a aceitar os fundos.]

Contudo, nenhum dirigente da FIFA parece ter feito a única coisa que poderia ajudá-los: pagar impostos. Poucos experts em lavagem de dinheiro pensam em pagar impostos por motivos óbvios. Mas Sklar deixou claro que seria uma medida sábia caso você quisesse fazer o dinheiro sujo parecer limpo. Claro, você perderia uma porcentagem sólida da pilhagem, mas todo profissional em lavagem tende a pagar uma taxa a alguém para agir como intermediário (dúvido que os co-conspiradores 6 e 10 se dispuseram a mediar o delito por mera bondade no coração). Ao pagar impostos, todos os seus gastos pessoais podem ser rastreados até uma renda tributável em uma empresa registrada. Se um banco questionar a fonte do dinheiro, você tem fundamentos para alegar que sua empresa particular recebeu o montante como taxa de consultoria e que foi tributado de acordo. É muito raro um banco emitir um SAR por ganhos declarados no imposto de renda, e as autoridades seriam forçadas a provar a fraude de uma taxa de consultoria ou nota fiscal, tarefa dificílima quando os demais envolvidos insistem no contrário. Em contraste, é bem fácil provar sonegação. Esse problema com impostos é, provavelmente, o cerne da queda da FIFA. Parece claro, com base na acusação, que Chuck Blazer, o cara dos apartamentos para gatos no edifício Trump Tower, foi fisgado por sonegação de impostos, o que ele poderia ter evitado numa boa pagando impostos. Quando ele foi apreendido, dedurou o restante da operação; a essa altura, já não importava mais quão meticulosos todos foram ou deixaram de ser. Conforme manda a praxe entre sindicatos do crime, bastou um dedo-duro para destruir toda a operação. Depois que os policiais aliciaram Blazer, nenhum truque de contabilidade seria capaz de salvar o restante da gangue. Isso, segundo Sklar, é o cálice sagrado de qualquer investigador de lavagem de dinheiro. "O desejo de encontrar alguém disposto a dizer, 'Tá bom, quero salvar o meu pescoço, vou contar como tudo foi estruturado'. Com base em tudo que eu li sobre o caso, acredito firmemente que aconteceu assim. Só que não tenho fatos para apresentar." Se aconteceu assim ou não, fato é que pagar os impostos nunca é má ideia, seja você um executivo corrupto da FIFA ou não.

Tradução: Stephanie Fernandes