A situação das merendas nas escolas estaduais de São Paulo
Janaina Rueda e o estrogonofe, receita que integra o cardápio do Cozinheiros da Educação. Foto: Caio Porto

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A situação das merendas nas escolas estaduais de São Paulo

Os estudantes estão cada vez mais de olho nas refeições e, depois de muita pressão, o Governo do Estado tenta melhorar a qualidade da alimentação nas escolas.

Café com leite e bolo industrializado. Bolacha água e sal, barrinha de cereal e refresco em pó. Cachorro quente num pão murcho e banana. Esses são alguns exemplos das fotos publicadas no Diário da Merenda, uma conta de Instagram — que também possui um perfil no Facebook — criada por alunos da rede pública estadual de São Paulo em abril deste ano como forma de fiscalizar as refeições servidas nas escolas públicas do Estado. A ideia por trás das imagens "era fazer a conexão da moda de tirar foto de comida com uma espécie de ironia com fotos de pratos com comida feia [servida nas escolas]", conta L. P. M., de 16 anos, uma das criadoras da conta, aluna do 2º ano do ensino médio na Escola Estadual Maria José, na Bela Vista, região central de São Paulo.

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O Diário da Merenda, explica a estudante M. O., de 17 anos, outra envolvida na criação da conta, surgiu como uma espécie de "rede social pública". "Sempre passamos a senha [do perfil] para que os alunos possam publicar livremente e não haja um controle sobre as publicações", diz a estudante do 3º ano da Escola Estadual Fernão Dias, em Pinheiros.

A atitude dos estudantes acabou gerando um desconforto na direção de diferentes colégios. M., por exemplo, conta que já foi interpelada por uma ex-diretora da Fernão Dias. Já L. P. M. diz que foi chamada na diretoria algumas vezes para responder alguns questionamentos. "A diretora me perguntava coisas como 'Por que você está fazendo isso?' 'Por que está expondo a escola? Você não deveria fazer isso, porque temos que responder à Secretaria da Educação'", exemplifica a estudante.

"Segundo o PNAE, pelo menos 70% da verba do governo federal deve ser para compra de alimentos básicos e no máximo 30% deve ser destinado a alimentos industrializados" — Daniela Bicalho

Feitas com alimentos pré-cozidos e industrializados, algumas das refeições que vemos no Instagram e Facebook do Diário da Merenda, como as citadas no início do texto, vão de encontro às diretrizes previstas no PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar), que sugere que esses alimentos devem ser utilizados apenas em casos emergenciais.

"Sobre as normas na hora da compra de produtos pra merenda, segundo o PNAE pelo menos 70% da verba do governo federal deve ser para compra de alimentos básicos e no máximo 30% deve ser destinado a alimentos restritos (industrializados, prontos e semiprontos para consumo)", explica a nutricionista Daniela Bicalho Alvarez, especialista em nutrição pediátrica e escolar, que faz sua pesquisa de mestrado em Nutrição e Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP).

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A regra, no entanto, não parecia ser cumprida em todas as unidades de escolas estaduais. A estudante L. P. M. conta que nos dois anos em que estuda na E. E. Maria José, a maior parte do tempo foi servida a chamada merenda seca, composta basicamente por produtos industrializados.

"A CPI investiga o desvio de verba em 22 cidades paulistas e no Governo Estadual, além de cinco pessoas que trabalhavam na Cooperativa Orgânica Agrícola (Coaf) e deputados."

Foi a partir da mobilização dos estudantes que a merenda virou caso de polícia. Depois das ocupações das escolas, inúmeras manifestações nas ruas, com direito a estudante enfrentando o Coronel Telhada na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), o caso das merendas nas escolas estaduais do Estado finalmente se tornou alvo de uma CPI em maio deste ano.

Menos de 24 horas depois dos estudantes ocuparem o plenário da Casa, cerca de 70 deputados concordaram com a investigação – mais que o dobro do exigido (32) — liberando assim a formação da Constituição Parlamentar de Inquérito para investigar o desvio de verba em 22 cidades paulistas e no Governo Estadual. Cinco pessoas que trabalhavam na Cooperativa Orgânica Agrícola (Coaf) — a cooperativa acusada de desviar dinheiro público na compra de insumos — e deputados também são alvo da investigação.

Assista ao documentário "São Paulo: Educação Ocupada"

TENTATIVA DE MUDANÇA

É neste cenário, em que alunos ainda reclamam da falta de merenda de qualidade nas escolas, que um projeto criado pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo está tentando mudar a situação — e deixar o Governo do Estado melhor na fita. Com o Cozinheiros da Educação, o Governo pretende mudar a qualidade das merendas servidas em 5.500 escolas do Estado de São Paulo. O programa, porém, ainda está em fase de implementação, e a previsão é que esteja em pleno funcionamento em todas as escolas do Estado em 2017.

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A chef Janaina Rueda na escola em que estudou, E. E. Maria José, na zona central de São Paulo. Foto: Caio Porto

Nessa cruzada, a chef paulistana Janaína Rueda, dona do Bar da Dona Onça, foi convidada para desenvolver o novo cardápio de merendas e capacitar as merendeiras de todo o Estado. Foi assim que, na segunda semana de agosto último, a chef esteve de volta à Escola Estadual Maria José, unidade onde estudou durante toda a infância, dando início à fase piloto do programa.

Como voluntária, Janaína conta que o convite para o projeto partiu do próprio governo estadual, à procura de alguém que pudesse aplicar os conhecimentos da cozinha profissional, como a padronização das receitas e ensinar as mais de duas mil merendeiras da rede a cozinhar com técnica avançada e alimentos naturais. "Não quis receber nenhum pagamento pelo trabalho, assim não tenho um vínculo formal e posso cobrar o Governo caso as coisas não sigam como eu acho que devem ser", explica a chef.

O cardápio, no dia em que a VICE acompanhou Janaína na Escola Estadual Maria José, foi estrogonofe e muitos alunos chegaram a repetir a merenda, servida diariamente às 9h30 e às 10h20. Durante as duas semanas do piloto, as nutricionistas do Departamento de Alimentação e Assistência ao Aluno (DAAA) coletaram as avaliações dos estudantes, que passaram dos 85% de aprovação exigidos para que as receitas fossem devidamente aceitas como padrão e implantadas.

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"A comida melhorou demais. Antes era arroz, feijão e nuggets, ou uma carne sem gosto", contou Cleber Rodrigues Almeida, de 18 anos, estudante do 2º ano do ensino médio na Escola Estadual Maria José. "Era um rango nada saudável. A sobremesa era feita quase todo dia com o mesmo bolo como base, só mudava a cor pra disfarçar. Tinha dia [que o bolo era] vermelho, laranja ou até marrom, mas a gente sabia que era o mesmo; enjoava."

Cleber Rodrigues Almeida, de 18 anos, estudante da E. e. Maria José: "Antes era um rango nada saudável." Foto: Caio Porto

Longe dos holofotes da imprensa, a merenda servida na Escola Estadual Maria José já não tem seguido o cronograma apresentado nos dez dias em que a chef Janaina passou capacitando as merendeiras. Quem conta é a estudante L. P. M., da mesma escola: "A merenda melhorou, mas o cardápio que a Janaína criou não está sendo seguido como nas duas semanas em que ela esteve lá. Teve semana em que o macarrão com sardinha foi repetido por dois dias seguidos".

Para fiscalizar situações como a observada pela aluna da E. E. Maria José, a Secretaria Estadual de Educação diz que a "ideia é que as visitas sejam intensificadas nas escolas que passarem pelo programa". Ainda assim, a secretaria informa que não existe um cronograma de visita estabelecido, "mas todas as escolas devem ser visitadas com frequência."

"A merenda melhorou, mas o cardápio que a Janaína criou não está sendo seguido como nas duas semanas em que ela esteve lá. Teve semana em que o macarrão com sardinha foi repetido por dois dias seguidos" — L. P. M., estudante

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Administradas pelo Centro Paulo Souza, as Escolas Técnicas do Estado (ETECs) também tiveram melhoria em suas merendas — ainda que não estejam contempladas no programa Cozinheiros da Educação. Alunos dessas escolas informaram que refeições começaram a ser disponibilizadas para estudantes de horário integral. S. T., de 16 anos, estudante da ETEC de São Paulo, conta que depois da mobilização, no começo do ano, que levou os secundaristas a ocupar o Centro Paulo Souza, em agosto refeições começaram a ser servidas para os estudantes das escolas técnicas.

"A ETESP tem 28 anos de existência e em nenhum momento a merenda seca ou almoço nos foi garantido", conta a aluna S. T. "Alunos que passam o dia inteiro na escola fazendo curso integrado — ensino médio integrado com o técnico — tinham suas necessidades básicas de alimentação desrespeitadas".

Segundo a assessoria de comunicação do Centro Paula Souza, as refeições começaram a ser servidas no dia 22 de agosto para 53 unidades de ETECs no Estado. No entanto, os alunos de período integral devem escolher entre o almoço ou lanches secos nos períodos da manhã e da tarde. "As empresas vão distribuir refeições em regime de bufê, com arroz e feijão ou massa, carne, guarnição (farofa ou purê ou legumes etc), salada ou fruta", informou o Centro.

O PREÇO DA MERENDA

O desafio mais difícil para adequar bons pratos ao cardápio criado para o Cozinheiros da Educação parece estar no custo da refeição por aluno. Para alimentar cerca de 1,8 milhão de estudantes da rede estadual de ensino (de um total de 2,5 milhão de alunos) em São Paulo, as refeições precisam seguir uma variação de preço entre R$ 0,59 a R$ 1,18 por prato. O Governo do Estado afirma que são investidos anualmente R$ 200 milhões na compra de alimentos utilizados na merenda escolar paulista.

Enquanto isso, muitos estudantes continuam enviando fotos ao Diário da Merenda. C. F., de 16 anos, é um deles. O aluno do 3º ano do ensino médio na Escola Estadual Professor Alberto Conte, no bairro de Santo Amaro, conta que a merenda no seu colégio é bem parecida há três anos — "mas antes era mais saborosa". Um exemplo que ele nos diz foi o arroz e frango servido com uma salada de pepino e tomate oferecida aos estudantes da sua escola no final de agosto. "[A merenda] estava meio seca porque não tinha o feijão e como o arroz era parabolizado estava meio duro", conta.

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Para alimentar cerca de 1,8 milhão de estudantes da rede estadual de ensino em São Paulo, as refeições precisam seguir uma variação de preço entre R$ 0,59 a R$ 1,18 por prato.

Para chegar às receitas do dia-a-dia dentro do projeto Cozinheiros da Educação (também foram desenvolvidas cinco receitas sazonais, como sopas para o inverno, e mais cinco festivas, para comemorações de datas especiais, como o São João), Janaina e a equipe de nutricionistas fizeram testes ao longo do primeiro semestre até chegar ao dez pratos escolhidos: estrogonofe, frango de caçarola, feijoada, macarrão bolonhesa, peixada, ovo pochê e arroz com lentilha (servidos na segunda sem carne), carne de panela, carne moída, cuscuz frango e macarrão com sardinha.

Além dos valores nutricionais dos pratos, a chef e as nutricionistas levaram em conta o tempo de preparo e a oferta desses alimentos no Estado. "Tivemos que aguardar as licitações dos produtos processados vencerem, como a carne em pouch [um tipo de embalagem plástica que preserva o alimento pré-cozido], para abrir novas atas de compras. Enquanto isso, pudemos pensar em como desenvolver as novas merendas", explica Giorgia Castilho Russo Tavares, nutricionista das Secretaria de Educação que encabeça o projeto.

Na E. E. Maria José, salgadinhos, refrigerantes e doces são vendidos a menos de dois metros da cozinha onde a merenda é preparada e servida. Foto: Caio Porto

Aumentar a adesão dos alunos à merenda é outra das missões do projeto, isso porque todas as escolas possuem cantinas: uma norma estadual permite que sejam vendidos alimentos sem qualquer restrição dentro dos colégios. Segundo a Secretaria de Educação, a concessão das cantinas é feita por meio de concorrência que é acompanhada pela Associação de Pais e Mestres de cada escola. Na cantina da E. E. Maria José, por exemplo, salgadinhos, refrigerantes e doces são vendidos a menos de dois metros da cozinha onde a merenda é preparada e servida.

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O estudante C. F. relativiza a questão da merenda servida tão próxima à junkie food da cantina ao explicar que como não dispõe de dinheiro para comprar um lanche pago, acaba tendo na merenda sua única opção alimentar na escola.

"A gente faz a comida com todo carinho e muitos alunos vão lá e comem hambúrguer", lamenta a merendeira Ana Angélica Santana, de 53 anos, que trabalha na E.E Maria José. "Pra mim é até uma questão triste, sabe, porque fica claro que alguns estudantes não têm dinheiro para comprar lanche. Já que a escola dá a merenda, devia ser pra todo mundo, não ter essa diferença", afirma dona Angélica que, na sua posição, consegue ver a segregação até mesmo na forma como os estudantes comem. Na visita da reportagem, muitos alunos que pegam o prato da merenda preferem comer mais isolados. Os que comem da cantina, estão sempre em rodinhas.

Janaina diz achar um contrassenso as cantinas atuarem nas escolas justamente quando o Estado tem essa nova proposta de buscar oferecer uma alimentação mais saudável para os alunos. "Da minha parte, tento competir como posso, usando as armas que eu tenho, como a feijoada, o macarrão à bolonhesa com maior apelo entre os estudantes", coloca.

AS MERENDEIRAS

As merendeiras, por sua vez, são contratadas por empresas terceirizadas através de licitações. Por isso, elas podem não se sentir engajadas e não perceber a relevância do trabalho que desempenham. Outro objetivo do projeto é mostrar para as merendeiras a importância da função delas. "O uso de alimentos in natura permite um melhor aproveitamento do potencial dessas cozinheiras para preparar uma carne, por exemplo. Antes as carnes vinham semi-prontas, subestimando o trabalho delas", afirma Janaina.

Foi pensando nessas funcionárias que no final de agosto teve início uma nova etapa do projeto Cozinheiros da Educação: o treinamento com as mais de 6,5 mil merendeiras das escolas, com dicas de preparo, sugestões de temperos e apresentação dos pratos. As aulas acontecerão nas ETECs e nas próprias escolas piloto. Janaina ficará duas semanas em uma escola escolhida de cada região da cidade e depois irá visitar alguns municípios do interior. "O jeito de cozinhar está diferente. Com os ingredientes melhores, o resultado final também é melhor. Já estou craque nos cortes", afirma dona Angélica, merendeira da E.E Maria José.

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"O jeito de cozinhar está diferente. Já estou craque nos cortes", afirma dona Angélica, merendeira da E.E Maria José. Foto: Caio Porto

Há escolas, no entanto, que ficaram sem merenda por não possuírem um profissional responsável. A aluna de 3º ano do ensino médio V. A., de 17 anos, conta que sua escola, a Escola Estadual Brigadeiro Galvião Peixoto, localizada na Vila Perus, ficou sem merendeira terceirizada por sete meses em 2016. "Quem quebrava um galho [para servir merenda seca] era a caseira e a própria diretora [ da escola]", conta a estudante. Para V. A. agora a situação está consideravelmente melhor: "Dia de sexta é [servida] merenda seca e nos restantes dos dias, arroz integral, banana, salada, soja, peixe e eventualmente carne."

O projeto também contempla a produção de cartilhas e um site com as receitas criadas e demonstradas pela chef para que os familiares dos alunos e eles próprios possam replicar as receitas também em casa.

Os secundaristas continuarão de olho. Foto: Caio Porto

Na ala dos alunos com quem a VICE conversou é unânime a vontade de continuar fiscalizando o que acontece dentro das escolas. L. P. M. que acompanhava uma das reuniões da CPI da merenda enquanto conversou com a reportagem foi categórica em dizer o que farão caso a qualidade da alimentação na escola não melhore: "É certeza que vamos voltar a nos organizar".

Atualização feita na quinta-feira, dia 8 de setembro: Em nota, a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo afirma: "O Portal VICE é leviano ao trazer informações sem apuração e com a finalidade de distorcer o trabalho realizado na Escola Estadual Maria José. O projeto Cozinheiros da Educação tem sido executado como o previsto e será ampliado para outras escolas na capital. Até o momento, mais de 150 merendeiras já receberam o treinamento. A Educação reitera que, desde o início das ações, a Escola Maria José tem seguido rigorosamente o novo cardápio proposto pelo projeto e as refeições diárias oferecidas na merenda escolar já estão de acordo com a elaboração da chef de cozinha Janaina Rueda, após a capacitação feita com as merendeiras da unidade."

*Colaborou Carla Castellotti

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