​Donata Meirelles durante sua festa de aniversário.
Donata Meirelles manda um "Debret por acidente" durante sua festa de aniversário . Foto: Reprodução/Instagram

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Guia Historicamente Correto do Brasil

A insensibilidade de Donata Meirelles é uma face do racismo brasileiro

A ideia de harmonia entre pretos e brancos no Brasil ajudou a manter o negro em uma posição inferior dentro da sociedade.

Em coluna, o autor de sci-fi & fantasia afro-americana e pesquisador Ale Santos traz os contextos das causas raciais em questões culturais, políticas e até do entretenimento de nosso país. Esta coluna é um esforço de compartilhamento de conhecimento numa época em que o negacionismo cresce e influencia diretamente o imaginário das pessoas. Bem vindo ao Guia Historicamente Correto do Brasil.

Nesta semana, a internet elevou a discussão em torno de um nome: Donata Meirelles, editora da revista Vogue Brasil, que estava comemorando seu aniversário de 50 anos no Palácio da Aclamação, em Salvador. A festa deveria estar linda na cabeça da anfitriã: cenografia perfeita, incluindo as negras vestidas de branco, posando e servindo os convidados em cenas bem parecidas com período colonial do Brasil. Uma das fotos divulgadas, com com as negras ao redor da cadeira da aniversariante, poderia muito bem ser a representação de algumas das obras de Jean-Baptiste Debret, Francês que publicou ilustrações sobre o período da escravidão brasileira por volta de 1834.

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Com um passado tão recente da escravidão e o silenciamento dessa discussão durante a ditadura, as figuras deste período tenebroso ainda se mantém vivas, quase intactas no imaginário das gerações passadas. É o que Jessé Souza chamou de uma “continuidade absurda”, tão naturalizada em nossa sociedade que nem sempre tomamos consciência da visível discriminação racial.

A insensibilidade de Donata Meirelles revela aspectos bem peculiares do racismo brasileiro. Ao contrário do que o senso comum costuma observar, racismo não é apenas a injúria racial, quando existe a ofensa direta ou a ação supremacista que vai rebaixar a presença de um afro-brasileiro. Isso é a ponta do iceberg, é o momento em que toda a estrutura de pensamento ganha força diante de uma condição social materializando o seu preconceito.

O racismo existente na sociedade foi construído por um conjunto de ideologias que se misturaram entre ciência, política e religião para subalternizar indivíduos africanos e seus descendentes — existe sim o racismo contra outras etnias, tipo os ameríndios e asiáticos, mas os esforços para a desumanização do negro já duram centenas de anos e ainda impactam nossas relações mais íntimas. Jessé demonstrou uma das consequência desse passado em uma entrevista: “A família dos muito pobres repete há 500 anos a família dos escravos e eles ainda fazem o mesmo tipo de serviço que faziam antes, são escravos domésticos.”

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Manter o negro em uma posição inferior dentro da sociedade só foi possível através de uma das faces mais pevertidas do racismo, a ideia da harmonia existente entre pretos e brancos. Essa narrativa foi construída em várias colônias para inibir tensões raciais, em nosso país foi fundamentado nos pensamentos de Gilberto Freyre, naturalizando o sofrimento índio e principalmente negro em sua obra Casa Grande & Senzala. Ela foi amplamente contestada por Florestan Fernandes e desmantelada por Abdias Nascimento, porém a elite insistiu ainda nessa fantasia doentia que não passa da normatização da consciência racista. Por isso não se pode esperar um escrúpulo para questões raciais em pessoas como Donata Meirelles.

Uma das cantoras contratadas e amigas da aniversariante, Ivete Sangalo, deu um puxão de orelha amistoso na Donata. Ela disse: “Esse é o nosso exercício, pensar no outro. Para que pensem na gente, da mesma maneira”. Porém, o que a Ivete não deixa claro é que pensar no outro é, no caso, pensar no negro. Isso vai além de ter funcionários negros, significa entender a existência do negro, a história do negro e a realidade do negro. Coisa que a “miopia racial” não pode fazer. Nas palavras do próprio Abdias Nascimento “Neste pretensioso conceito de “democracia racial”, apenas um dos elementos raciais tem qualquer direito ou poder: o branco.”

Ignorar que existe uma história de trabalho africano escravo que deixou marcas expressas nas atuais estatísticas sociais do povo negro é o que leva muita gente a propagar o racismo, pois elas não tem nenhuma ferramenta intelectual para reconhecê-lo nos ambientes que pisam.

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Estamos falando de Donata agora, mas é uma infeliz certeza de que mais pessoas nessa sociedade já estão habituadas com a invisibilidade do homem e da mulher preta e também com a sua exclusão dos espaços de privilégios. Basta você entrar em um restaurante caro, escola ou hospital particular para comprovar que negros são a minoria nesses ambientes. Isso acontece porque os pensamentos racistas ainda estão bem vivos em nossa sociedade e a elite brasileira obteve um terrível sucesso com a construção de uma nova senzala econômica. Quanto mais escura é sua pele, mais aprisionado você está nesse sistema.

Do outro lado estão os brancos brasileiros que se habituaram com a exclusão do negro, suas dores se tornam totalmente invisíveis. Enquanto eu comentava sobre esse assunto no Twitter, recebi comentários do tipo “aqueles negros estão trabalhando e ganhando dinheiro, não vejo ninguém reclamar por ganhar dinheiro”. Era de uma conta fake, mas é um pensamento recorrente, como se o trabalho justificasse o racismo. Me lembrou o momento histórico vivido em 1850, quando começaram a surgir entre os escravocratas americanos e depois do mundo todo o mito de que os negros eram tão bem cuidados que gostavam da sua condição.

É dessa insensibilidade que sofre Donata, mal acostumada com o mundo em que os negros estão sempre aos seus pés, seus olhos nem conseguem perceber a atrocidade da cena que ela construiu. A socióloga Robin DiAngelo chama isso de “fragilidade branca” — ela explica no seu livro White Fragility: Why It's So Hard for White People to Talk About Racism que a causa disso é o fato dos brancos não estarem acostumados a se racializar. A socióloga afirma: “nossa sociedade majoritariamente segregada está preparada para isolar os brancos do desconforto racial”.

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A Donata apresenta esse perfil de pessoa branca e rica completamente isenta da questão racial. Ela poderia passar uma vida sem encontrar confronto em seus espaços de privilégios e recebendo aplausos por suas desculpas frágeis como as que deu após toda repercussão na internet. A mesma postou em seu instagram um pedido de desculpas.

O interessante desse texto é que em nenhum momento ela se desculpa com quem foi o alvo de todo o movimento escravagista que ela representou: os negros. Ela fala de respeito à “Bahia, sua cultura e suas tradições, assim como as baianas”, mas oculta as palavras certas como quem quer fugir de assumir a sua própria visão racista.

A tensão gerada pela representação racista de Donata Meirelles mobilizou a Vogue, uma das grandes marcas de uma indústria frequentemente criticada pela sua discriminação nas passarelas e revistas.

“Nós acreditamos em ações afirmativas e propositivas e também que a empatia é a melhor alternativa para a construção de uma sociedade mais justa, em que as desigualdades”.

Note que este pronunciamento também evita as palavras negro, discriminação racial, racismo. Novamente um artifício para escapar ileso da culpa pelo racismo. Bem que eu queria que fosse a última vez que estivesse escrevendo sobre isso, mas essa roda não para. Ela tá girando há séculos, nosso papel é apontar os caminhos para quem quiser ajudar a extinguir o racismo da sociedade. Martin Luther King escreveu enquanto estava preso em Birmingham: “A ação direta não-violenta busca criar uma crise e fomentar uma tensão para que uma comunidade que se recusa a negociar constantemente seja forçada a enfrentar o problema.”

Espero que todas as Donatas e seus pares, ricos ou não, possam refletir e enfrentar esse problema, mas quando eles não quiserem, eu tenho certeza que sempre haverá um grupo de negros que dirá: “basta de racismo!”.

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