Marcelo ​Yuka nos bastidores do evento Marielle Gigante no Circo Voador (2018). Foto: Matias Maxx
Yuka nos bastidores do evento Marielle Gigante no Circo Voador (2018). Foto: Matias Maxx

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Drogas

Sarcástico, ácido, lúcido e humano: relembrando Marcelo Yuka

Matias Maxx resgata memórias do amigo, que manteve o bom humor e a vontade de transformar o mundo numa realidade marcada pela violência.

Na madrugada do último sábado (19), o Brasil perdeu uma das personalidades mais importantes de sua cultura popular recente. Baterista, compositor, pintor e ativista. A causa mortis de Marcelo Yuka foi septicemia, uma infecção adquirida por conta de uma escara, nome dado às feridas causadas por conta da condição de cadeirante. O músico utilizava cadeira de rodas desde 2000, quando tomou nove tiros durante uma tentativa de assalto.

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Marcelo Yuka era um artista completo. Ainda no início dos anos 90 compôs o clássico “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro” para o Rappa e “A Carne” para o Farofa Carioca de Seu Jorge, levando a discussão sobre racismo para a música pop numa poesia tão linda e marcante que só ele sabia fazer. Na vida pessoal era dono de um humor ácido e sarcástico, apesar de às vezes desconfiado, mas sempre questionador.

Conversei com o delegado Orlando Zaccone, um dos melhores amigos do Yuka, filiado ao PSOL e membro de organizações de policiais anti-fascistas e antiproibicionistas. Para ele, Yuka foi vítima do fracasso das políticas públicas de segurança no Rio de Janeiro. “Ele morreu em razão dos tiros que ele tomou em 2000, não do ponto de vista criminal, mas do ponto de vista da existência: ele ficou numa condição muito ruim, que o levou a ter uma vida curta, morreu aos 53 anos."

"2000 foi um ano em que o Estado do Rio começou a dar uma resposta mais militarizada e violenta para a situação violência urbana, que havia crescido muito no ambiente social. Naquela época o governo era do Garotinho. De lá pra cá, o estado só vem implementando cada vez mais políticas militarizadas de segurança para enfrentamento do problema da violência urbana e essa violência só tem aumentado, o que significa que esse remédio não funciona”, desabafa Zaccone.

Mesmo na condição de vítima da violência, Yuka teve a sabedoria de enxergar que a resposta não seria a vingança. A partir de 2007, ele começou a desenvolver com o delegado o programa Carceragem Cidadã, que levava escola, biblioteca e cineclube para dentro de carceragens da Polinter. “A partir daí, o preso tinha condições de refletir sobre sua existência e, alguns deles, mudar o rumo de suas vidas. Outros infelizmente não, mas a questão em jogo era uma nova forma de tratar a questão criminal”, explica o delegado.

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O velório do Yuka foi bonito, até onde é possível a porra de um velório ser bonito. Músicos se revezavam para tocar suas músicas — quando eu cheguei, o Ivo Meirelles tava cantando “Hey Joe”. A galera tentava ignorar a tristeza e a saudade, mas só a beleza cruel das músicas do Yuka já nos faziam chorar. “Ele finalmente descansou”, era a frase mais recorrente no velório, mas por mais que a gente saiba que ele tinha sofrido muito — não só nas últimas semanas em que teve internado como nos últimos dezoito anos —, eu sempre vi o Yuka como um cara incansável e com uma gana de viver incomparável.

Foram dezoito anos de sobrevida. Ele nunca se recuperou totalmente da tentativa de assalto, as sequelas daqueles nove tiros foram muito além da paralisia. Para completar, um erro médico numa de suas várias cirurgias deixou Yuka com dores crônicas e depressão. Ainda assim, ele manteve sempre o bom humor e coerência que eram sua marca registrada. Mesmo quando estava bem chapado dos remédios — que ele detestava tomar — Yuka mantinha sua lucidez. “Eu vivo completamente drogado”, me falou uma vez.

Marcelo Yuka e Marcelo D2 dividindo um beck no evento Marielle Gigante no Circo Voador em 2018. Foto: Matias Maxx

Marcelo Yuka e Marcelo D2 dividindo um beck no evento Marielle Gigante no Circo Voador em 2018. Foto: Matias Maxx

Apesar de ser do reggae, ele não curtia maconha. Certa vez, algumas semanas antes do incidente que o paralisou, ele veio reclamar comigo que não entendia como os demais integrantes da banda gastavam tanto dinheiro com a erva. Há uns cinco anos ele tentou dar uma chance à cannabis, usando como alternativa aos tarjas pretas do seu tratamento contra a dor e a depressão. Mas a real é que ele não gostava de chapar — acho que ele era tão ativo e sagaz que odiava a ideia de ficar lerdo. Ainda assim, sempre foi entusiasta da regulação da maconha e todas as drogas não só para uso medicinal, mas recreativo também, e ano passado no evento Marielle Gigante fez questão de dividir um beck com o D2 no palco do Circo Voador.

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Teve uma vez no camarim do show do seu ídolo e amigo Manu Chao no Ibirapuera, com abertura do F.U.R.T.O, que ele ficou gritando “vamos beber até morrer”. Mas era só pilha errada mesmo — eu nunca vi ele bêbado de verdade. Ele tinha uma rotina insana: dormia à tarde e passava a noite e madrugada trancado fazendo som no estúdio no primeiro andar de sua casa, ou recebendo os amigos no seu quarto e escritório no andar de cima. Era uma delícia visitá-lo e passar horas ouvindo som ou batendo papo. Numa dessas, eu levei um vinil com remixes de “Merry Blues” do Manu Chao e ele pediu emprestado pra copiar. Fui muito trouxa, eu deveria tê-lo feito copiar na hora. Nos anos seguintes, toda vez que eu o visitava perguntava pelo vinil e, provavelmente rindo muito por dentro, ele apontava pra estante com alguns milhares de álbuns e falava “procura aí”. Absolutamente todas as vezes que eu visitei sua casa ele não perdia a chance de me sacanear, fazendo questão de me denunciar pra sua ultraprotetora mãe: “Aí, ó! Esse daí é o maior maconheiro da cidade, mãe! Veio aqui só pra drogar”, e ela me fuzilava com o olhar, enquanto o Yuka ria da minha cara. Ele fazia a mesma piada quando o Zaccone tava na casa: “Pode revistar”.

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Manu Chao segurando uma edição do zine Tarja Preta, produzido pelo Matias Maxx, e Marcelo Yuka no Ibirapuera, em 2004. Foto: Matias Maxx

Teve uma vez em que ele foi a um restaurante, acho que no Leblon, e a vaga de deficiente em frente ao restaurante estava ocupada por um carro sem identificação de tal. Ele não teve dúvida e parou o seu carro ao lado e desceu pra jantar. Em um determinado momento apareceu o dono, um sujeito no estilo que aqui no Rio de Janeiro chamamos de “pitboy”. O cara chegou na mesa dele exigindo que o Yuka tirasse seu carro da frente do dele, pra poder sair. Mediante sua negativa ele ameaçou “enfiar a porrada” no Yuka, que respondeu na maior calma do mundo: “Pode vir! Me enfiar a porrada é a coisa mais fácil do mundo!” Ele bugou o brutamontes, que teve de esperar o Yuka, na maior calma e serenidade do mundo, terminar sua refeição.

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À época que o Yuka foi baleado, a mídia construiu uma narrativa errada sobre como ele teria tentado atropelar seus algozes para salvar uma mulher que estava sendo assaltada. Essa história foi repetida em muitos obituários essa semana, na tentativa de dar um tom de heroísmo à história. Segundo é contato em sua biografia Não se Preocupe Comigo de Bruno Levinson, na verdade o Yuka nunca viu a tal mulher. Ele percebeu que estava rolando um assalto e tentou fugir de ré, a caminhonete cantou pneu e chamou a atenção dos assaltantes que atiraram. Parece que mais ou menos ao mesmo tempo algum porteiro ou segurança de algum prédio também atirou na direção dos assaltantes. Por isso ele odiava quando diziam que ele foi herói nessa situação — embora não tivesse sido essa sua intenção, a mulher de fato foi poupada do assalto.

Manu Chao, Marcelo Yuka e Radio Bemba

Manu Chao (com sua banda Rádio Bemba) e Yuka no Ibirapuera (2004). Foto: Matias Maxx

Na real, o Yuka foi o herói de muita gente: desde as milhares de pessoas que ajudou indiretamente através dos vários projetos sociais em que ele se envolvia, até os músicos que ele apadrinhou e outras pessoas que ajudou de forma mais direta. Em 2003, quando o ator Rubens Sabino, (o Neguinho de Cidade de Deus, que também estrela o clipe de “Minha Alma”), foi preso numa tentativa de assalto, ele auxiliou juridicamente o rapaz, literalmente tirando-o da cadeia. Assim como eu, ele havia conhecido o Rubinho quando ele era morador de rua na Lapa, e sabia que ele tinha potencial pacas (o moleque sacava muito de cinema, de verdade), era réu primário e merecia uma segunda chance. Não que ele não tenha ficado puto com ele — ficou puto pra caralho. Sempre que o assunto vinha à tona, ele fazia questão de falar que não queria ver o Rubinho nem pintado de ouro. Mas o Rubinho nunca esqueceu disso, e fez uma de suas raras aparições no velório do músico.

Querido por muitos, adorado por inúmeros, Yuka nos deixa um legado que vai além de sua riquíssima produção artística. Em obra e vida, se dedicou a expor o racismo estrutural da cidade partida, seus tribunais de rua e consequências nefastas, mas também a admirar a beleza e riqueza do povo dessa mesma cidade. Sempre mirando no caminho da paz, Yuka nos ensinou a lutar, e resistir.

Muito obrigado por tudo, Yuka.

Marcelo Yuka em 2018. Foto: Matias Maxx

Marcelo Yuka (2018). Foto: Matias Maxx

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