Dizem que o ano começa depois do carnaval, e em 2018 a purpurina mal começava a ser lavada das ruas quando o presidente Michel Temer anunciou uma intervenção federal no estado do Rio de Janeiro. Apesar de preocupar muito ativistas de direitos humanos, o anúncio não causou tanta surpresa: a cidade já passou por vários episódios parecidos. Já o brutal assassinato de Marielle Franco um mês depois foi sim um duro golpe na militância por direito dos negros, das mulheres periféricas e LGBTs. Na última terça-feira, durante um ato ecumênico em memória de Marielle na Cinelândia, a VICE conversou com quatro jovens lideranças das causas nas quais Marielle militava. Todos eles tiveram a oportunidade de conhecer a vereadora e afirmam que o seu assassinato não barrará a luta pelos direitos humanos nas favelas, aliás, muito pelo contrário. A eles.
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Raull Santiago
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Estamos num ano de eleição aonde você não tem ideia nenhuma de quem é uma força politica nesse campo louco democrático que nunca chegou pra favela. Ao mesmo tempo, de crescentes disputas e avanços de pessoas da favela ocupando espaços, ocupando mídia, criando sua mídia e botando dedo na cara de quem historicamente nos violou. O que aconteceu com Marielle é mais um motivo para a gente estar unido, organizar e repensar nossa segurança e continuar com o trabalho que a gente têm feito, porque a gente têm ocupado e incomodado de fato à partir do momento em que a favela não é mais aquele lugar aonde historicamente nos apontaram como coitado. A gente começa a enfrentar e dizer não. A gente não é problema, a gente é solução.”A gente não é problema, a gente é solução
Buba Aguiar
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O que aconteceu imediatamente foi exposição negativa e especulação em torno da atuação do Coletivo Fala Akari. “Minha cara foi estampada em vários jornais sem eu ter dado uma única entrevista. Estão pegando duas entrevistas em vídeo aonde eu falo da atuação do 41º dias antes da Marielle ser executada. Isso não chega a ser um desgaste da minha imagem não, mas é uma exposição irresponsável, uma exposição perigosa. A opinião pública é algo que está preocupando a gente. Se existem correntes de internet falando que a Marielle defendia bandido e merecia morrer, imagina o que não falam da gente. Já teve gente me confrontando em banheiro de restaurante, falando que eu deveria ter morrido no lugar da Marielle, já teve jornalista de mídia corporativa que me seguiu até a porta da minha terapeuta. Descobriram o meu telefone residencial, estão ligando e perturbando os familiares que moram comigo, a ponto deles terem de tirar o fio do telefone para ficarem sossegados. É um desrespeito não só a minha pessoa como a luta como um todo. A gente não é uma pessoa que acabou de sair do Big Brother, nós somos militantes sérios, em nenhum momento eles tem respeito com a luta que a gente trata.”São violações diversas, furtos, depredação da casa de moradores, e a gente conseguiu publicizar isso com ajuda da Marielle, e logo depois ela foi assassinada
Josinaldo Medeiros
A morte de Marielle foi muito sentida na comunidade, mas ao invés de medo, ela trouxe união
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Segundo o ativista, a morte de Marielle foi muito sentida na comunidade, mas ao invés de medo, ela trouxe união. “A morte de Marielle foi um baque do caralho, pra Maré, pra todo mundo. Acho que a ficha caiu do que a Marielle representava não só pra favela como para o povo preto, pobre, pra rua, ela era uma pessoa acessível, ela estava em todos os espaços. Você chegava num evento que achava que não ia ter ninguém, e a Marielle estava lá. Ela não era tipo um mito, ela era Marielle, era da galera, chamava as pessoas pelo nome. Eu sou suspeito pra falar porque a conhecia desde novo, mas as pessoas que a conheceram recentemente dizem a mesma coisa, que ela tinha o mesmo tratamento, ela era fechamento mesmo, passava o telefone pessoal, se interessava pela causa. Na minha opinião foi um momento de vontade de mudança, porque na Maré existe muita treta entre as instituições e coletivos que existem lá. Senti que depois do assassinato dela, essas pessoas me pareceram mais juntas, passaram derrubar muros e erguer pontes mesmo onde as pessoas pudessem dialogar e se pautar pela convergência. A gente tem que mudar esse sistema que nos oprime e nasceu pronto pra gente perder. A polícia tem um papel fundamental nessa opressão. Ela não é ineficiente, é eficiente no que ela faz, não dá tiro pra errar não, dá na reta, ela não dá pro alto, não. Então a gente como uma mídia consciente têm de falar a que a Marielle veio, porque ela não veio a passeio não. É uma disputa de narrativa, porque a narrativa da Marielle está sendo disputada por vários setores da sociedade, inclusive os reacionários que estão usando a morte dela e do Anderson para legitimar essa intervenção, e a gente precisa fazer um contraponto.”
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Rodrigo Luther King
Sou um homem trans, sei a luta que passei para estar aqui hoje. A gente do São Carlos já tinha ouvido falar de Marielle e de suas propostas, era uma mulher que era bem-quista, alguém em quem nós realmente víamos uma esperança e que hoje ainda continua. O que aconteceu com ela só nos fortalece. Ela foi uma guerreira, uma mulher que foi até o final com suas ideias, que não se corrompeu, então dentro da comunidade nós ouvíamos falar dela e suas propostas, de sua campanha. Quinta-feira teve um ato e a favela desceu: isso mexeu num formigueiro, agora basta, ou a gente se cala e fica por isso mesmo ou a gente luta como ela lutou, porque se hoje a favela está aqui reunida na Cinelândia reivindicando seus direitos é porque ela foi e nós somos agora também. Os tiros não foram só nela, foram na gente também, porque ela era negra, favelada, que lutou e se posicionou por seus ideais, o que ela sofreu na pele a gente também sofre. É a questão de você ser refém dentro da sua própria casa, no caso a comunidade, e ser refém na rua de quem deveria te proteger. É difícil, então em algum momento na história a favela precisa descer e essa é a nossa hora, pois eles acham que mataram nossa esperança mas não mataram, Marielle ainda vive, deixou legado, assim como muitos outros e outras. É difícil falar isso, mas agora não vamos recuar, pois se calar não é alternativa, é pra sempre frente. Acabou o caô.”Siga a VICE Brasil no Facebook , Twitter e Instagram.Acham que mataram nossa esperança mas não mataram, Marielle ainda vive, deixou legado