Destrinchamos o primeiro álbum do A Cor do Som

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Destrinchamos o primeiro álbum do A Cor do Som

No Disquecidos, Peu Araújo relembra os OUTROS álbuns clássicos da música brasileira. Nesta edição, o músico Mú Carvalho resgata os louros do primeiro disco do quinteto, de 1977, pouco reconhecido mesmo por quem surfa a recente onda do som tropical.

É bem provável que você já tenha, em algum momento de sua vida, ficado com o refrão de "Beleza Pura", do Caetano Veloso, impregnado na cabeça e o "não me amarra dinheiro não, mas formosura" durou dias a fio. É possível que você tenha ouvido a versão do A Cor do Som e nem se tocou. Deve ter passado batido também por "Zanzibar", "Palco" e outros sucessos interpretados pelo quinteto mais galã dos anos 1970.

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O A Cor do Som, formado pelos baianos Ary Dias e Armandinho, criador da guitarra baiana, e pelos cariocas Gustavo, Mú Carvalho e Dadi Carvalho, que tocou baixo também nos Novos Baianos, era uma parada muito louca. O grupo unia uma influência de rock progressivo e psicodelia com chorinho, frevo, baião, entre tantas outras lisergias. Era rico demais, era das coisas mais virtuosas e belas que se tinha notícia. É quase impossível não se emocionar, por exemplo, com "Abrir a Porta", canção de Gilberto Gil e Dominguinhos que tem uma versão lindíssima do quinteto.

No último dia 10 de agosto, o A Cor do Som fez um show aqui em São Paulo, no confortável Teatro Bradesco. Fazendo um breve e necessário parênteses sobre o espetáculo, dá para dizer que foi assustadoramente bom ver, depois de um intervalo de mais de uma década, os caras no palco cheios de vigor e botando o som pra tocar muito alto.

"O azul de Jezebel no céu de Calcutá. Feliz constelação". Foto por Anna Mascarenhas.

Mas e o primeiro disco? Aquele 99% instrumental e 1% vagabundo? Aquele em que o Dadi ostenta uma camisa escrito JAMAICA? Num papo rápido no camarim, o baixista disse "nem se lembrar direito" de porque estava com aquela peita. Lançado em 1977 pela Atlantic, selo da Warner Records recém lançado no Brasil pelo André Midani, o LP foi o primeiro passo para outros outros nove álbuns, mas é ainda quase um ponto de interrogação na discografia dos caras, apesar de grandes preciosidades.

Há uma versão instrumental de "Tigresa", de Caê, um presente de Pepeu Gomes, em "Samba Vishnu", que não se acha nem no YouTube pra ouvir separado. Tem uma versão cheia de lisergia para "Odeon", do Ernesto Nazareth e tem um grupo afinado e disposto dar aquela bagunçada no rolê tocando chorinho, rock progressivo, baião, samba, forró e mais uma porrada de coisas. É quase como misturar num baldão de caipisaquê Yes, The Who, Jethro Tull, Santana, Garoto, João Gilberto, Gilberto Gil, Egberto Gismonti e tomar tudo numa golada só. É cabeçudo, é regatinha colorida na praia, é licor no abacaxi, é virtuoso, é chorinho, guitarra baiana. É bom demais.

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Para entender um pouco mais dessa obra, aproveitamos a ocasião do show para trocamos aquele ideião maneiro com o Mú Carvalho, compositor, tecladista e uma das cabeças do A Cor do Som.

Aquele rabo de cavalo grisalho do batera Gustavo. Foto por Anna Mascarenhas.

Segura o coraçãozinho, dá o play no disco e se liga aí:

Como nasceu o A Cor do Som? Onde vocês se conheceram? (Claro, que você e o Dadi não entram neste caso).
Quando o Moraes Moreira saiu dos Novos Baianos e começou a gravar seu primeiro trabalho solo, ele convidou o Dadi e trouxe o Armandinho da Bahia. O Dadi convidou o Gustavo, que tocava com A Bolha, pra gravar a bateria. Eu, na época, tinha uma banda com o Claudio Nucci, o Zé Luis (flauta/sax) e Claudio Infante, era uma turma do Colégio Rio de Janeiro, onde havia um festival anual de música e, com essa turma, o terreno de composição era muito bom. Eu tocava piano, minha casa respirava música. Minha mãe era pianista e tocava de Ernesto Nazareth à Chopin e Beethoven, enfim, cresci ouvindo música erudita e também brasileira, popular e ainda, o Dadi, meu irmão, que era ligado no rock da Inglaterra: Stones, Traffic e também Santana, enfim, muita música de todas as áreas. Havia uma música nesse disco do Moraes que tinha um intermezzo de foxtrot e ele me convidou pra gravar o piano nela. A partir daí, o Moraes já me integrou nessa banda e começamos a ensaiar para os shows desse novo trabalho dele. Nosso outro irmão, Sergio de Carvalho, que era produtor da gravadora Polygram naquela altura (produziu discos do Chico Buarque e muitos cantores da MPB), foi ao show de estreia do Moraes e saiu de lá impressionado com a sonoridade desse quarteto que o acompanhava. É, a gente já tinha uma sonoridade bem peculiar, bem original, desde o inicio. E aí veio um convite pra gravar uma demo na Polygram. Queriam três músicas. Eu, já tinha um material interessante na manga, pois vinha compondo desde os tempos da banda com o Nucci. Apresentei então um baião progressivo chamado "Pique Esconde". Fizemos um arranjo para "Brejeiro" do Nazareth (influências de minha mãe) e gravamos também uma música do Sr. Osmar, o pai do Armandinho, chamada "Double Morse", que um tempo depois, com a letra do Moraes, virou um hit chamado "Pombo Correio".

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O que o pessoal da gravadora achou desse material?
Bem, os diretores da gravadora gostaram, mas acharam muito pouco comercial e não se interessaram pelo trabalho. Alguns meses depois, o Andre Midani estava fundando a WEA no Brasil e soube de uns meninos que haviam gravado uma tal fita demo na Polygram e quis ouvir. Ele ouviu e amou. Nos chamou para assinar um contrato de três anos e acabamos ficando nove anos na WEA, onde gravamos dez discos.

Ary no close certíssimo. Foto por Anna Mascarenhas.

Qual era o papo com a WEA?
Muito tranquilo, eles nos deixaram muito à vontade pra fazermos o que queríamos.

Como foi o processo de produção desse álbum?
Ficamos um mês ou mais ensaiando na garagem da WEA, uma casa ainda no Rio Comprido (depois eles mudaram para o Jardim Botânico). Preparamos um repertório a partir do que a gente ia apresentando ali, pra nós mesmos. Fomos gravar em São Paulo e levamos três percussionistas: o Joãozinho e o Nenê da Cuíca que tocavam com o Jorge Ben Jor (Jorge Ben, na época) e o Ary Dias, que acabou se integrando à banda.

Vocês sabem onde estão o Joãozinho e o Nenê da Cuíca hoje?
Eles tocavam com o Jorge Ben e ficaram muitos anos depois ainda na banda do Jorge.

Armandinho com cara de que esqueceu a janela da sala escancarada. Foto por Anna Mascarenhas .

Por que lançar um disco predominantemente instrumental?
Porque era o nosso som. Não éramos cantores, nunca fomos na verdade. Eu comecei a cantar como um processo da minha composição. Vi que algumas músicas que eu fazia deveriam ser para cantar, ficava bem claro isso quando eu compunha, sabia quando era uma música instrumental ou quando deveria dar a melodia para algum poeta "letrar". Até hoje só gravo, ou canto, canções minhas — não me sinto à vontade pra cantar uma música de outro compositor, não me sinto um intérprete nesse sentido. Acho que até tenho um certo estilo quando canto, mas isso só serve pras minhas composições, assim como o Bob Dylan, por exemplo, ele canta suas próprias músicas e não é um cantor como o Sinatra, esse sim, um intérprete.

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E como vocês chegaram numa letra tão representativa em "A Cor do Som"? Ela descreve muito bem o trabalho de vocês. Cita João Gilberto, Ernesto Nazareth e tem uma vibe sensacional. Qual foi a ideia?
Sim, essa é uma letra do Marcelo para uma música do Dadi. Marcelo é um amigo e parceiro nosso, nessa música ele procurou "explicar" a nossa proposta, o nosso som.

Esse disco é muito rico nas influências. Tem psicodelia, tem chorinho, tem groove. O que vocês ouviam na época para se inspirarem?
Yes, Nazareth, Santana, João Gilberto, Stones, Egberto Gismonti, The Who, Gilberto Gil, Jethro Tull…

Ary cantando e Armandinho mandando ver na sua guitarra baiana. Foto por Anna Mascarenhas.

O que vocês usavam de drogas naquela época? Em que sons vocês sentem a presença dessas substâncias?
Drogas nunca influenciaram no nosso som. Nossa música, nossa sonoridade, é muito a mistura de tudo que a gente ouviu. Nunca precisei me drogar pra compôr. Na verdade, eu tenho uma relação muito solitária pra fazer música — preciso de paz. O ambiente me influencia, uma lareira, talvez, uma taça de vinho. Não muito mais do que isso.

Esse é um disco irmão, com um pouco mais de ácido, do Acabou Chorare, dos Novos Baianos. Ele foi lançado cinco anos depois e o Dadi foi da banda. Qual a importância do Novos Baianos pra essa obra?
Enorme. Saímos desse mesmo quintal. Eu não perdia um show dos Novos Baianos, era maravilhoso. E quando ficavam os três no palco, Pepeu, Jorginho e Dadi, rolava um som muito impressionante, muito vanguarda, o verdadeiro rock brasileiro. Nada mais rock e mais brasileiro do que aquele som. Sim, bebemos nessa fonte, aliás, o Dadi trouxe muito dessa fonte, porque ele fazia parte dela. O Dadi apresentou Hendrix e Santana pro Pepeu, essa simbiose começou lá.

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"Ó só, Dadi. O disco tá novinho". Foto por Anna Mascarenhas.

Você poderia explicar um pouquinho o processo de cada uma das músicas? Vamos na ordem. "Arpoador".
Apresentei o tema principal da parte A e desenvolvemos as ideias daquelas frases da parte B nos ensaios. Foi um processo de grupo mesmo, as ideias foram aparecendo e sendo propostas por cada um. Aquela parte C, no final, quando desdobra o ritmo e rola uma progressão harmônica com o baixo subindo cromaticamente eu apresentei e foi bacana, bem progressivo.

"Na Onda do Rio".
É uma música do Armandinho, ela já chegou praticamente pronta.

"Tigresa", que é do Caetano.
Acho que foi uma ideia do Dadi ou do Armandinho, não me lembro. A gente pensou talvez em trazer uma música que já era conhecida, uma canção e fazer uma leitura instrumental.

"De Tarde na Liberdade".
Essa é uma música do Aroldo, irmão do Armandinho, o Moraes fez uma letra pra ela e gravou depois.

"A Cor do Som".
Então, música do Dadi e Marcelo. Queríamos ter uma música cantada.

A primeira do lado B é "Samba Vishnu".
Presente do Pepeu. Ele foi ao nosso ensaio e apresentou pra gente. Trabalhamos junto com ele no ensaio, mas acabamos gravando sem a guitarra dele.

"Espírito Infantil",que é um choro envenenado.
Minhas viagens de misturar várias influências. Sempre quis modernizar o choro, tirá-lo do museu, levá-lo pro mundo. Acho que é uma composição bem ousada nesse sentido. No festival de choro da Bandeirantes foi um escândalo nossa apresentação. Ainda mais com baixo elétrico e bateria, muita gente na época não engoliu aquilo. Mas o bacana foi que o Waldir Azevedo fazia parte do júri e veio falar com a gente no backstage. Ele disse que a gente estava no caminho certo e que a gente estava dando um sangue novo pro choro que era muito importante a gente seguir fazendo isso.

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"Bodoque".
Um presente do querido Tulio Mourão, um grande pianista e compositor. Ele compôs essa música depois que ouviu alguma coisa nossa no ensaio.

"Conversando é que a gente se entende".
Gosto muito dessa música. É um caminho muito do Armandinho, talvez uma das que eu mais gosto dele.

"Odeon".
Continuamos no processo de sacudir com o choro.

"Pique Esconde".
Essa era aquela primeira que apresentei lá, quando fomos tentar um contrato com a Polygram. É um baião progressivo. Tá tudo alí.

E calma que não acabou, não. Não deixe de dar uma sapeada nas incríveis imagens que a Anna fez lá do show no Teatro Bradesco.

Armandinho fazendo seu bandolim chorar largado. Foto por Anna Mascarenhas.

Dadi e Ary dando aquele confere na capa. Cadê o Ary? Não tem. Foto por Anna Mascarenhas.

Armandinho solando e se insinuando pra mulherada. Foto por Anna Mascarenhas.

Teatro Bradesco lotado. Foto por Anna Mascarenhas.

A fera Ary Dias. Foto por Anna Mascarenhas.

O cabuloso Dadi Carvalho, que na mesma semana ainda tocou com os Novos Baianos. Foto por Anna Mascarenhas.

Gustavo segurando a peteca na batera. Foto por Anna Mascarenhas.

Mú Carvalho nas teclas. Foto por Anna Mascarenhas.

Que showzão maneiro, senhores. Foto por Anna Mascarenhas.

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