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'Floor Kids' traduziu em mecânicas a liberdade de expressão do breaking dance

O game consegue representar a essência do breaking — uma dança com raízes na arte do improviso em pistas de papelão sobre o asfalto.

Quando a dança breaking começou a se popularizar como parte da cultura oriunda das festas do Bronx, em Nova York, uma das coisas que mais contagiou as pessoas — além do óbvio espanto de ver alguém girando sobre a própria cabeça — foi a expressividade da dança. Sempre que alguém entra na roda, procura trazer seu próprio estilo, um tempero de individualidade em meio à celebração coletiva. Breaking envolve muita técnica, é claro, mas nunca em detrimento da expressão individual, e sim a favor dela.

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Essa liberdade, parte essencial do que define a cultura Hip-Hop, foi o que me conquistou de imediato quando comecei a praticar danças urbanas. Conquistou também a dois desenvolvedores canadenses, o DJ Kid Koala e o ilustrador JonJon, que trabalharam juntos em Floor Kids, jogo musical inspirado em breaking e lançado recentemente para PC e Switch. Juntos, eles abraçaram a difícil missão de fazer jus à essência da dança, mas seria preciso subverter algumas convenções dos jogos musicais nesse processo.

Jogos de ritmo, afinal, geralmente operam dentro de um padrão. Esteja você apertando botões numa guitarra de plástico ou pulando em cima de um tapete com setas, é quase certo que seu objetivo será realizar comandos em uma sequência exata preestabelecida na música. Isso é ótimo — e muito divertido — quando a intenção é testar o senso de ritmo e tempo musical do jogador, mas seguir setas, notas e passos decorados não é a melhor das soluções para dar a sensação de liberdade e expressão individual, como é o intuito de Floor Kids. Uma roda de breaking onde você entra e executa uma coreografia engessada seria tão artificial quanto uma sessão de jazz ao vivo onde os solos de sax são em playback.

A solução que JonJon e Kid Koala encontraram foi tirar o foco de sequências prontas, que surgem apenas em pausas curtas na batida da música, e dar mais destaque à criação de combos. Com combinações simples de botões é possível transitar entre passos divididos em quatro categorias: toprocking (passos de pé, preparação antes de ir pro chão), downrocking (dança no chão, footwork pra todo lado que geral conhece), power moves (movimentos de impacto mais acrobáticos) e freezes (quando o dançarino trava por alguns segundos numa pose difícil que envolve equilíbrio, controle muscular etc.), fundamentos do breaking que podem dar origem a todo tipo de combinação tanto no jogo quanto na vida real. Os critérios que o jogo usa para atribuir valor ao seu desempenho a partir dessas combinações são um fator que aproxima muito as mecânicas da expressividade pretendida, sem deixar que liberdade seja confundida com puro caos — dança urbana não é bagunça, vale frisar.

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Sua pontuação final será baseada não apenas na variedade e originalidade desses combos, mas também na sua habilidade de executá-los sem sair da batida que mantém a pulsação constante da música. Embora não seja exatamente errado apertar o botão de um mesmo passo no ritmo certo a música inteira, isso seria muito mal avaliado nos outros quesitos, visto que sua dança não teve alternância, dinamismo, o temperinho caseiro que só você pode dar. Essa releitura das mecânicas e critérios de um jogo de ritmo bate muito com a experiência de que a dança proporciona e com o que é exigido de BGirls e BBoys em batalhas e competições da modalidade.

Kid Koala e JonJon.

A sintonia que Floor Kids possui com os elementos fundamentais da dança não seria possível se a dupla de criadores não tivesse um envolvimento muito pessoal com o breaking e a cultura Hip-Hop. As músicas do jogo são assinadas por Kid Koala, que está na estrada da produção musical independente há mais de duas décadas, já trabalhou até com Gorillaz e recentemente contribuiu na trilha sonora do filme Baby Driver (que não por acaso recebeu no Brasil o pitoresco nome Em Ritmo de Fuga). JonJon, além de ilustrador e animador, é grafiteiro e BBoy desde os tempos de escola, o que ajuda a explicar o esmero com que os elementos da dança foram representados no jogo.

A riqueza de detalhes e fidelidade aos movimentos e passos reais, mesmo dentro de uma direção de arte com desenhos mais simples e cartunescos, funciona tão bem que eu fui capaz de reconhecer passos que vi ao vivo em festas e eventos que já colei. É um ótimo guia para quem já estuda a dança através de vídeos e tutoriais no YouTube. Dá pra notar que informações e detalhes como esses foram apurados e representados com muito carinho, fazendo com que o jogo funcione também para aumentar o repertório de estudantes da dança mundo afora.

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O sucesso de Floor Kids na missão de reinterpretar o breaking no game design se dá por essa atenção aos detalhes e pelo entendimento do cerne da experiência que pretende não apenas emular, mas também homenagear. É um modo elegante e sucinto de traduzir experiências em mecânicas que formam mais uma ponte na tão longa e benéfica troca de influências entre videogames e Hip-Hop. BBoys e Bgirls sentem sua cultura bem representada e jogadores do mundo todo ganham uma porta de entrada para interagir com outra cultura, talvez até arriscar seus primeiros toprocks.

Em meio a inúmeras opções de jogos de dança mais elaborados por aí, com suas músicas licenciadas, instrutores poligonais e sensores de movimento, é até poético que um projeto tão modesto seja o que melhor representa nos videogames a essência do breaking — uma dança com raízes na arte do improviso em pistas de papelão sobre o asfalto, e não nas coreografias de videoclipe sobre pisos envernizados de academia.

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