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Iustrações por Lenny Nuñez/VICE.
Identidade

A tristeza infinita dos incels: um retrato da juventude em crise no Brasil

Como a crise econômica e política no Brasil influencia adolescentes e homens jovens a se tornarem celibatários involuntários.
LN
ilustração por Lenny Nuñez
ÊC
fotos por Ênio Cesar

Ao contrário dos EUA, massacres em escolas ou locais públicos não fazem parte do cotidiano brasileiro. Apesar de chacinas como a da Candelária ou massacres como o do Carandiru serem marcantes na história do país, quase sempre envolvem agentes do Estado, grupos de extermínio ou facções criminosas. Assassinatos em massa praticados por lobos solitários são raros. Foram três na história recente, contando com o Massacre de Suzano, ocorrido na Escola Estadual Raul Brasil, na cidade de Suzano situada na região metropolitana de São Paulo.

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Em 13 de março de 2019, Guilherme Taucci Monteiro e Luiz Henrique de Castro atravessaram os portões de sua antiga escola portando uma pistola calibre 38, uma machadinha, uma besta e um arco. Era hora do intervalo na antiga escola dos atiradores, e grande parte dos mais de 300 alunos estavam no pátio à espera da próxima aula. A dupla começou a atirar. Após matarem sete pessoas dentro da escola — cinco alunos, entre 15 e 17 anos, e dois funcionários —, terminaram o ato da mesma forma que os atiradores do Massacre de Columbine, ocorrido nos EUA em 1999. Guilherme atirou em Luiz e depois voltou a arma contra si. Até as roupas eram parecidas com as utilizadas pelos norte-americanos que os inspiraram.

Guilherme e Luiz tinham, respectivamente, 17 e 25 anos quando organizaram o massacre. Eram amigos de infância, crescidos em famílias de classe média baixa. Parte do plano, como revelado pela polícia, era humilhar alunas na frente de todos e tornar seu atentado mais famoso e sangrento do que Columbine.

Foram dez mortes no total, contando com os atiradores. O país entrou em choque, a imprensa fez especiais sobre massacres em escolas, o vice-presidente culpou videogames violentos e a existência de espaços virtuais nocivos na internet brasileira foi redescoberta. Em algumas dessas comunidades, o ato dos atiradores foi comemorado como um título de Copa do Mundo. Um post publicado no dia anterior ao massacre levantou suspeitas de que a dupla frequentava esses fóruns, onde a misoginia, o racismo, a homofobia e o ódio reinam protegidos pelo anonimato. São espaços em que jovens como os atiradores de Suzano encontram conforto, aceitação e estímulo.

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Publicação feita 24 horas antes do Massacre de Suzano em um chan na deepweb.

Revolução Incel

Em 2014, aos 22 anos, Elliot Rodger se tornou o maior responsável por ter colocado os incels – sigla em inglês para “celibatários involuntários” – antes uma subcultura da internet, sob os holofotes da mídia. Frustrado e extremamente raivoso com as mulheres que o rejeitaram, matou seis pessoas e feriu 14 perto do campus da Universidade de Santa Bárbara, na Califórnia, e depois se suicidou.

No mesmo carro em que se mataria, um dia antes do massacre, Elliot gravou um vídeo com suas motivações. "Garotas, não sei porque vocês não se atraíram por mim, mas todas vão ser castigadas por isso. É uma injustiça, um crime, porque não sei o que vocês não enxergam em mim. Sou o cara perfeito, e ainda assim vocês se atiram nesses caras insuportáveis em vez de mim, um cavalheiro supremo", desabafou para a câmera. Deixou também um manifesto expondo suas visões deturpadas do mundo — um trecho relata as dificuldades de ser filho de um casal inter-racial.

Após a viralização do vídeo e do manifesto, Rodger virou celebridade nos fóruns virtuais, uma espécie de mártir padroeiro de todos os jovens solitários cujo acesso à sociedade e às relações amorosas foi negado por não se encaixarem em supostos padrões ideais de beleza, raça ou condições financeiras.

Atos extremos de atiradores solitários cresceram muito na segunda metade da década de 2010, especialmente nos EUA e cometidos por atiradores ligados à extrema-direita, como mais recentemente o caso de El Paso e, 24 horas depois, o tiroteio em Ohio. Para Gabriel Ferreira Zacarias, historiador da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e autor do livro No Espelho do Terror: Jihad e espetáculo, os ataques cometidos na França em 2015 em nome do Estado Islâmico e os massacres escolares desde Columbine possuem mais conexões do que se imagina. Não se trata de um choque de culturas, simplificado em discursos xenofóbicos como uma guerra cultural entre o Ocidente e o Oriente, mas tem muito mais relação com um estágio do capitalismo tardio descrito como “sociedade do espetáculo” pelo filósofo Guy Debord.

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“Falamos de uma crise na sociedade do valor que se manifesta através de uma crise do indivíduo dentro dela”, explica o historiador. “Ele é um sujeito patriarcal em uma crise subjetiva, uma sensação completa de vazio. Ficou latente nesses casos que a produção da imagem que circularia pelas redes sociais era um fundamento principal para os responsáveis, mais importante do que a ação em si”.

No Massacre de Suzano, assim como muitos outros assassinos em massa, fora a suspeita que os atiradores postaram mensagens em um fórum da deep web conhecido nacionalmente por produzir conteúdos de ódio, Guilherme publicou fotos suas horas antes de se dirigir à sua antiga escola apontando uma arma para a câmera. Era seu adeus e seu recado ao país.

A filósofa Natalie Wynn, dona do canal ContraPoints, fez um dos melhores vídeos explicando o modo de pensar dos incels. O vídeo possui legendas em português.

Apesar de massacres e tiroteios planejados por jovens radicalizados através da internet serem novidade, não há nada de inovador no pensamento incel, especialmente em países misóginos como o Brasil. A novidade está na forma que essa misoginia é instrumentalizada. Os incels possuem um vocabulário próprio, com o qual racionalizam o funcionamento da sociedade e o suposto papel das mulheres na exclusão de pessoas como eles. É um ideário determinista e rígido, sem espaço para complexidade ou nuances – as mulheres controlam o mundo, vão maltratar e rejeitar homens como nós para sempre, nunca sairemos dessa condição porque a aparência física e o dinheiro são tudo que importa na sociedade, e morreremos sozinhos.

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A linguagem, como postulou William Burroughs, é um vírus. Muitos jovens frequentadores desses espaços virtuais acabam contaminados pelo vocabulário e, consequentemente, pela visão de mundo dos incels. É fácil desumanizar esses homens, da mesma forma que eles desumanizam a figura feminina, mas lendo as frustrações dos incels brasileiros percebemos que o problema vai muito além de não conseguir perder a virgindade.

Embora não exista uma pesquisa sobre o perfil de jovens brasileiros que se consideram incels, é possível perceber nos grupos virtuais que nem todos são radicais extremos, e que não se trata necessariamente de jovens brancos e privilegiados. Muitos falam das dificuldades de arrumar emprego, conseguir estudar, se sustentar e sair da casa dos pais com o salário baixíssimo recebido em subempregos, isso quando não estão desempregados. Essas questões econômicas, que também influenciam no bem-estar mental, tornam a ideologia incel atraente e consoladora para estes jovens.

“Sou figurante da minha própria vida”

Silas Barboza tem 33 anos e se considera um incel “blackpillado” — isto é, sem qualquer esperança de que sua situação melhore. Nascido em um bairro da periferia de São Paulo, em uma família de trabalhadores, desde cedo Silas passou por situações de discriminação racial e social. Com muito custo, afirma, seus pais o matricularam em uma boa escola particular. Lá, sofreu bullying dos colegas e rejeição das garotas brancas e mais abastadas por quem se atraía. Na faculdade foi a mesma coisa. O sentimento de rejeição, especialmente feminina, é uma constante na vida de Silas.

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Silas Barboza se considera um incel "blackpillado". Foto: Ênio Cesar/VICE.

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Silas também diz que nunca beijou na boca, que nunca teve o carinho de uma mulher e só fez sexo pagando por ele, apesar de ter falado que condena a prostituição. “Meus pais acham que eu sou gay porque nunca levei uma namorada pra eles conhecerem,” lamenta.

Ele é um homem bonito, bem vestido e bem articulado, que trabalha como gerente na área comercial de uma empresa de TI. Nas redes sociais, Silas, que se diz um “incel original”, posta fotos fumando charutos e textos nos quais afirma estar sozinho e nunca ter recebido carinho e companhia de mulheres. Alguns comentários nesses posts o chamam de herói ou "Tyrone", termo para se referir a homens negros “alfa”.

"Eu sou invisível," Silas repete algumas vezes enquanto explica sua visão sobre feminismo e racismo no Brasil, como se ecoasse o Homem Invisível do romance de mesmo título do autor negro norte-americano Ralph Ellison.

Uma das histórias que mais parece lhe assombrar é de uma garota que ele conheceu na internet e com quem manteve contato por alguns meses. Como ela parecia gostar dele, Silas decidiu fazer uma surpresa romântica, indo até a cidade em que ela morava e levando presentes. Deu errado. A garota fugiu e pediu para um homem mandá-lo embora. Essa história foi contada por Silas algumas vezes. Uma delas em 2018, quando falou sobre sua vida em um podcast e se tornou uma espécie de porta-voz de um grupo fechado de incels mais jovens que ele.
Para os membros mais novos desse grupo, Silas parece um ponto fora da curva, um raio de esperança. Tem um trabalho legal e, como ele mesmo afirma, “enfrenta a Matrix” saindo de casa e ocupando espaços em que não é bem-vindo. Não foram poucas as situações em que relata ter sido confundido como um segurança ou completamente ignorado por outras pessoas.

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“Quem é misógino são os alfas, homens que ficam fazendo sexo com mulher atrás de mulher, tratando elas que nem lixo e deixando um monte de mães solteiras espalhadas.”

Um dos incels com quem Silas mantém contato é Chimpa, carioca de 30 anos que mora em uma das 13 comunidades que formam o bairro de Lins de Vasconcelos, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Chimpa criou o podcast A Vida de um Incel, onde discute e tenta desmistificar alguns supostos “preconceitos” sobre o grupo. Chimpa estudou e chegou a trabalhar na área de TI, mas agora está desempregado e faz bicos para sobreviver. “Por mais que eu tivesse qualificação na área, meu salário sempre foi pouco. Inclusive, quando eu vou nas entrevistas sempre tem a questão do preconceito. Não me contratam por causa da aparência, porque eu não sou considerado bonito pela analista do RH. Já aconteceu de não me contratarem porque eu não tinha o signo que queriam pra vaga,” relata.

De pele negra, ele se define como fora do padrão, e relata episódios de racismo e situações em que mulheres receberam mais vantagens do que ele. “A última empresa que trabalhei de carteira assinada, tinha uma menina que trabalhava recebia a mais e ganhava benefícios. Já nós, os técnicos, ganhávamos só o salário e sem benefício nenhum. Esse mito criado que mulher tem menos emprego é besteira. Eu não faço a menor a ideia porque ela ganhava mais,” conta.

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Ilustrações por Lenny Nuñez/VICE.

Ao longo da juventude, Chimpa teve diversos problemas para se encaixar na sociedade. Sofreu bullying na escola e foi rejeitado por mulheres. Suas experiências sexuais mais recentes foram com prostitutas. “Já namorei muitos anos atrás e a menina era muito mais bonita que eu, não que isso fosse muito difícil. Eu tratava ela super bem, gastava todo meu dinheiro com ela em vez de gastar com jogo. (…) Depois que terminou, foi arrumar um cara que tinha carro.

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Silas e Chimpa, moradores da região Sudeste do Brasil, fazem parte da população preta ou parda do país – representando mais da metade dos brasileiros. Apesar de pessoas não brancas serem maioria por aqui, grande parte pertencem às classes sociais mais baixas e têm o pior acesso à educação, empregos e oportunidades em um país marcado por um racismo de certa forma velado, mas poderoso.

Silas também relata a dificuldade de incels conseguirem viver em uma sociedade onde a aparência fala mais alto do que sua capacidade. Especialmente sendo negro e de origem humilde. “Se eu não me encaixo em um estereótipo de negro aqui no Brasil — traficante, pagodeiro ou jogador de futebol — eu sou tratado como um lixo. Se eu for trabalhador então, meu Deus do céu, ninguém olha para mim. Em outros país, eles olham pra um negro que tem ambição e acham muito interessante. Por isso acredito que sou um incel location. Sou incel no Brasil, mas em outros países, não.”

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Foto: Ênio Cesar/VICE.

Embora a visão de mundo dos incels separe homens e mulheres em duas categorias -- sendo as mulheres divididas entre stacys (mulheres bonitas que vivem da aparência e são burras) e beckys (mulheres não tão bonitas que se interessam por videogames e cultura nerd para atrair a atenção dos homens) e homens entre alfas (homens bonitos, ricos ou ambos) e betas (homens comuns, sem grana e beleza) – ambos defendem que os incels não são misóginos como grande parte das pessoas costumam falar.

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“Quem é misógino são os alfas, homens que ficam fazendo sexo com mulher atrás de mulher, tratando elas que nem lixo e deixando um monte de mãe solteira espalhadas,” explica Silas.

“O beta não tem nada a oferecer, pois vivemos em um mundo de aparências e dinheiro,” diz Chimpa. “A mulher por mais que seja feia, fora do padrão da sociedade, e sempre vai conseguir homem.”

Para Chimpa, é injusto relacionar os incels com atentados e atos de violência. Ele condena qualquer pessoa do grupo que faz apologia a atentados como os de Suzano ou se interessa por discursos de supremacia racial. “Não é porque o cara [que cometeu um atentado] tinha mesmo comportamento de incel que significa que todo incel vai fazer isso. Quem apoia crime não entra no grupo porque o incel é tão perseguido que se veem um cara nazista no grupo, vai dar problema.”.

“Quando um jovem se mata, é uma falha da nossa capacidade enquanto sociedade de oferecer um tratamento adequado para essas pessoas."

Silas, por sua vez, argumenta que os incels praticam atos extremos ao misturarem a ideologia incel com outras, como a supremacia branca. Para ele, a missão dos incels é nunca rejeitar ninguém, já que a sociedade se encarrega de rejeitá-los sempre que possível. No grupo com outros incels, revela que é amigo até de incel que se considera nazista. Ele mesmo ri da afirmação, sabendo a contradição que a situação mostra.

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Publicação feita no perfil pessoal de Silas.

Silas se diferencia de outros incels não pelo emprego e pela aparência, muito distante da invisibilidade que ele afirma sentir, mas pelo desejo de desradicalizar outros jovens insatisfeitos com as mulheres e com a falta de oportunidades na vida, impedindo ações extremas como tiroteios em escolas. Para ele a essência do incel é a rejeição, que começa em casa e depois é potencializada pela sociedade.

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“Muitos meninos com que conversamos estão revoltados em casa. (…) O incel, muitas vezes, não tem uma estrutura familiar. Ele não tem um pai que é parceiro, não tem uma mãe que entende a realidade do filho, e muitas vezes é criado em lares destruídos. Esse menino não teve uma base, sofre bullying na escola e começa a sofrer bullying virtual por sua aparência. Andando na rua, percebe que é invisível. Que não é notado na balada, que até o repudiam. (…) Esses meninos são um projeto de alimentação de urânio, são uma grande bomba nuclear.”

O retrato pintado por Silas dos jovens que o procuram em busca de conselhos não parece tão distante da atual juventude brasileira como um todo. Após um período marcado por uma incomum sensação de progresso, o país entrou em uma profunda crise econômica e política que culminou em 2016 no impeachment da presidente Dilma Rousseff, na época cumprindo o segundo mandato. Dilma era a sucessora de Lula, que governou o país de 2003 a 2010 e ficou conhecido por investir em programas de inclusão social e aumentar o poder econômico das classes mais baixas.

Com a crise econômica, os jovens antes otimistas com a possibilidade de ascensão social foram os mais afetados. De 2014 a 2018 o número de desempregados dobrou, passando de 6,7 milhões para 12,8 milhões. Entre os jovens, o índice é ainda mais preocupante: 25% dos brasileiros entre 18 e 24 anos não têm trabalho. O desemprego e o acentuamento da crise econômica tem efeitos devastadores em jovens, e isso se reflete na taxa de suicídios no país.

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No estudo realizado pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) mostra que fatores como a desigualdade social e desemprego são determinantes na taxa de suicídio entre jovens no Brasil. Entre 2006 e 2015, o índice de suicídio entre jovens de 15 a 29 anos aumentou 24%. Grande parte dos afetados são homens jovens, segundo o psiquiatra Elson Azevedo, um dos médicos responsáveis pela análise. “Quando um jovem se mata, é uma falha da nossa capacidade enquanto sociedade de oferecer um tratamento adequado para essas pessoas,” diz.

Para os brasileiros que dependem do sistema de saúde pública, as chances de conseguir tratamento e ajuda diminuem consideravelmente. “Apesar dos esforços nos últimos 30 anos, a disponibilidade de equipamentos públicos e serviços para a saúde mental é muito precária. Tem muito menos equipamento de saúde mental do que seria necessário no Brasil. As pessoas que só dependem do SUS estão na sua maioria desassistidas”, explica o psiquiatra.

Com o país caminhando para um período de incertezas, sendo social e economicamente, Chimpa diz que os maiores afetados por essa situação são os incels. Ele sequer tem mais energias para discutir, quer só ser deixado em paz, assim como outros incels.

“Sou um um cara que fica no quarto, jogando videogame e tomando cerveja barata porque não tenho grana pra comprar uma melhor. Eu sou figurante da minha própria vida,” diz.

Schadenfreude à brasileira

Como parte dos que autodenominam incels no Brasil, Silas e Chimpa frequentam grupos de Facebook e WhatsApp onde outros homens buscam conforto e um sentimento de comunidade. Muitos usam vocabulário e piadas internas gestadas ao longo de anos em outros espaços.

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No Brasil, essa cultura se desenvolveu especialmente através da seção "Vale Tudo" do fórum UOL Jogos, hospedado por um dos maiores portais brasileiros de jornalismo e entretenimento. Criado em 2002, foi desativado em dezembro de 2018, contabilizando milhões de postagens e milhares de usuários.

Esse espaço gestou o que o jornalista Daniel Salgado, antigo frequentador do VT nos anos 2000, descreveu como “cultura masculina adolescente cooptada pela nova direita brasileira”. De certa forma, o VT foi o precursor do 4chan no Brasil. Abrigava de discussões sobre games e animes até tudo que há mais de nocivo na rede mundial de computadores. Qualquer brasileiro que acessou a internet nos anos 2000 em algum momento caiu sem querer (ou de propósito) no VT.

O fórum foi se esvaziando gradativamente e outras comunidades foram criadas, herdando a mesma linguagem e o apreço pela anonimato e conteúdo sem censura. Logo surgiram os chans brasileiros, abrigando o mesmo perfil de certos frequentadores do VT: sexo masculino, interessado por tecnologia e videogames e com uma considerável inclinação para piadas de gosto duvidoso. Segundo um usuário e ex-moderador de um desses fóruns, o 55chan, a única coisa que importa por lá é manter o anonimato (os frequentadores se autodenominam "anões", uma corruptela de “anon”) e fazer piadas para rir da desgraça alheia. São usuários que buscam refúgio para expressar com impunidade ideias que teriam consequências sérias se expressadas ao vivo.

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Já em 2010, boa parte dos frequentadores do fórum UOL Jogos era predominantemente de direita e começava a participar dos cursos online de Olavo de Carvalho, ex-astrólogo apontado como guru ideológico do atual presidente de extrema-direita do Brasil, Jair Bolsonaro. Ao lado das leituras que circulavam no curso estavam também livros de autores obscuros contando supostas verdades sobre as mulheres, assim como dicas de paquera e conquista.

Em fóruns frequentados por um público mais jovem, paradoxalmente já houve apoios maciços a candidatos de esquerda. Ainda em 2010, por exemplo, ano das eleições que levaram à vitória de Dilma Rousseff, a primeira presidente mulher do Brasil, o candidato escolhido como predileto pelo do 55chan foi Plínio Arruda, do Partido Socialismo e Liberdade, à esquerda do PT. As chances de Plínio eram nulas, mas suas colocações anti-establishment nos debates chamaram atenção. Sabendo que apoiar Plínio era quase absurdo, o 55chan fez até campanha. Tudo em nome da zoeira.

A construção de um mito

Espaços virtuais como o VT e chans brasileiros sofreram influência de acontecimentos políticos em outros países, especialmente dos EUA, cuja incidência cultural sobre o Brasil é esmagadora. Como se observou no 4chan, a radicalização de jovens frequentadores desses espaços se aprofundou até que se tornassem protagonistas na ascensão e eleição de figuras da extrema-direita como Donald Trump em 2016 e Jair Bolsonaro em 2018.

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Até 2013, Jair Bolsonaro era apenas um dos 513 deputados federais brasileiros. Em sua carreira política de 28 anos, não ficou conhecido por aprovar leis ou presidir comissões, mas por declarações explosivas que serviam como chamariz para a imprensa brasileira dar palco para o político em nome da audiência. Ex-militar e defensor convicto da ditadura que assolou o país entre 1964 e 1985, Bolsonaro dava declarações racistas e sexistas sem pudor algum, além de homenagear um notório torturador do regime durante a votação do impeachment da presidente Dilma — presa e torturada durante a ditadura por conta de sua militância na esquerda revolucionária.

Um homem desde muito jovem tem que ser um provedor, e o que ele tem hoje em dia é uma identidade totalmente em crise. Ele não consegue um emprego e vê um mundo de oportunidades se abrindo para as mulheres nos últimos tempos.

Segundo Isabela Oliveira Kalil, pesquisadora e coordenadora do Núcleo de Etnografia Urbana e Audiovisual da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, homens jovens entre 16 a 34 anos que frequentam esses espaços virtuais foram um dos grupos responsáveis pela criação da imagem de “mito” de Bolsonaro. “Essas pessoas ajudaram de diferentes formas a construir essa imagem. Ele não tinha tempo de televisão, mas contava com um grande número de pessoas criando memes, ajudando a construir o personagem”, conta a pesquisadora.

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Assista ao nosso documentário sobre os apoiadores de Bolsonaro:


Na campanha eleitoral, Bolsonaro tentava se colocar como representante de um espírito jovem de rebeldia, paradoxalmente conservadora e revolucionária ao mesmo tempo, contra 12 anos de um governo de centro-esquerda no Brasil que era visto por seus apoiadores como o establishment. Entre os jovens eleitores de Bolsonaro há um elemento de transgressão em ser extremamente antifeminista e hostil a qualquer um que represente “a esquerda”, e por consequência o “politicamente correto”.

A crise da masculinidade é dos fatores apontados para explicar a radicalização de jovens à direita, e também como pano de fundo em ataques como o de Suzano. Para Rosana Pinheiro-Machado, antropóloga e professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria, a frustração de muitos homens simpatizantes do bolsonarismo vem de uma crise do provedor masculino, que há muito vem sendo construída no Brasil, afetando especialmente pessoas mais pobres.

“Um homem desde muito jovem tem que ser um provedor, e o que ele tem hoje em dia é uma identidade totalmente em crise. Ele não consegue um emprego e vê um mundo de oportunidades se abrindo para as mulheres nos últimos tempos. Por um lado as mulheres realmente se empoderam a partir de algumas iniciativas e políticas públicas, como o Bolsa Família, e o próprio feminismo tem acolhido muitas mulheres, inclusive da periferia”, explica Pinheiro-Machado. “Então esse homem está em crise de identidade, tanto como provedor quanto vendo essas mulheres sendo abrigadas pelo feminismo. É um sujeito em potencial para encontrar e jogar essa frustração nesses grupos. Ele vai ter reconhecimento, vai passar a existir e projetar sua frustração”.

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Ilustração por Lenny Nuñez/VICE.

De fato houve pequenos avanços na questão feminista no Brasil, especialmente no combate ao feminicídio e à violência sexual. Em paralelo há também o reconhecimento da união estável homoafetiva e a criminalização da homofobia pelo Supremo Tribunal Federal. No resto do mundo, especialmente nos países ocidentais, houve um boom publicitário focado na apropriação desses empoderamento de identidades não masculinas, incluindo mulheres e LGBTs.

"A sensação que eles têm é que não há nem um lugar para eles. Não existe possibilidade de estar, de poder construir sua vida."

Mas nem todos os incels brasileiros são bolsonaristas. Silas e Chimpa, por exemplo, não se reconhecem na política de Bolsonaro e não o apoiaram durante as eleições, fato que gerou tensão no grupo que frequentam. A hipótese de que Bolsonaro resgataria a masculinidade “perdida” entre os homens é o fator mais importante entre os incels que simpatizam com o atual presidente.

“Geralmente é o incel mais pobre que não apoia o Bolsonaro, ao contrário do incel branco e com uma condição melhor”, explica Chimpa. “Eu não apoiei o Bolsonaro e expliquei meus lados, mas até entendo o lado deles. O Bolsonaro é um cara que veio contra a criminalização do homem comum. Daqui a pouco iam aceitar que o homem levasse tiro de uma mulher. Mas o Bolsonaro não está fazendo um bom governo, pro cara pobre de direita não tá nada bom”.

Para Silas, o discurso de Bolsonaro contra a legalização das drogas e, especialmente, contra a figura do “maconheiro”, é um dos atrativos para os “betas” prestarem apoio político ao presidente.

“Existe um carisma forte do Bolsonaro porque eles nos defende no principal ponto que hoje tem causado muitos problemas para os betas. Nossos meninos estão diariamente sendo destruídos pelos funkeiros, oprimidos por zé droguinhas e por isso que há uma grande revolta com os maconheiros. E quem veio contra os maconheiros? Bolsonaro.”

O mesmo diz não se identificar com nenhum lado da polarização direita x esquerda que começou a piorar após o início do segundo mandato de Dilma. “Esses meninos da universidade, da esquerda. Eu fui esquerda a vida toda, a esquerda na universidade fazia bullying com esses meninos. Onde eles iam buscar apoio, encontravam ódio. Porque se você não fecha 100% com a esquerda, você não é um deles. Você passa a ser motivo de chacota.”

Entretanto, Silas também não encontrou nada que gostasse na direita. “Fui também na manifestação na Avenida Paulista em favor do Bolsonaro e é horroroso, me senti como um peixe fora d'água. Eu era o único pobre daquele lugar. Tinha uma presença gigantesca das elites, de alfas, de homens dominadores. São essas mesmas pessoas que falam que você precisa emagrecer, trocar as roupas e mudar sua cor.”

Kalil identificou nas suas pesquisas, com o avanço do projeto neoliberal, uma crise profunda de identidade entre jovens. “Me chamava atenção especialmente em grupos mais jovens essa sensação relatada de que não há espaço pra eles no mundo. Não é nem uma sensação de inadequação, porque isso parte do pressuposto que você estaria inserido em um espaço. A sensação que eles têm é que não há nem um lugar para eles. Não existe possibilidade de estar, de poder construir sua vida”, disse a pesquisadora.

A vitória de Bolsonaro validou um discurso repetido inúmeras vezes em comunidades virtuais, onde os inimigos são claros: as mulheres interesseiras e feministas que só querem destruir os homens e a esquerda que busca desmontar o valor da família. Perdidos em uma sociedade ultrassexualizada, preconceituosa e desigual, incels como Chimpa e Silas lutam para sobreviver e construir um espaço – mesmo que este sendo fundado em concepções preocupantes de gênero. A ascensão ao poder da figura de Bolsonaro tem inúmeros significados para esses jovens grudados no computador — incels ou não, incluindo um sentimento perigoso, quase niilista, de descrença em relação ao mundo que se apresenta diante deles.

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