2ª Marcha Orgulho crespo 2016 SP Vice Hudson Rodrigues
Marcha do Orgulho Crespo 2016 em SP. Foto: Hudson Rodrigues/VICE

FYI.

This story is over 5 years old.

Semana da Consciência Negra 2018

Os sentimentos por trás dos olhares entre pretas e pretos nas ruas de SP

Fiz uma longa viagem de metrô, observei, fui observada e abordei algumas pessoas para entender essa sutileza urbana.

Entro no vagão do metrô e dou uma breve olhada ao redor para saber quem está ali e se tem lugar para sentar, afinal a viagem será longa. Muitos olhares voltados aos celulares, outros para o nada e outros devolvem meu olhar preto curioso. Ao longo do caminho, percebo algumas pretas de cabeça baixa, cansaço, indiferença, não sei.

É semana da Consciência Negra e as reflexões em torno sobre ser negro vêm à tona. Sigo andando pelas ruas do centro de São Paulo, entre as estações República, Sé e Luz do Metrô. Observando e deixando ser observada, conversei com algumas pretas e pretos, na tentativa de compreender a sutileza urbana do se olhar sem se conhecer.

Publicidade

Pois, também sendo negra, sempre tive a curiosidade e a sensação de que, por algum motivo, ou vários, pessoas negras têm sentimentos em comum quando cruzam olhares com outras pretas e pretos. E em meio à correria e anonimato do dia a dia, se reconhecem.

“Não é muito comum, mas quando acontece essa troca de olhar me sinto maravilhosa; a gente que é preto se identifica e se reconhece na hora” - Gabrielle, 20 anos

Logo na Praça da Sé, cruzei olhar com a jovem Gabrielle, que trabalha em uma bilheteria. Para ela, as pessoas negras compartilham de muitos sentimentos em comum; mas fala que receber elogios é algo que lhe faz muito bem. “Às vezes percebo uma outra preta passando, a gente se olha e sorri, isso é bem legal. Não é muito comum, mas quando acontece essa troca de olhar me sinto maravilhosa; a gente que é preto se identifica e se reconhece na hora. Mas não é sempre assim, tem gente que não está nem aí, sendo branca ou negra”.

“Parece que você consegue ler a mente dela, ela lê a sua e vocês percebem que têm uma relação mesmo estando distante” - Mônica, 16 anos

Caminhando na estação da República, sentada ao canto, troquei olhares com Mônica, de 16 anos. Ela me disse que se sente poderosa quando é olhada por outras pessoas pretas e acredita que há relação de cumplicidade nesses olhares. “Acho que há uma relação entre as pessoas negras que se olham, você se identifica com as outras pessoas negras. Parece que você consegue ler a mente dela, ela lê a sua e vocês percebem que têm uma relação mesmo estando distante ou sendo desconhecidos."

Logo com alguns minutos de conversa, já estava sentada ao lado de Mônica e não à toa ela comentou que quando troca olhares com outras pessoas pretas logo sente vontade de conversar com elas. "Sinto que estamos juntos no mesmo grupo e que se um sofrer preconceito, sofreremos juntos", conta.

Publicidade

“Eu sento numa boa do lado de outra pessoa preta, mas muitas pessoas brancas não fazem o mesmo” - Kaique, 23 anos

Por vezes olhando para o celular e para as pessoas em volta, percebo e sou percebida por dois jovens negros. Para Kaique, pensar sobre o assunto é meio complicado, porque ele sente que nem todas as pessoas olham da mesma forma e compara com a relação de sentar-se ao lado de alguém no coletivo: “Sendo preto, eu sento numa boa do lado de outra pessoa preta, mas muitas pessoas brancas não fazem o mesmo; e assim também acho que acontece com o olhar nas ruas”.

“Sinto a cumplicidade muito mais de mulher preta para mulher preta, é quando ela entende que estamos na mesma conjuntura” - Laísa, 32 anos

Para Laísa os sentimentos variam de acordo com a situação, como conta: "Em alguns lugares que são como redutos de pretas e pretos, esses olhares são afetuosos, sorridentes, as pessoas nos cumprimentam; a gente sente que todo mundo está junto. Mas em outros, como ônibus, caminhando na rua, sinto que é raro esse olhar de afeto".

Ela atenta ainda para a questão do gênero e cumplicidade entre mulheres. "É sempre da mulher que vem o sorriso. Quando vejo uma preta, sento do lado, a gente se cumprimenta e tá tudo certo. Isso é muito mais o afeto da mulher preta para com a mulher preta. Sinto a cumplicidade muito mais de mulher preta para mulher preta, é quando ela entende que estamos na mesma conjuntura. Parece meio louco, mas é o que eu sinto. Quanto aos homens pretos, sinto o olhar de se reconhecer, mas eu não sei se está no campo do afeto ou outros interesses."

Publicidade

“Estamos crescendo e somos fortes, mas precisamos saber crescer e se ajudar” - Aline, 40 anos

Ainda nas ruas do centro, impossível não cruzar os olhos com Aline, suas tranças negras e seu companheiro de mãos dadas, também negro. A gaúcha de 40 anos relata: "Percebo as pessoas negras que se olham e que se reconhecem e compartilham cumplicidade, isso é muito bom; mas não é sempre assim".

Para ela, as pessoas negras precisam se ajudar mais, seja nos olhares, cumprimentar, incentivar e apoiar: "Já passei por situações que em que eu não estava bem vestida e várias pretas me olharam com inferiorização; e quando estava bem vestida senti um olhar de inveja, de rivalidade; e isso é muito ruim e não pode existir”.

"Sou de Porto Alegre e foi em São Paulo que eu vi muitos negros se cuidando, se sentindo orgulhosos de andar na rua. E isso me deixa feliz. Estamos crescendo, somos fortes, sim, mas precisamos saber crescer e se ajudar", finaliza.

Siga a VICE Brasil no Facebook, Twitter, Instagram e YouTube.