Atriz Madeline Brewer no filme Cam.
Madeline Brewer em Cam. Foto: Divulgação

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Sexo

'Cam', novo thriller de horror na Netflix, subverte estereótipos do trabalho sexual

Antes de se aventurar como roteirista do filme, a ex-camgirl Isa Mazzei ouviu muitas das falas apavorantes do filme na vida real.

O thriller psicológico Cam chegou a Netflix em 16 de novembro, virando todos os esteriótipos de trabalho sexual de cabeça pra baixo para contar uma história assustadora sobre poder e livre-arbítrio.

O filme acompanha uma camgirl, Alice (Madeline Brewer de O Conto da Aia e Orange Is the New Black), quando ela percebe que perdeu o controle de sua persona online, Lola. A nova Lola continua a transmitir para os fãs de Alice, assumindo sua aparência e maneirismos como uma doppelgänger perturbadora e aparentemente implacável. Alice tem que chegar ao fundo da história antes de perder sua identidade para uma sósia num mistério hitchcokiano que não subestima sua corajosa protagonista.

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E ela tem que ser corajosa mesmo, porque os apoios com que muitos de nós contamos são escassos para trabalhadores sexuais. Em uma troca particularmente desumanizante, os problemas de Alice são basicamente ignorados por policiais que alternam entre descrença divertida e malícia misógina.


Veja o segundo episódio da série Transe sobre modelos de cam no Brasil:


Cam foi escrito pela ex-camgirl Isa Mazzei e dirigido por Daniel Goldhaber, apesar de a produção ter sido amplamente colaborativa. “Tem uma sobreposição de coisas que ele escreveu e cenas que eu dirigi”, diz Mazzei. “No final das contas, esse é o nosso filme, e nossa visão.”

O espírito colaborativo foi além do roteiro e direção, já que Mazzei diz que a atriz Madeline “Maddie” Brewer teve bastante espaço para colocar seus próprios limites como artista. “Todo mundo sempre fala sobre como a nudez do filme não parece exploradora, ou convidando o público a objetificar Alice, e muito disso foi por causa de Maddie, porque colaboramos com ela em quando ela estaria nua ou não.”

Há uma lição importante aqui: conseguimos conteúdo melhor e mais inteligente quando vozes diversas são ouvidas, seja de pessoas não-brancas, membros da comunidade LGBTQ ou mulheres e trabalhadores sexuais. E isso é especialmente verdade em gêneros tão associados com homens brancos cis, como o terror.

Jason Blum da Blumhouse Productions, a produtora de Cam, recentemente recebeu muitas respostas negativas por seus comentários sugerindo que a indústria de filmes de terror (e sua empresa) tem uma escassez de diretoras porque a maioria das mulheres simplesmente não quer dirigir terror. Ele logo se desculpou por seus “comentários idiotas” e “erro estúpido” no Twitter.

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Mas Blum não é o único a não conseguir atender a diversidade. E mesmo com Hollywood trabalhando ultimamente para contratar cineastas de origens sub-representadas historicamente, trabalhadores sexuais raramente são convidados para a mesa.

Há muitas razões para isso — nenhuma delas válidas. Mas tem a ver com o estigma que trabalhadores sexuais ainda encaram em todo nível da sociedade (graças em parte à representação péssima de seu trabalho na cultura pop). Eles geralmente são vistos como vítimas ou dispensáveis ou ambos, e suas palavras tendem a cair em ouvidos surdos, se é que são ouvidas.

Mesmo com a Suprema Corte canadense decidindo que criminalizar o trabalho sexual era inconstitucional, trabalhadores sexuais se viram obrigados a atuar no submundo sob o polêmico e francamente perigoso “modelo sueco”. A decisão Bedford da Suprema Corte está fazendo cinco anos, e só agora a discussão está lentamente começando a ressurgir entre os parlamentares.

Isa Mazzei

Isa Mazzei. Foto por A. Hendricks, cortesia da Divide/Conquer.

A VICE se encontrou com Mazzei para discutir Cam, sua origem no trabalho sexual e a importância de representação. A entrevista foi editada para maior clareza.

VICE: Sei que você vai publicar um livro de memórias em breve. O que te atraiu para escrever ficção?
Isa Mazzei: Adoro filmes de terror. Adoro thrillers. Originalmente pensei em fazer um documentário, mas não sentia que um documentário poderia alcançar o que eu queria, porque eu não queria só mostrar os fatos dessa subcultura. Eu queria que o público sentisse como é ser parte disso. Acho que muitas vezes, quando falo sobre o camming, não importa quanto eu explique ou mostre, as pessoas ainda não sacam completamente a ideia. E acho que o gênero é um jeito incrível de trazer o público para dentro da personagem, ou para dentro de uma experiência.

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No final das contas, não acho que o público percebe que está torcendo para uma trabalhadora sexual voltar para o trabalho sexual. Porque o que eles estão sentindo é a perda de agência dela, essa perda de controle, e que estão se identificando num nível humano e depois torcendo para ela conseguir voltar. Achei que fazer esse gênero seria o melhor jeito de passar essa mensagem.

Há mais espaço no terror especificamente para esse caráter subversivo, porque esse já é um gênero muito interessado em explorar temas tabus diretamente?
Com certeza. O terror é um lugar onde podemos mergulhar em coisas de que temos medo, coisas que são subversivas, tabus, coisas de que não queremos falar. O terror é o lugar onde você pode discutir essas coisas. O mais legal nesse filme é que as pessoas estão se divertindo com um filme de gênero, mas também têm uma discussão sobre o que eu queria que elas discutissem. Vendo algo como Corra!, é um exemplo incrível do jeito como o terror pode estar na frente dessa discussão que precisamos ter como sociedade, e acho isso muito legal.

A premissa parece muito com algo que vai ter uma mensagem contra o trabalho sexual, e obviamente esse não é o caso de Cam. Você pode falar um pouco sobre isso?
Era muito importante para o filme ser positivo sexualmente ou no mínimo neutro. Acho que muitos filmes de terror gostam de ter uma mensagem moral, e a história clássica do trabalho sexual na mídia é de mulheres inocentes sendo corrompidas por uma indústria sombria, e depois lutando para sair disso, e acho essa narrativa incrivelmente problemática e prejudicial. Ela tira a agência da mulher de escolher. Você nunca vê uma trabalhadora sexual normal que fez uma escolha consciente de se envolver na indústria, e que vê isso como um negócio. E esse é o caso da maioria dos trabalhadores sexuais que conhecemos. Foi muito deliberado subverter essa expectativa, especialmente nesse gênero.

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Da mesma maneira, eu queria subverter a expectativa das mulheres nesse gênero porque, especialmente no terror, estamos acostumados a ver personagens mulheres tomando decisões que eu, como mulher, nunca tomaria. Como mulher, quando ouço um barulho no meu porão, eu nunca iria até lá sozinha, desarmada e sem uma fonte de luz, e as personagens mulheres sempre fazem isso no terror. Então outra coisa importante para mim era que a Alice fizesse escolhas inteligentes. Ela chama a polícia. Ela procura ajuda. Ela tenta investigar quem está fazendo isso. Ela tem um taser. Sim, ela vai se encontrar um cliente, mas se protege. Ela leva uma arma.

A cena com os policiais é uma das mais apavorantes — a reação deles à ligação dela.
Super bizarro! Era importante a Alice chamar a polícia porque é isso que as pessoas fariam nessa situação, mas era importante para mim que os policiais respondessem realisticamente a como sei que eles geralmente tratam trabalhadores sexuais na vida real. Quando um deles dá em cima dela, quando eles não querem ajudar, essas coisas são baseadas em experiências que sei que trabalhadoras sexuais tiveram com as autoridades quando tentam conseguir ajuda. E já ouvi a frase “Qual a coisa mais estranha que você já teve que fazer?” várias vezes em reuniões com executivos de Hollywood que, em vez de querer discutir meu roteiro, queriam discutir a coisa sexual mais estranha que já tive que fazer, então muitas das falas da polícia foram tiradas da realidade.

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Representação e experiências vividas é algo cada vez mais discutido no cinema, mas raramente vemos trabalhadores sexuais sendo convidados para essas discussões. Quão importante era poder tirar coisas da sua origem para algo assim?
Muito importante. E acho que é importante apontar também que não são só minhas experiências. Falamos com muitos outros trabalhadores sexuais. Falamos com outras camgirls. Falamos com trabalhadores sexuais de vários tipos — strippers, amigas minhas que são acompanhantes. Falamos com vários homens e mulheres envolvidos na indústria para garantir que houvesse uma autenticidade nisso, porque não sou arrogante o suficiente para achar que poderia ter feito o filme parecer autêntico para todos os trabalhadores sexuais se incluísse apenas a minha voz. Era fundamental que eu estivesse envolvida, mas o envolvimento de todas as outras pessoas também foi crucial.

Onde você acha que os filmes geralmente erram no retrato do trabalho sexual?
Trabalhadores sexuais são sempre inseridos como piada. Consigo pensar em dois filmes mainstream que saíram recentemente onde a piada é “Matamos acidentalmente uma prostituta”. E é uma comédia. Elas não são tratadas com a mesma dignidade que teriam se fosse “Matei acidentalmente uma garçonete” ou “Matei acidentalmente um engenheiro de software”. Trabalhadores sexuais ainda são visto como menos. E acho que mais que isso, eles são vistos sempre como alguém que precisa ser salvo.

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Mesmo agora, depois de exibir o filme, com todo o sucesso que estamos tendo, ainda tem homens que chegam para mim — particularmente mais velhos — e dizem “Graças a Deus você saiu dessa, mas você está bem agora?” E isso ainda é baseado na ideologia de que as mulheres não têm escolha, não têm agência, e que precisam ser salvas disso, e novamente acho que isso é o oposto do que acontece com a maioria dos trabalhadores sexuais que conheço e com quem falei.

O que se liga ao filme. A agência de Alice está claramente sob ameaça em todo o filme, e ela é durona e retoma o controle de sua própria imagem, marca e narrativa. Você pode falar um pouco sobre esse tema no filme?
A ideia da Lola veio de um lugar muito pessoal. Essa paranoia dessa fratura de quem sou na vida real e quem sou online. E imaginar onde isso acaba e começa. Meus espectadores gostam de mim, ou gostam só dessa persona? E também vem de um espaço literal de ter muitos dos meus shows pirateados, capturas de imagens serem feitas e postadas na internet sem nenhum crédito ou meu nome. Fui reduzida a “garota pálida de cabelo frisado” no PornHub, e isso foi extremamente violador, e senti que estava vendo uma versão desencarnada de mim mesma, uma versão de que eu não tinha mais controle ou agência.

E é literalmente disso que vem a Lola, então eu queria criar um conceito de gênero em torno desse sentimento muito real de violação e perda de agência que eu estava sentindo. E então para Alice, no começo, ela tem total agência e controle de seu show. E o filme só parece assustador porque fazemos o público simpatizar com isso desde o começo. As pessoas conseguem sentir essa perda de agência que não reconhecem que ela tem no começo. O que já é muito subversivo. Ela tem esse show onde os espectadores dizem a ela pra se matar, mas ela orquestra a coisa toda. Ela tem controle total nesse momento, controle total do seu corpo, e aí isso é tirado dela.

Para Alice, é uma questão de retomar esse controle.

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Matéria originalmente publicada pela VICE Canadá.

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