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Drogas

As duas vidas do homem que injetava heroína no banheiro de um dos maiores jornais do Reino Unido

Joel Lewin trabalhava num dos jornais financeiros de maior prestígio do mundo. Mas enquanto escrevia sobre ações, ele também roubava supermercados para alimentar seu vício.
Madalena Maltez
Traduzido por Madalena Maltez
MS
Traduzido por Marina Schnoor
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Joel (direita) enquanto ainda usava heroína.

Eu adorava chapar. Era uma coisa boa que vinha com outras coisas que eu amava na vida. Mas eventualmente isso se tornou a única coisa que eu amava. Eu amava chapar mais do que meu trabalho, minha saúde, meus amigos e minha família. Aí eu já não amava mais, mas precisava chapar. Eu precisava chapar para sair da cama, para dormir, para conversar, para conduzir minha vida cada vez mais problemática. Aí comecei a odiar chapar, mas ainda não conseguia parar. E acabei desperdiçando anos tentando parar com essa coisa que eu odiava.

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Tudo parecia melhor e mais fácil quando eu usava heroína. Eu me sentia bem comigo mesmo, bem com as pessoas e bem com a vida. Parecia que as coisas estavam melhorando. Consegui um trabalho como jornalista num dos maiores jornais financeiros do Reino Unido. Eu usava uma camisa, às vezes até gravata. Eu publicava minhas matérias na primeira página.

Mas essa falsa segurança com o opiáceo minou todas as minhas fronteiras. Só usar em casa… só depois do trabalho… só depois do meio dia… nunca antes das 9 da manhã… nunca no trabalho… não com agulhas… tudo isso foi sendo jogado pela janela. Logo eu estava usando heroína desde o momento que abria os olhos de manhã até a última coisa que eu fazia à noite. Aí parei de trabalhar. Fiquei com todos os problemas de que estava tentando fugir em primeiro lugar, agora muito maiores, além de um vício em heroína.

Eu acordava às 5h45. Nem curto muito agricultura, mas ouvia o Farming Today na Radio 4 enquanto fumava ou injetava alguns papelotes. Aí eu me sentia normal o suficiente para comer alguns Rice Krispies, ouvir o Today e conferir as notícias das bolsas de valores asiáticas, o que me ajudava a me sentir mais normal.

Eu chegava na minha mesa às 7h, quando chegava o primeiro relatório financeiro do Reino Unido, e começava a escrever alguma matéria sobre grupos como o BT e Poudland. Outro frenesi de escrita às 8h quando as bolsas abriam. Eu aproveitava a calmaria das 9h para colocar a cabeça no lugar com outra dose no banheiro do porão, antes que o PIB e outros números econômicos começassem a sair. O ideal era quando isso resolvia meu problema até a hora do almoço, quando eu pegava minha dose de metadona na clínica, olhando furtivamente para todos os lados antes de entrar, para que nenhum colega me visse bebendo uma garrafa daquela coisa verde.

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Um efeito colateral improvável do meu uso de drogas é que eu passava mais tempo no escritório do que precisava. Minha vida foi ficando mais estreita, esparsa e mais isolada. Sentado na minha mesa, passando por análises de mercado tarde da noite, eu podia fingir que minha vida era rica e tinha significado.

Meu uso de drogas significava que meus níveis de estresse flutuavam de maneira diferente dos meus colegas. Eu estava isolado do estresse do trabalho pela heroína, mas estava exposto a outros estresses. Traficantes em que eu não podia confiar garantiam que, mesmo num dia tranquilo de trabalho, eu estava rígido de ansiedade, suando na minha cadeira. Às vezes eu tinha que inventar uma reunião para sair do escritório e comprar minhas drogas.

Manter meu hábito era a prioridade. Eu ganhava cerca de £2.000 [quase R$10 mil] por mês. Eu gastava £600 [R$2.800] de aluguel e o resto em heroína. Eu não estava só usando heroína – mas, depois que caía o pagamento, crack também. Na maioria das vezes eu simplesmente roubava comida do supermercado. Tecnicamente, eu tinha dinheiro para comprar, mas não comprava porque se economizasse em comida, eu tinha mais para gastar em drogas.

Sem surpresa, minhas finanças eram uma zona. O que é particularmente vergonhoso para um jornalista financeiro. Eu estava escrevendo sobre as ações da Tesco, enquanto roubava lojas deles depois do trabalho. Como eu parecia cada vez mais doente, começaram a me pegar roubando com mais frequência. Fui proibido de entrar nos supermercados mais próximos do meu apartamento. Eu pulava as catracas do metrô, ignorando os gritos dos seguranças, no caminho para o escritório.

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Em alguns dias eu sentava na minha mesa e escrevia sobre transações de bilhões de dólares, ansiosamente olhando pela redação, pensando quem seria a pessoa menos constrangedora para pedir dez libras emprestado.

Inevitavelmente, minha pontualidade e confiabilidade começaram a sofrer. Meus colegas me apoiaram e foram pacientes. Eles sabiam que eu tinha um problema, só não sabiam qual. Eu queria contar a verdade. Eu estava cansado de mentir e sentia que devia a eles alguma honestidade depois de tudo. Várias vezes quase contei, mas a vergonha me impedia. Tive várias consultas com o pessoal de saúde ocupacional. Eles sugeriam mudanças de dieta e estilo de vida. O RH me deu várias chances de dar um jeito na vida. Eu sincera e desesperadamente tentava. Mas quando tentei parar de usar percebi o quanto estava preso.

O vício sequestra a parte primitiva do seu cérebro que lida com os instintos de sobrevivência. O cérebro viciado vê as drogas não como algo prazeroso ou desejável, mas como uma necessidade para sobrevivência. Todo o resto se torna insignificante. Enquanto meu vício progredia, minha gentileza e simpatia desapareciam.

Eu passava muito tempo sozinho em banheiros. Meu apartamento ficava a 15 minutos andando do escritório, mas às vezes eu ficava sentado no banheiro do porão à noite toda. Quando meu despertador tocava de manhã, eu já estava no trabalho. Fui para Cambridge um final de semana para ver alguns amigos. Passei metade do tempo lá num banheiro de estacionamento com viciados de rua de quem consegui comprar heroína. Minha viagem se reduziu a um passeio pelos banheiros da Inglaterra.

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Mesmo vendo que elas estavam me matando, eu ainda me agarrava às drogas como se minha vida dependesse disso. Tive uma overdose, caí de uma escada e fraturei o crânio. O médico disse que usar crack seria perigoso, mas saí mancando do hospital para comprar. Eu sentia que a coisa que estava me matando era crucial para minha sobrevivência. Se isso não é um cérebro sequestrado, não sei o que mais pode ser.

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Joel em seus dias de usuário.

O vício se apoderou lentamente de mim. Tudo estava indo bem no exterior. Eu tinha educação e conseguia bons empregos. Eu tinha amigos e família. Mas por dentro era uma bagunça. Eu estava cheio de medo, dúvidas e auto-aversão. Autoestima, autorrespeito e tudo mais estavam desaparecendo. Eu não entendia o porquê. Era isso que mais me frustrava. Eu não conseguia entender: por que todo esse ódio de mim mesmo e medo? Por que agora?

Se eu não conseguia entender, não confiava que ninguém mais pudesse, então guardei segredo. Mas manter segredo só aumentava minhas dificuldades. Eu tinha que tomar um coquetel ainda maior de drogas para fingir que era feliz e estável.

Comecei a sentir um pavor que ia crescendo. Sentia que alguma coisa ia dar errado, que tinha algo errado comigo, que eu não sabia fazer esse negócio de viver que os outros pareciam achar tão fácil. Comecei a ficar ansioso em ter que interagir com outras pessoas, mesmo amigos, e logo eu estava bebendo antes de toda interação social.

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Quando isso não era mais suficiente, comecei a jogar valium e speed na mistura. Eu me sentia cada vez mais desconectado. Lembro de um Natal que passei sentado no banheiro usando speed para tentar gerar algum entusiasmo. “Por que não consigo me sentir feliz com o Natal em família?”, eu imaginava. “Deve ser porque esse speed é uma porcaria.”

Tentar escapar da ansiedade só fazia ela aumentar. Eu ficava ansioso em me sentir ansioso, seguido por toda parte por medo e desconforto. Eu não aguentava isso e não conseguia entender, então tentava só bloquear. Álcool, drogas e autoflagelação ofereciam um alívio temporário. Qualquer coisa para desligar minha cabeça por um tempo.

A autoflagelação me dava um alívio da cascata sem fim de pensamentos problemáticos, mas isso só durava um tempo. Fui longe para esconder as marcas, cobrindo os braços com base e usando manga longa mesmo no calor. Uma vez meu braço infeccionou e não consegui dobrá-lo por semanas. Eu disse pra mim mesmo que nunca mais me cortaria, mas não demorou muito para começar de novo. A vergonha aumentava minha sensação de alienação e confusão.

Eu circulava por cada vez mais drogas tentando conter essa ansiedade, medo e aversão, até que acabei viciado em heroína. A heroína funcionou maravilhosamente por um tempo. Achei que tinha achado a resposta para todos os problemas da minha vida. Medo? Acabou. Auto-aversão? Sumiu. Autoflagelação? Parei. A heroína tirou tudo isso. O que não percebi foi que a heroína logo ia tirar tudo da minha vida.

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Joel depois do tratamento, na Tailândia.

O que mais me chocou foi como foi difícil parar. Eu achava que seria fácil como simplesmente decidir ficar limpo. Mas tomei essa decisão tantas vezes. Tentei cortar de vez. Amigos e parentes me deram a chance de mudar de ambiente. Tentei programas de substituição com metadona e Subutex. Tentei roubar pilhas de livros de autoajuda. Minha família me ajudou a financiar minha reabilitação, mas eu tinha recaídas antes mesmo de tentar. Em toda recaída eu afundava um pouco mais e ficava um pouco mais sem esperança. Comecei a achar que nunca ia conseguir parar.

Mas depois de anos de tentativas cada vez mais desesperadas, finalmente consegui ficar sóbrio. Quinze meses e contando.

Tudo que perdi consegui de volta, e um pouco mais. O que torna tudo isso mais valioso é a gratidão. Não considero mais nada garantido. Acordar me sentindo normal é uma coisa incrível depois de anos acordando me sentindo péssimo. Agora trabalho com reabilitação, ajudando outras pessoas. E isso me faz sentir bem depois de anos fazendo o contrário. Acabei de ver meus pais e meu irmão pela primeira vez em mais de um ano. É maravilhoso poder recuperar esses relacionamentos depois de tudo que eu fiz eles passarem. Construí novas amizades e recuperei amizades antigas.

Ainda procuro um barato às vezes, mas agora em lugares diferentes, como correr 20 quilômetros numa floresta.

Este texto não deveria ser um inventário de dor e vergonha. O que estou tentando colocar aqui é uma visão de quão rápido negligenciar seus problemas de saúde mental pode virar um vício pesado em drogas.

Depois de tentar por tanto tempo me consertar com substâncias, finalmente vi que eu nem sequer estava quebrado. Eu só precisava de ajuda, que por alguma razão eu tinha medo demais para pedir. Eu tinha uma vaga ideia do que era um viciado em heroína, e definitivamente não era eu. Eu achava que tinha senso e boas intenções suficientes para me imunizar contra o vício. Mas pela minha experiência como viciado e trabalhando com reabilitação, descobri que o vício pode acontecer com qualquer um, em qualquer lugar.

Leia o blog do Joel em recovereads.com.

@JoelLewin

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